Observatório Internacional: Cláudia Sheinbaum vai governar com as mulheres no México
Ana Prestes escreve sobre a participação das mulheres no governo da nova presidenta do México. Foto: Gobierno de México
Enquanto no Brasil parte dos analistas e dirigentes partidários coloca a culpa do mau desempenho da esquerda nas eleições municipais de 2024 no que chamam de “identitarismo”, no México a esquerda se consolida no poder pelas mãos das mulheres.
A força e a organização das mulheres mexicanas foi fundamental para a realização de uma Reforma Constitucional em 2019 que institucionalizou a participação equitativa de gênero nos espaços de poder e estabeleceu o que lá se chama “paridade em tudo”. A conquista foi coroada com a eleição de uma presidenta para o país, a engenheira de energia Cláudia Sheinbaum.
A reforma de 2019 veio na esteira de outra reforma, a de 2014, que estabeleceu a paridade no Legislativo. A reforma no acesso ao parlamento possibilitou que, nas eleições de 2018, as mulheres mexicanas chegassem a 49,3% de cadeiras na Câmara e 49,2% no Senado. Portanto, a transversalização da paridade na reforma constitucional de 2019 para os três poderes e nos três níveis de poder foi possível justamente pela composição paritária do legislativo de então. A mudança foi brutal em 20 anos. De 16,6% na Câmara no início dos anos 2000, as mexicanas chegaram a 49,6% em 2022. Isso é histórico para um país em que as mulheres só conquistaram o direito ao voto em 1953 e que possui uma das mais altas taxas de violência doméstica e feminicídios no continente americano. O salto maior viria em 2024 com a eleição da primeira mulher presidenta do México em 200 anos de República.
Ao longo da trajetória, foi preciso lidar com as “voltas” que se tentavam dar na legislação de cotas. Uma das medidas adotadas para burlar as cotas de gênero para as candidaturas era colocar suplentes masculinos para as candidatas. Em 2009, quando a cota já era de 40%, uma série de deputadas eleitas renunciaram a seus cargos para dar passagem aos seus suplentes homens, em um episódio que ficou conhecido como o “escândalo das Juanitas”. O caminho poderia ter sido o da perpetuação das “burlas” ao sistema de cotas e à busca de desvios, mas ocorreu o contrário, os obstáculos constituíram um motor que fortaleceu a organização de uma rede de organizações de mulheres pela paridade na política.
Durante a cerimônia de posse de Cláudia, no último 1o de outubro, ela fez questão de frisar que quer ser chamada de “presidenta com A”. Na sequência, acrescentou:
“Começa a segunda etapa da Quarta Transformação da vida pública do México. Depois de 503 anos, chegamos agora, as mulheres, para conduzir o destino da nação. Não chego sozinha, chegam todas. O povo do México disse de forma clara que é tempo de transformação e das mulheres. Durante muito tempo as mulheres foram anuladas. Agora, os tempos são outros.”
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A nova presidenta não desvincula sua chegada ao poder com o compromisso de dar seguimento à Quarta Transformação, agora em sua segunda etapa, sob seu comando. É isso que aqueles que gostam de qualificar de “identitarismo” de forma pejorativa a luta das mulheres por espaços de poder, como se promovesse um esvaziamento das pautas “importantes”, insistem em desqualificar. Dizem que as lutas das mulheres estão dissociadas de projetos transformadores e por isso “mais atrapalham do que ajudam”. Será? As mulheres de outro espectro político do México, ligadas à direita, como as do PAN, por exemplo, foram também protagonistas das lutas pela Paridade Em Tudo. E se uma delas tivesse chegado à presidência teria sido tão histórico quanto a chegada de Cláudia, do ponto de vista da superação da exclusão patriarcal, mas seus projetos neoliberais seriam igualmente combatidos por homens e mulheres da esquerda. O que tem se demonstrado, no entanto, é que a junção das lutas antineoliberais e das lutas das mulheres por acesso aos espaços de poder dão bons frutos. Aliás, as mulheres têm sido justamente a parte do eleitorado que menos vota na direita e extrema direita. Segundo um artigo veiculado no El País, “A onda da extrema direita só encontra um dique: o voto feminino”, que traz análises sobre eleições na Argentina, Brasil, Espanha e Polônia,
“Há um padrão que se repete nos países analisados: as mulheres votam menos que os homens em partidos e candidatos da extrema direita. (…) Observa-se que mais homens declaram votar em partidos e candidatos populistas ou de extrema direita. Em alguns casos, como Brasil ou Áustria, as diferenças nas pesquisas são de até 16 pontos. Nas recentes eleições argentinas a diferença foi de 12 pontos, segundo o instituto CB Consultora. Na contramão, o candidato e atual ministro de Economia, Sérgio Massa, disse ao El País, em uma entrevista coletiva para a imprensa internacional, que entre as mulheres teria alcançado 45% de apoio frente aos menos de 25% de apoio a Milei”.[1]
Cláudia Sheinbaum, que chega ao poder na contramão de projetos populistas e extremistas de direita e neoliberais, disse que vai governar com as mulheres para levar a cabo mais uma etapa da 4a transformação. Até aqui, sob a condução de Obrador, na primeira etapa da 4T, o México já tirou 9,5 milhões de pessoas da linha da pobreza, diminuiu substantivamente o desemprego e aumentou o salário mínimo. A presidenta apontou em sua posse que construirá mais de um milhão de moradias para jovens que estão constituindo família e linhas de crédito específicas para reformas de imóveis. Se comprometeu a expandir as linhas férreas, investir na constituição de um sistema universal de saúde e ampliar em pelo menos 300 mil as vagas universitárias. Prometeu ainda controlar o preço dos combustíveis, perseguir a soberania alimentar, constituir uma força tarefa nos três níveis de governo para combater a violência que é um dos mais dramáticos problemas do México e acompanhar a reforma judicial que foi a última medida do governo Obrador aprovada no Congresso.
Daqui em diante, seguiremos de perto as políticas promovidas por Cláudia para o povo mexicano, sua relação com seus pares latinoamericanos e suas posições diante dos grandes embates geopolíticos que se desenrolam hoje no mundo.
[1]https://elpais.com/internacional/2023-10-27/datos-la-ola-de-la-extrema-derecha-solo-encuentra-un-dique-el-voto-femenino.html
Ana Prestes é pesquisadora do Observatório Internacional, Grupo de Pesquisa da Fundação Maurício Grabois, e Secretária de Relações Internacionais do PCdoB.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.