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Marxismo: O problema da etapa no marxismo-leninismo

11 de outubro de 2024

O vice-presidente nacional do PCdoB, Carlos Lopes, discute a questão da transição socialista

Em “Duas Concepções, Duas Orientações Políticas”, publicado em 1960, escreveu Maurício Grabois, sobre o programa do IV Congresso do Partido (1954):

“O Programa (…) desempenhou importante papel na época em que foi aprovado. Significou um avanço no rompimento com as tendências sectárias que proliferaram com o manifesto de janeiro e se agravaram com o manifesto de agosto. O Programa fez uma justa caracterização da revolução brasileira na atual etapa, como anti-imperialista e antifeudal, revolução dirigida contra os imperialistas norte-americanos e os restos feudais. Precisou, também, de modo correto, as tarefas da revolução, apresentando medidas que equivaliam às transformações democrático-burguesas, correspondentes à primeira etapa da revolução. Foi corrigido o grave erro do manifesto de agosto que propunha a nacionalização das grandes empresas de capital nacional. O Programa, acertadamente, orientava as forças revolucionárias no sentido de concentrar o fogo da ação nacional-libertadora no imperialismo norte-americano que considerava como o principal inimigo do povo brasileiro. Levantou de modo correto a questão agrária, mostrando a necessidade de liquidar o monopólio da terra e as sobrevivências feudais. No concernente às relações com a burguesia nacional, era justa a sua posição ao incluí-la entre as forças revolucionárias, corrigindo as concepções esquerdistas que a este respeito mantinham os comunistas a partir de 1948. O Programa defendia os interesses da burguesia nacional, em particular o desenvolvimento da indústria nacional. A orientação estratégica do Programa, considerada como a linha para toda a primeira etapa da revolução, bem como o plano de disposição das forças revolucionárias para esta etapa, eram, no essencial, justos” (Novos Rumos, 22 a 28 de abril de 1960, Tribuna de Debate, p. 3, grifos nossos).

O problema da etapa na definição da Revolução Brasileira já não era, portanto, novo. E foi reafirmado pelos reorganizadores do partido, como João Amazonas, Maurício Grabois, Pedro Pomar, e outros, em 1962.

Trata-se de uma questão definida pelos marxistas desde o final do século XIX ou início do século XX – principalmente por Lenin.

Seria muito fácil – e inútil – a partir da definição de que nosso objetivo final é o socialismo (chamado por Marx, em “Crítica do Programa de Gotha”, de primeira fase do comunismo), caracterizar todas as revoluções como revoluções socialistas.

Porém, mesmo assim, seria errôneo caracterizar as revoluções nos países centrais do imperialismo – ou seja, naqueles países capitalistas em que a revolução já é diretamente socialista – como carentes de etapa, porque é evidente que, nesses países, estamos diante, também, de uma etapa, nesse caso uma etapa socialista.

Entretanto, aqueles que propugnam que a revolução é socialista em todos os países do mundo – porque o nosso objetivo, no final das contas, é o socialismo -, mesmo naqueles em que o centro estratégico da revolução são as tarefas democrático-burguesas ou nacionais-democráticas, frequentemente alegam que isso significa que não há “etapas” na revolução. Portanto, todos os países do mundo seriam, quanto à estratégia revolucionária, iguais, porque carentes de etapas.

Este foi, precisamente, o infausto caminho de Trotsky, após a Revolução de 1905. Mas Trotsky, sobretudo por essa razão, era aquele sujeito em que, segundo Lenin, “era impossível contar em qualquer questão séria”.

Aliás, a série de artigos de Lenin contra Trotsky, principalmente a partir de 1905, são dos mais extraordinários – e, infelizmente, dos mais desconhecidos – em sua obra. Por exemplo, diz ele em “O objetivo da luta do proletariado em nossa revolução”, artigo de 1909, que está no Tomo 17 de suas Obras Completas (Editorial Progresso, Moscou, 1983, tradução em espanhol):

“O erro fundamental de Trotsky consiste em que deixa de lado o caráter burguês da revolução e não concebe de maneira clara a passagem desta revolução à revolução socialista” (grifo nosso).

Ou, em um artigo do ano seguinte, “O sentido histórico da luta dentro do partido” (tomo 19 das Obras Completas):

“Trotsky jamais foi capaz de assimilar um critério mais ou menos definido sobre o papel do proletariado na revolução burguesa russa” (grifo nosso).

Está claro, por essas breves citações, que Lenin considerava que a revolução russa, até fevereiro de 1917, estava em sua etapa burguesa ou democrático-burguesa.

