Vandré Fernandes: “Eu odeio o cinema brasileiro”
O cineasta Vandré Fernandes defende mais investimentos do governo federal no audiovisual. “O governo deveria colocar o audiovisual como matéria obrigatória nas escolas, realizar a formação de público, e fortalecer o parque industrial”, defende.
Acredito que você já deve ter ouvido a frase “Eu odeio cinema brasileiro” em algum lugar, ou de alguém, de algum conhecido, de familiares. Mas o que de fato ela representa? Um ódio aos filmes produzidos no Brasil? Será?
Essa frase não está só relacionada com os filmes, ela vai muito além do cinema brasileiro. Na verdade, o que está oculto nela é o ódio à cultura, ao povo e, claro, ao Brasil.
O cinema é uma das artes de contato mais direto com as pessoas, mais acessível e compreensível de um povo. Os filmes retratam as alegrias e frustrações, as diversidades e convergências, a língua e tudo o mais que nos englobam como nação.
Mas, o cinema não é só arte, ele também é indústria, um setor produtivo que emprega milhares de pessoas e movimenta milhões. Estudos revelam que para cada 1 real investido num filme, ele retorna 3. No Brasil, a economia do audiovisual chega a pontuar 3% no PIB, ultrapassando indústrias como a têxtil.
Se as pessoas soubessem disso, iam entender o porquê os Estados Unidos investem tanto em suas produções, aquecendo a economia norte-americana chegando a movimentar cerda de 42 bilhões de doláres. A ocupação cultural tem a ver com a economia. Se não fosse rentável, os americanos já tinham deixado de lado o seu cinema.
A mentalidade que vocaliza frases como – eu odeio cinema nacional – têm sua origem na formação econômica do Brasil. Somos um povo colonizado e, desde cedo, aprendemos a valorizar o que vem de fora, não apenas os produtos, mas inclusive o modo de vida, por isso que um filme brasileiro quase sempre é subjugado pelo próprio povo.
Paulo Emílio Salles Gomes disse uma vez que os cineastas brasileiros são estrangeiros em seu próprio país. Praticamente temos que implorar pela cota de tela, cota nos streamings, e com isso é mantido um espetacular protecionismo de quase 90% para filmes norte americanos, sem precisar de lei, apenas pela pressão de mercado dos distribuidores, exibidores e do governo norte-americano.
Todas as vezes que o Estado Brasileiro criou mecanismo para impulsionar a produção, distribuição e exibição dos nossos filmes, algum representante dos Estados Unidos passou por aqui para pressionar. No governo de Juscelino Kubitscheck, o secretário do governo americano veio conversar com o presidente para dizer que se o Brasil aumentasse a taxação nos filmes importados, eles deixariam de comprar nossos produtos como a laranja, o café. Quando Juca de Oliveira era ministro, ele recebeu 11 senadores americanos, todos com a missão de aumentar o poder de distribuição e exibição de filmes americanos em território brasileiro. E vários outros acontecimentos se deram desde que o Brasil se tornou, a duras penas, um dos maiores produtores de filmes no mundo.
Uma figura emblemática foi Harry Stone, lobista da indústria do cinema americano, se estabeleceu no país na década de 1950, e daqui jamais saiu. Atuava fortemente no Brasil contra o nosso cinema, pressionando os governos a favorecer os filmes americanos. Ele teve acesso direto a todos os presidentes brasileiros, tanto que no governo Collor, chegou a descer a rampa no ato de posse. Não é de se estranhar que pouco tempo depois, Collor fecharia a Embrafilme e levaria o nosso cinema a quase traço.
No último período, com o governo Bolsonaro e a pandemia, as produções se viram em risco novamente. O governo anterior elegeu a cultura como inimiga, fechou o Ministério da Cultura e impediu que a indústria do audiovisual se desenvolvesse.
Às vésperas de completarmos dois anos do governo Lula 3, muita coisa mudou, as produções brasileiras voltaram à cena com força, tanto no cenário nacional como internacional. Nas plataformas de streamings, as sérias brasileiras como Cangaço Novo e DNA de um crime foram líderes de audiência mundial durante semanas.
Mas, vira e mexe, ainda vemos as pessoas estufarem o peito e dizer: eu odeio o cinema brasileiro. Reparem que a maioria que odeia essa indústria cultural se denomina como patriota, são os mesmos que antigamente diziam: O som dos filmes brasileiros é péssimo; filme brasileiro só tem sacanagem; brasileiros não sabem fazer roteiros; brasileiros só sabem falar de favela… Todas essas construções são, na verdade, pretextos para atacar uma das expressões culturais mais genuínas de um país – o cinema!
Também avançamos com políticas que fomentaram a nacionalização das produções, o que revigorou nosso audiovisual, antes muito concentrado no eixo Rio/SP. Mulheres, pretos, pretas, indígenas e comunidade LGTBQIA+ passaram a ter mais protagonismo nos editais e por consequência o direito de se verem representados nas telas e atrás delas.
Porém, muito coisa ainda precisa mudar ainda. O governo federal precisa enfrentar um tema estratégico para a indústria cinematográfica: a questão de cota de tela. Para construir audiência, ganhar relevância, não basta o produto ser de qualidade, não bastar termos uma diversidade temática com filme que vão de A a Z. É preciso que eles sejam exibidos em horários adequados. Não podemos deixar os produtos brasileiros disponíveis nas sessões das 14h e das 15h nas salas de cinema, horários em que o grande público está no trabalho ou na escola. Não podemos manter os filmes nacionais em cartaz por uma, duas semanas no máximo em 5 salas de cinemas “alternativos”, enquanto os blockbusters ficam semanas e chegam a ocupar milhares de salas simultaneamente.
O governo também precisa enfrentar as taxações nos streamings. Enquanto muitos países avançam na taxação do Netflix, Amazon, HBO e outros, e revertem esses recursos para investimentir em produções locais, aqui é a “farra do boi”. Aliás, quando você entra nessas plataformas, os filmes brasileiros nunca estão na primeira tela, e as buscas são difíceis.
Outra questão que ainda carece de mais atenção é a situação das produtoras independentes, que continuam sendo esmagadas. Sobra muito pouco recurso para a produção e distribuição, além do que a exibição continua sendo concentrada nas grandes produtoras. Essa política precisa ser revista.
O governo deveria colocar o audiovisual como matéria obrigatória nas escolas, realizar a formação de público, e fortalecer o parque industrial. Mas isso parece um sonho distante.
Lembro de uma crítica do escritor Mario de Andrade que dizia que o filme brasileiro era bom, mas essa coisa de acender o fósforo na sola do sapato não era coisa nossa. Fazendo um gancho com outra frase de Paulo Emilio Salles Gomes que um filme brasileiro ruim diz mais sobre nós do que um ótimo filme estrangeiro.
É certo afirmar que o brasileiro quer se ver na tela, mas para isso, o atual governo precisa enfrentar os leões de fora e os de dentro, porque o cinema é uma arma poderosa de transformação, ou será que o governo vai ficar vendo tudo acontecer na praça e ficar parado dando milho aos pombos?
Vandré Fernandes, cineasta. Dirigiu longas de documentários “Camponeses do Araguaia – A Guerrilha vista por dentro”; vencedor da Mostra de Cinema e Direitos Humanos da América do Sul; Osvaldão; Histórias da Praia do Flamengo, 132; e do curta de ficção “O Bom Velhinho”.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG