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José Medeiros: O marxismo e a cultura tradicional no Pensamento de Xi Jinping

21 de outubro de 2024

José Medeiros argumenta que a essência do pensamento de Xi Jinping reside na integração do marxismo com a cultura tradicional da China.

Além de contribuir para o avanço teórico do marxismo no campo cultural, o Pensamento de Xi Jinping sobre a Cultura é também um instrumento ideológico essencial para o avanço da modernização socialista da China, a revitalização da nação chinesa e a promoção do diálogo e da amizade entre os povos e as civilizações. O objetivo principal desse ensaio é discorrer sobre o sistema geral desse Pensamento, refletir sobre seus elementos estruturadores e, de forma mais específica, abordar algumas questões relacionadas à cultura. Para tanto, o artigo está estruturado em três partes. Na primeira, trataremos sobre o contexto social e histórico que motivou o surgimento do Pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas na nova era. Em seguida, discorreremos sobre quatro pilares onde se sustenta o referido Pensamento. E, por fim, abordaremos o tema da “Segunda Integração”, uma inovação teórica que defende a fundição no campo cultural dos princípios básicos do marxismo com a milenar civilização chinesa.

1) Sobre o surgimento do Pensamento de Xi Jinping   

Um dos grandes acontecimentos políticos do 19º Congresso Nacional do Partido Comunista da China (PCCh), realizado em outubro de 2017, foi a inclusão do Pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas para a nova era no Estatuto do Partido. Pouco tempo depois, em março de 2018, a 1ª sessão anual da 13ª Assembleia Popular Nacional também o incluía na Constituição da República Popular da China. Vale a pena pontuar que, na prática, esse Pensamento passou a ser a orientação política dominante no país desde o 18º Congresso Nacional do PCCh realizado em outubro de 2012, quando Xi Jinping foi eleito Secretário-Geral do Partido. Em plena aplicação e aprofundamento, é o Pensamento de Xi Jinping que atualmente comanda o Partido, direciona a governança do país e sua modernização socialista, impulsiona a revitalização da nação e estabelece as diretrizes principais para a atuação internacional da China.

Desde que a China deu início ao processo de reforma e abertura no final dos anos 70, as mudanças da sociedade chinesa foram muito intensas e em uma escala sem precedentes, em todos os aspectos. No início da política de reforma e abertura liderada por Deng Xiaoping, o foco da governança passou a ser o desenvolvimento das forças produtivas em quatro áreas-chave, isto é, agricultura, indústria, ciência e tecnologia e forças armadas. As “quatro modernizações”, na visão de Deng, eram uma condição necessária para se atender as demandas mais elementares da população, materializar a construção de uma sociedade moderadamente próspera, fortalecer o Estado e avançar com o desenvolvimento nacional.

Em 1992, Deng Xiaoping assim observava: “!Que extraordinario sería se en el espacio de cien años, contados a partir de la fundación de la República Popular, lográramos convertir el nuestro país en un país de desarrollo intermedio!” (Deng Xiaoping, Textos Escogidos, Tomo III. Beijing, 1994, Ediciones de lenguas extranjeras, p. 397). Na prática, o que Deng almejava para 2049 fora alcançado em praticamente metade do tempo desejado e, por isso mesmo, um novo desenho era necessário. Como principal agente do processo histórico, econômico e social em curso, o Partido estava mais uma vez desafiado.

No Livro das Mutações, um clássico da civilização chinesa com mais de 3000 anos, há uma passagem que diz: “É perigoso mudar repentinamente, mas também é perigoso não mudar” (Yi Jing, Hexagrama 49 – Revolução).

Coube a Xi Jinping perceber que depois de mais de quatro décadas de um intenso desenvolvimento das forças produtivas, o desenho apresentado por Deng Xiaoping havia atingido seus propósitos essenciais. Na visão de Xi, superado o desafio inicial do desenvolvimento das forças produtivas, a principal contradição da sociedade chinesa passara a ser entre a crescente demanda do povo por uma vida melhor e o desenvolvimento desequilibrado e insuficiente.