Não era algo sujeito a controvérsias – e, com exceção de Trotsky, Lenin não encontrou adversários nessa questão, ainda que Mártov e outros mencheviques, taticamente, tenham sustentado e insuflado as pretensões hegemonistas de Trotsky contra os bolcheviques, até 1917.

Mas, como observou, também, Lenin, não eram a suas próprias ideias que Trotsky açulava contra os bolcheviques. O que ele e outros chamavam de ideias eram sempre empréstimos das ideias de outros, em geral ideias enviesadas e contrarrevolucionárias. Sucintamente:

“Com Trotsky não se pode discutir a fundo, pois é desprovido de toda opinião” (Lenin, Acerca da diplomacia de Trotsky e de uma plataforma dos defensores do partido, Obras Completas, Tomo 21, 1911, p. 33).

Mas está claro, como já dissemos acima, que Lenin considerava a revolução russa em sua etapa burguesa – e que o erro fundamental de Trotsky era deixar de lado esse caráter da revolução.

Evidentemente, ele também considerava que a revolução burguesa na Rússia entrelaçava-se com a revolução socialista – mas uma etapa não se confundia (e não se dissolvia) na outra.

Essa questão apareceu mais cedo, antes dos textos que citamos, em uma das principais obras de Lenin, “Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática”, de 1905.

O livro é uma polêmica contra os mencheviques. Mas é uma polêmica sobre tática. A estratégia (o caráter da revolução, ou seja, a “revolução democrática”) não é um ponto de discórdia. Tanto bolcheviques quanto mencheviques concordavam em que a revolução na Rússia não era socialista, mas “democrática”, ou seja, burguesa. Somente depois de 1905, muito antes de fevereiro de 1917, Trotsky tentaria impingir um caráter socialista à revolução russa.

Após outubro de 1917, Trotsky, várias vezes, afirmou que ele “previra” que a revolução russa seria socialista. O objetivo dessas afirmações era colocar-se em um plano superior a Lenin que, antes de fevereiro de 1917, sempre sustentou (e, mais do que isso, demonstrou) o caráter imediatamente democrático-burguês da revolução russa.

Aliás, em “Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática” é evidente que Lenin considerava que o caminho do proletariado para a revolução socialista era levar até o fim, da maneira mais radical possível, a revolução democrático-burguesa. Assim, uma etapa (a democrático-burguesa) entrelaçava-se com a próxima (a socialista) – o que ele reafirmou, como veremos, após a Revolução de Outubro, ou seja, após a revolução socialista.

Quanto às pretensões de Trotsky a profeta da revolução socialista, a melhor abordagem foi a de Antonio Gramsci:

“Bronstein (Trotsky), nas suas memórias, recorda que lhe disseram que sua teoria havia-se demonstrado boa depois… de quinze anos (…). Na realidade, a sua teoria, como tal, não era boa nem quinze anos antes nem quinze anos depois: assim como ocorre com os obstinados, acerca dos quais fala Guicciardini, ele (Trotsky) adivinhou a grosso modo, i.e., teve razão na previsão prática mais geral. Tal como ao dizer-se que se está predizendo que uma menina de quatro anos tornar-se-á mãe e, quando ela se torna mãe aos vinte anos, diz-se  ‘eu já havia adivinhado isso’, não se recordando, porém, que, quando a menina tinha quatro anos, queriam-na estuprar, seguros que haveria de se tornar mãe” (tradução nossa do italiano).

Então, para Gramsci – como para Lenin e Stalin – o partido revolucionário, o partido da classe operária, tem um ponto de partida internacional (expresso por Marx no Manifesto Comunista), mas seu fundamento é nacional.

O conceito de “etapa” é uma tradução, em termos teóricos e estratégicos, desse fundamento.

Mas é, também, uma expressão do programa mínimo da revolução. O programa mínimo é, justamente, o programa da etapa, seja ela democrático-burguesa, nacional-democrática ou socialista.

Nesse sentido, é justo identificar o programa mínimo com o fundamento nacional da revolução, até porque “o homem está organizado em famílias e nações. Ele não existe hoje, a não ser como fantasia de ente errante, fora de sua moldura familiar e nacional. Não lutar pela soberania nacional significa aceitar que as nações sejam oprimidas, submetidas. Conceber um mundo livre formado por povos submissos é tão absurdo quanto pretender uma comunidade saudável composta de indivíduos dependentes, despersonalizados, sem identidade própria” (Claudio Campos, O Estado nacional contra a fraude da “globalização”, HP 17/06/2009).