Aparentemente sutil, essa constatação sobre a mudança da contradição principal exigia do Partido uma nova postura e novas proposições, tanto de natureza teórica como prática. Devido ao ritmo acelerado do desenvolvimento e as profundas transformações psíquicas, econômicas, tecnológicas e sociais, a demanda do povo por uma vida melhor passou a agregar peculiaridades novas e complexas. Desse modo, já que o desenvolvimento das forças produtivas havia deixado de ser um problema central, o foco da governança deveria ser a qualidade desse desenvolvimento. Nesse sentido, em vez de se impulsionar o avanço de setores específicos como nas “quatro modernizações”, era necessário avançar na modernização socialista como um todo, isto é, não só o desenvolvimento da infraestrutura, mas principalmente o da superestrutura.

Ao contrário das décadas iniciais da reforma e abertura, quando o país era majoritariamente rural, a China governada por Xi Jinping já era majoritariamente urbana, tecnologicamente avançada e interconectada ao mundo. Internamente, o horizonte educacional, financeiro, de trabalho e de consumo dessa juventude que já nasceu em uma China urbanizada é muito diferente do imaginário de satisfação almejado pela geração de duas ou três décadas atrás. E externamente, essa sua projeção de poder intensificou novas tensões e rivalidades.

Evidentemente, essa nova realidade exigia um desenho novo e respostas teóricas e práticas adequadas às exigências dos tempos, assim como o estabelecimento de um novo horizonte de desenvolvimento com metas, prazos e caminhos bem delineados. O Pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas para a nova era foi essa resposta e o sonho chinês de revitalização da nação esse desenho.

Essencialmente, foram fixadas duas grandes metas, isto é, “os dois centenários”. A primeira, já alcançada em 2021 por ocasião das comemorações do centenário de fundação do Partido, focava-se na eliminação da extrema pobreza e no estabelecimento de um padrão de vida moderadamente próspero. A segunda, em pleno curso, tem por objetivo a construção até 2049, ano do centenário de fundação da República Popular, de “um país socialista moderno, próspero, poderoso, democrático, harmonioso e culturalmente avançado” (Trecho de uma fala de Xi Jinping durante uma visita à exposição o Caminho da Revitalização, no Museu Nacional ” – Beijing, 29/11/2012). 

Concebido o corpo básico do Pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas na nova era, o Partido passou também a sistematizar e a divulgar algumas de suas partes mais específicas. Assim, temos atualmente o Pensamento de Xi Jinping sobre o Estado de Direito, cujo foco é a equidade jurídica e a governança baseada na Lei; o Pensamento de Xi Jinping sobre o fortalecimento das Forças Armadas, essencial para garantir a soberania e salvaguardar os interesses nacionais nessa nova era; o Pensamento de Xi Jinping sobre a Economia, que articula desenvolvimento econômico com proteção ambiental, assim como a prosperidade econômica com o bem-estar das pessoas; o Pensamento de Xi Jinping sobre a Civilização Ecológica, que enfatiza a preservação ambiental e a importância de uma coexistência harmoniosa entre o ser humano e a natureza, pois “águas limpas e montanhas verdes são tão valiosas quanto montes de ouro e prata”; o Pensamento de Xi Jinping sobre a Diplomacia, cuja finalidade principal é o desenvolvimento global, a manutenção de um ambiente internacional seguro, a preservação da paz mundial e a promoção da construção de uma comunidade de futuro compartilhado para a humanidade; e ainda o Pensamento de Xi Jinping sobre a Cultura, cujo foco é a integração entre os princípios básicos do marxismo com a cultura tradicional chinesa.

2) Quatro pilares do sistema de Pensamento de Xi Jinping

Para se entender melhor o sistema de Pensamento de Xi Jinping é preciso ter em mente que Xi é um pensador de tradição marxista inserido dentro da longeva civilização chinesa.

Crescido em um país de civilização longeva e educado dentro do próprio Partido, Xi Jinping habituou-se desde cedo a refletir sobre os desafios históricos do Partido, as grandes questões humanas e os problemas da governança em um país grande e populoso. Testado na prática, foi desde muito jovem desafiado a encontrar soluções eficientes e inovadoras para problemas complexos. No geral, no seu sistema de Pensamento, a teoria e práxis andam sempre juntas e suas análises e proposições nunca partem de uma especulação idealista ou fragmentária da realidade, mas de situações objetivas e demandas sociais concretas.

Em linhas gerais, pode-se dizer que o sistema de Pensamento de Xi Jinping sustenta-se em quatro pilares básicos: o Partido, o Povo, o País e a Humanidade como um todo. Metaforicamente, essas quatro partes são como os pedestais de um grande vaso de bronze Ding (鼎) retangular, símbolo de poder e de unidade na China antiga. Esses pedestais servem não apenas para sustentar o vaso, mas para formar junto com o recipiente principal uma peça única, esteticamente atrativa e merecedora de ser utilizada, por exemplo, nos rituais de gratidão pelas boas colheitas.

No caso do Pensamento de Xi Jinping, dos quatro elementos acima mencionados, o Partido é a espinha dorsal da China atual. Alimentado ideologicamente pelo marxismo desde que foi criado em 1921, o Partido foi capaz de feitos extraordinários como garantir a unidade territorial do país, construir um projeto próprio de desenvolvimento nacional, eliminar a extrema pobreza, melhorar a qualidade de vida de toda a população e transformar o país em um dos principais atores internacionais desse século XXI.

Ainda sobre o Partido e a aplicação do marxismo à realidade chinesa, vale destacar que na China o marxismo nunca se configurou como uma ideologia vinda de fora impondo um novo jeito de pensar capaz de desconfigurar a alma chinesa. Ao contrário, ele foi sempre percebido pelos jovens que ingressaram no Partido desde sua fundação como uma arma indispensável para salvação da própria China. Por se mostrar indispensável à organização, funcionamento e formação ideológica do Partido, o marxismo foi sendo pouco a pouco adaptado pelo PCCh ao solo chinês, para também ser enriquecido pela tradição política, filosófica e civilizacional do país. Como bem realçou Xi Jinping: “Desde a reforma e abertura, o PCCh combinou os princípios fundamentais do marxismo com a realidade da reforma e abertura da China, e a nação que se levantou tornou-se rica. (…) “É perfeitamente correto que a história e o povo escolham o marxismo, assim como o PCCh escreva o marxismo em sua própria bandeira e siga o princípio de combinar os princípios fundamentais do marxismo com a realidade da China, adaptando-o continuamente ao contexto chinês e aos tempos”. (Xi Jinping, Discurso em comemoração aos 200 anos de Marx, Beijing, 04/05/2018).

Graças a essa fusão dos princípios fundamentais do marxismo com a realidade da China, sob a liderança de Mao Zedong, o Partido foi capaz de dominar a lei da guerra de libertação nacional e instaurar em outubro de 1949 a República Popular, passo essencial para a restauração da soberania e a construção de um novo país. Da mesma forma, sob a liderança de Deng Xiaoping, o Partido encontrou o caminho necessário para se reerguer economicamente, melhorar a qualidade de vida de milhões de chineses e, no plano internacional, assumir um protagonismo de novo tipo. Nessa mesma linha, já sob o comando de Xi Jinping, além de se eliminar a extrema pobreza e concluir a construção de uma sociedade moderadamente próspera, o Partido tem direcionado suas forças para a modernização socialista do país, a revitalização da nação e a construção de um futuro compartilhado para humanidade.