Quanto ao programa máximo do partido, é aquele que vai até o comunismo (ou, na expressão utilizada por Marx em “Crítica do Programa de Gotha”, até a segunda fase do comunismo, isto é, até a sociedade sem classes).

Houve, após a Revolução de Outubro, na Rússia, uma intensa discussão que tinha como fulcro a persistência ou não do programa mínimo (o programa da etapa) depois da revolução socialista. Havia quem defendesse que, com a revolução socialista, o programa mínimo do partido, por desnecessário, deixara de existir.

É conhecida a posição de Lenin e Stalin: ambos afirmaram que o programa mínimo continuava a existir após a revolução socialista. Pois era necessário completar, depois da revolução, a própria transição do capitalismo para o socialismo – e, depois, a transição do socialismo para o comunismo. Evidentemente, o conteúdo do programa mínimo mudara com a revolução socialista, mas não deixara de existir.

Por isso mesmo, não existem etapas em abstrato, assim como não existem revoluções em abstrato. Toda revolução é uma revolução concreta em um país concreto, portanto, corresponde a uma etapa concreta.

Assim, a etapa da revolução russa, antes de fevereiro de 1917, corresponde a uma etapa democrático-burguesa.

Por quê?

Porque a tarefa estratégica que dava caráter à revolução era a remoção dos restos do feudalismo na Rússia – em primeiro lugar, a derrubada do Estado absolutista, isto é, do tzarismo. Toda a obra de Lenin, a partir de O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia (1899), tem como objetivo demonstrar que as bases para esta revolução – isto é, o desenvolvimento do capitalismo contra o feudalismo – estão se expandindo no país.

Porém, essa etapa é específica da revolução russa, adquirindo sua concretude na Rússia, que era um país ainda sufocado por restos feudais – mas não era um país subordinado ao imperialismo. Sob vários aspectos, era, inclusive, um país imperialista.

Comparemos tal definição da etapa na Rússia com a situação da China na década de 20 do século passado.

Naquela época, Stalin, o Partido Comunista da União Soviética e a Internacional Comunista definiram a revolução chinesa como nacional, democrática e popular. Ou seja, a principal tarefa da revolução era o rompimento com as amarras, com a submissão, em relação ao imperialismo – em suma, a libertação nacional.

Percorrendo os textos de Mao Tsé-tung, é evidente que existia, também, um aspecto antifeudal na revolução chinesa. Mas não era esse – ao contrário da revolução russa – o seu aspecto principal. Avulta, aqui, o fato de que a China não era uma nação imperialista, ao contrário da Rússia, mas uma nação subordinada ao imperialismo, inclusive com ocupação de seu território por potências estrangeiras.

Essa situação foi objeto de uma intensa polêmica – mais uma vez, e antes de tudo, com o trotskismo, que culpou a política de Stalin e da Internacional pelo massacre de Xangai, em 1927, perpetrado pelos antigos aliados dos comunistas, o Kuomintang, agora, após a morte de Sun Yat-sen, sob a direção de Chiang Kai-shek.

Dentro do próprio Partido Comunista da China, seu primeiro secretário geral, Chen Duxiu, aderiu ao trotskismo, sendo expulso em 1929.

Stalin, a Internacional, assim como Mao Tsé-tung e o Partido Comunista da China, defenderam, contra os trotskistas, a estratégia nacional e democrática naquele grande país asiático – inclusive depois da vitória da Revolução Chinesa, em 1949, quando foi implantada a Nova Democracia, um regime de independência nacional, que somente em 1953 daria lugar ao socialismo.

Portanto, a etapa (ou as etapas) na revolução chinesa não foram as mesmas da revolução russa. Isso adquire mais destaque ainda quando se percebe que a polêmica do trotskismo, antes e depois do massacre de 1927, tinha como ponto central a afirmação de que os comunistas chineses deveriam ter seguido o mesmo caminho dos comunistas russos, mas que Stalin e a Internacional os haviam desviado para um caminho “nacionalista”.

A argumentação dos últimos era, exatamente, que a situação na China era diferente da Rússia em 1917, ou seja, que a etapa da revolução era diferente, era nacional, democrática e popular – e não democrático-burguesa.

O que a vida mostrou que era verdade.

Poderíamos exemplificar a especificidade concreta da etapa com a revolução concreta de outros países concretos, inclusive dos países latino-americanos ou outros países asiáticos.

Aliás, já o fizemos, com o caso do Brasil, na citação inicial de Maurício Grabois.

Naturalmente, a revolução nacional e democrática é um caso particular da revolução democrático-burguesa. Mas as duas não são a mesma coisa.

Embora, é verdade que a discussão da etapa concreta da revolução é também a discussão do passo democrático a ser dado em um determinado momento histórico, pois,

“… um salto qualitativo da democracia é a questão política chave em qualquer revolução verdadeira. Marx dizia, e com razão, que também na revolução socialista a questão política essencial é a ‘conquista da democracia’, no sentido de uma democracia proletária, da passagem da ‘democracia’ burguesa à democracia proletária. Se tudo isso é verdade – e é – torna-se evidente que não avançamos muito quando afirmamos que o aspecto político central de tal ou qual revolução concreta – e não das revoluções em geral – é o aspecto democrático (geral). Isso é verdadeiro em todas as revoluções. O que distingue uma revolução concreta de outra é justamente qual a tarefa democrática que está na ordem do dia, qual o caráter central e o conteúdo de classe da democracia que se faz necessária. Na revolução democrática burguesa dos países centrais foi a ruptura com o autoritarismo feudal ou escravagista, e a constituição de um Estado democrático burguês, sob a hegemonia da burguesia ou da aliança operário-camponesa. Na revolução socialista, a constituição de uma democracia proletária. Na revolução nacional e democrática dos países dependentes – caso particular da revolução democrático-burguesa – a ruptura com Estados submissos aos interesses do imperialismo e a constituição de Estados efetivamente nacionais e democráticos” (cf. Cláudio Campos, Unir a Nação e Romper com a Dependência, agosto, 1982).

E, logo em seguida:

“Por outro lado, é evidente que mesmo esta democratização guarda um determinado nível de abstração: não se fazem, por exemplo, revoluções nacionais e democráticas ‘em geral’, mas revoluções nacionais e democráticas concretas, que mantêm diferenças acentuadas de país para país.”

Porém, é verdade, como disse Stalin, que o problema da revolução democrática é, para um comunista, parte do problema da revolução socialista. Já vimos, mais acima, como Lenin considerava que “o erro fundamental de Trotsky consiste em deixar de lado o caráter burguês da revolução e não conceber de maneira clara a passagem desta revolução à revolução socialista (grifo nosso)”.

Quatro anos após a Revolução Socialista de Outubro de 1917, Lenin abordaria claramente o entrelaçamento entre a revolução burguesa e a revolução socialista:

“A tarefa imediata e direta da revolução na Rússia era uma tarefa democrático-burguesa: derrubar os restos do medievalismo, varrê-los definitivamente, limpar a Rússia dessa barbárie, dessa vergonha, desse enorme entrave para toda a cultura e todo o progresso no nosso país. E orgulhamo-nos justamente de ter feito essa limpeza com muito mais decisão, rapidez, audácia, êxito, amplitude e profundidade, do ponto de vista da influência sobre as massas do povo, sobre o grosso dessas massas, do que a grande revolução francesa há mais de 125 anos.

“Tanto os anarquistas como os democratas pequeno-burgueses (isto é, os mencheviques e os socialistas-revolucionários como representantes russos deste tipo social internacional) disseram e dizem uma incrível quantidade de coisas confusas sobre a questão da relação entre a revolução democrático-burguesa e a socialista (isto é, proletária). Os quatro últimos anos confirmaram plenamente a justeza da nossa interpretação do marxismo sobre este ponto, do nosso modo de aproveitar a experiência das revoluções anteriores. Levamos, como ninguém, a revolução democrático-burguesa até ao fim. É de modo perfeitamente consciente, firme e inflexível que avançamos para a revolução socialista, sabendo que ela não está separada da revolução democrático-burguesa por uma muralha da China, sabendo que só a luta decidirá em que medida conseguiremos (em última análise) avançar, que parte da nossa tarefa infinitamente grande cumpriremos, que parte das nossas vitórias consolidaremos. O tempo o dirá. Mas vemos já agora que fizemos uma obra gigantesca — tendo em conta que se trata de um país arruinado e atrasado — na transformação socialista da sociedade” (Lenin, Para o quarto aniversário da Revolução de Outubro, 1921, Obras Completas, tomo 44, p. 150).

Em suma, a etapa democrática – ou, no nosso caso, nacional e democrática – é o prelúdio da revolução socialista, com a qual se entrelaça e que leva a sua antecedente radicalmente até ao fim.

Carlos Lopes é redator-chefe do jornal Hora do Povo, vice-presidente nacional do PCdoB e membro do Grupo de Pesquisa sobre Problemas e desafios contemporâneos da teoria marxista.

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.