Se o Partido é o instrumento, a felicidade e o bem-estar do povo é a razão principal da força e da existência do próprio Partido. Em 2013, por ocasião de uma visita de inspeção à aldeia Miao de Shibadong, na Província de Hunan, uma aldeã perguntou-lhe: – “Como devo te chamar?”. Xi Jinping respondeu-lhe: – “Sou um servidor do povo”. Aparentemente singela, essa resposta demonstra a centralidade do povo no sistema de Pensamento de Xi Jinping.

Por se falar no povo chinês, são praticamente inumeráveis os atributos que expressam sua força criativa. Por exemplo, a habilidade de observar a natureza e os seus ciclos; o domínio das águas para o cultivo de cereais, a genialidade de criar, há pelo menos 3000 mil anos um sistema próprio de escrita que ao ser utilizado, aperfeiçoado e desenvolvido assumiu um papel único na sua coesão civilizacional; a capacidade de dominar a natureza e construir grande obras; a arte de governar o país visando o bem comum; as profundas reflexões filosóficas sobre a vida e as relações humanas; o apreço pela documentação e pelo registro de acontecimentos naturais e históricos; a arte de grafar os pensamentos em pedra, ossos, bambu e papel; a capacidade de transformar a escrita em obras de arte; a habilidade de expressar e transmitir por diversos meios, geração após geração, aspirações comuns e uma visão de mundo própria; ou ainda, o amor pelo país, o orgulho por sua cultura, o apreço ao conhecimento e ao trabalho, a valorização dos estudos, da amizade, além de um conjunto de preceitos éticos, etc. Aliás, muito desses atributos têm ultrapassado as próprias fronteiras da China e se espalhado pelos quatro cantos do mundo.

Como verdadeiro construtor da longeva civilização chinesa e o criador de suas riquezas materiais e culturais, o povo chinês aprendeu na prática que a unidade, a harmonia e a paz são condições essenciais para a prosperidade e o bem-estar social.

Um terceiro pilar que sustenta o Pensamento de Xi Jinping é o seu próprio país, a China. Sua unicidade talvez resida no fato de possuir uma vasta área territorial e um numeroso povo – são mais de 1 bilhão e 400 mil chineses atualmente – alimentado por uma evolução civilizacional ininterrupta de mais de 5000 anos. “A civilização chinesa se distingue por sua continuidade. É a única grande civilização ininterrupta que perdura até hoje em forma de Estado. Isso afirma inequivocamente a identidade cultural e a robusta vitalidade da civilização chinesa, pois ela respondeu a desafios e abriu novos caminhos por meio do autodesenvolvimento. (…) Somente pelo prisma de sua extensa história de continuidade se pode compreender a China antiga, a China contemporânea e, principalmente a China do futuro”. (Xi Jinping – Discurso na Reunião sobre Herança Cultural e Desenvolvimento.

Em que pese a extensão territorial e a diversidade da paisagem e de costumes, as marcas desse longevo processo civilizacional imprimiram-se de forma tão profunda na terra e no coração das pessoas que ambos, terra e povo, são parte de uma mesma identidade. Para um chinês, o País é o seu lar permanente e por isso, quando necessário, é preciso defende-lo para sua própria continuidade enquanto povo.

Sobre o quarto pilar que sustenta o Pensamento de Xi Jinping, a humanidade como um todo ocupa um lugar proeminente. Isto se pode observar de forma mais detalhada no seu Pensamento sobre a Diplomacia. Nesse sentido, uma série de princípios, conceitos e iniciativas como “Cinturão e Rota”; “Desenvolvimento Global”; “Segurança Global”; “Civilização Global”; “Diálogo entre as civilizações”; “Benefício mútuo e cooperação ganha-ganha”; e “Comunidade de um Futuro Compartilhado para a Humanidade” que, na prática, visam um mesmo fim, isto é, assegurar um ambiente internacional pacífico, próspero e amistoso onde os povos possam conviver harmoniosamente e respeitosamente.

Em um discurso pronunciado em Paris no dia 27 de março de 2014 na sede da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Xi Jinping deixou bem claro sua visão: “Os intercâmbios e os aprendizados mútuos enriquecem as civilizações”. “Não existe uma civilização perfeita no mundo, nem uma civilização desprovida de méritos. Nenhuma civilização pode ser considerada superior a qualquer outra”. “Atualmente, as pessoas vivem em um mundo composto por diferentes culturas, etnias, religiões e sistemas sociais. Os povos dos países já se tornaram membros de uma comunidade de destino comum em que cada um tem em si um pouco dos outros”. “Devemos incentivar as diferentes civilizações a se respeitarem mutuamente e conviverem em harmonia para que os intercâmbios e aprendizados mútuos se tornem uma ponte que promova a amizade entre os povos, um motor que impulsione o progresso da sociedade humana e um vínculo que cimente a paz mundial. Precisamos absorver a sabedoria e força das diferentes civilizações para oferecer o suporte espiritual e consolo psicológico às pessoas e trabalhar de mãos dadas para superar os desafios enfrentados pela humanidade”.

Esses quatros pilares do sistema de Pensamento de Xi Jinping condensam uma compreensão profunda de que o bem-estar do povo, a modernização socialista da China e a revitalização da nação chinesa não podem prescindir nem do marxismo, cuja seiva alimenta o PCCh, nem do DNA civilizacional chinês, cuja seiva alimenta a nação chinesa. Do mesmo modo, dado o estágio de interdependência e interligação da humanidade, Xi Jinping compreende que o destino da China e do seu povo está diretamente conectado ao destino geral dos demais países e povos e vice-versa. Pois, “não importa como o mundo evolua, é inalterado um fato básico – existe apenas um planeta Terra no universo e toda a humanidade tem um mesmo lar. O nosso futuro compartilhado depende da Terra, e temos de cuidar bem dela e deixar um lar feliz para as futuras gerações” (Xi Jinping, trecho do discurso feito na Conferência do 70º Aniversário dos Cinco Princípios de Coexistência Pacífica. Beijing, 28/06/2024).

3) A cultura é a alma

O tema da cultura tem ocupado um lugar central tanto nas reflexões políticas e filosóficas de Xi Jinping, quanto na sua prática de governança. Na visão de Xi, a cultura tradicional da China é a “raiz e a alma” da nação chinesa e, por isso mesmo, todo esse legado cultural, material e imaterial, deve ser abraçado, protegido, estudado, revitalizado, usufruído e transmitido para as gerações futuras. Para Xi, a confiança cultural é uma condição essencial para a unidade da nação, o avanço da modernização socialista da China, a revitalização da nação chinesa e a promoção do diálogo e da amizade entre o povo chinês e os demais povos do mundo.

Poderíamos mesmo dizer que a cultura é a alma que alimenta todo o sistema de Pensamento de Xi Jinping, tanto na sua concepção mais geral, isto é, o Pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas na nova era, como nas suas expressões mais específicas, como por exemplo, o Pensamento de Xi Jinping sobre a Civilização Ecológica, o Pensamento de Xi Jinping sobre a Diplomacia, o próprio Pensamento de Xi Jinping sobre a Cultura, etc.

É importante ter sempre bem claro que essa valorização da tradição não se dá de forma mecânica e acrítica, muito pelo contrário. O que Xi Jinping tem sempre enfatizado é a necessidade de se assimilar as grandes contribuições do legado civilizacional da China, reelaborá-lo e adaptá-lo às demandas do tempo presente e à causa da modernização socialista da China.

Isso é algo semelhante ao que percebeu Lenin: “O marxismo conquistou sua significação histórica universal, como ideologia do proletariado revolucionário,  porque  não  rechaçou,  de modo  algum,  as  mais  valiosas  conquistas da  época  burguesa,  mas  pelo  contrário, assimilou  e  reelaborou  tudo  o  que  houve de  valioso  em  mais  de  dois  mil  anos  de evolução  do  pensamento  e  da  cultura  da humanidade.”  (Lenin: A Cultura Proletária, escrito em 8 de outubro de 1920).

Na cultura tradicional chinesa sabemos que os exemplos são mais valiosos do que as palavras. Entretanto, quando os exemplos dão sustentação às palavras e as palavras servem para propagar os bons exemplos e estimular a sua prática, o valor passa a ser inestimável. Na sua prática de governança, Xi Jinping sempre reservou um tempo para se reunir com acadêmicos e estudantes, visitar instituições de pesquisas, museus, sítios arqueológicos, centros de pesquisa e de preservação de documentos históricos, etc, tudo com a finalidade de aprofundar o conhecimento sobre o seu próprio país e promover o conhecimento científico e cultural.

Quando era secretário do Partido na província de Zhejiang,  Xi Jinping compartilhou as seguintes reflexões: “Certa vez um filósofo fez a seguinte comparação: a política é a estrutura óssea, a economia é a carne e a cultura é alma. (…) A cultura é essencialmente determinada pela economia e a força econômica providencia uma plataforma na qual o poder cultural pode exercer a sua eficácia. Todavia, nenhuma economia pode se desvincular do apoio da cultura (…). O papel do poder cultural na orientação do sistema político é muito claro. O ambiente cultural na sociedade produz um efeito assimilativo nas pessoas que vivem nela e, assim, torna-se uma forma possante e perene para sustentar a sociedade e a nação, de geração em geração (…) Quando a cultura avançada é integrada com os elementos humanos mais ativos das forças produtivas, a qualidade da força laboral aumenta basicamente, a complexidade do objeto do trabalho se expande”. (A Cultura é a Alma – 12 de agosto de 2005.)

Em um outro texto publicado quase no mesmo período, Xi Jinping pondera: “Os nossos ancestrais criaram uma cultura incomparável, uma parte fundamental da qual é a cultura hehe (“和合”). O primeiro “he” (和) indica harmonia, paz e equilíbrio. O segundo “he” (合)  indica convergência, unidade e cooperação (…) Este é um ideal cultural que a nossa população persegue e aspira. A harmonia entre a natureza e a sociedade e entre o indivíduo e o grupo é o ideal do nosso povo e a base para a nossa coesão e criatividade”. (A Cultura gera a Harmonia – Zhejiang, 16 de agosto de 2005.)

Na prática da governança, a aplicação dessa filosofia de trabalho adotada por Xi Jinping quando era Secretário do Partido em Zhejiang (2002 a 2007), foi fundamental para preparar e transformar a província em uma referência nacional e internacional na área de preservação ambiental, prosperidade econômica e valorização do patrimônio cultural, tanto material quanto imaterial. São bons exemplos, seus esforços para preservação das ruínas Liangzhu, importante testemunho arqueológico das primeiras formas de urbanização na civilização chinesa; o Grande Canal Beijing-Hangzhou, um exemplo magnífico do domínio técnico-científico, da força do trabalho e da capacidade de conceber e concretizar grandes obras visando a integração do país; o Lago do Oeste, um jardim chinês de grandes proporções, símbolo da harmonia entre o ser humano e a natureza; a valorização memória histórica revolucionária, como a do pequeno Barco Vermelho, no Lago Sul de Jiaxing, local onde se concluiu o 1º Congresso do Partido Comunista, etc.

Já a nível nacional, após ter sido eleito no 18º Congresso Nacional do PCCh em 2012 para comandar o Partido e o país, Xi Jinping continuou a aprofundar suas reflexões e a demonstrar com exemplos e ações a relevância da questão cultural para a modernização socialista da China e a revitalização da nação. Graças à profundidade de suas reflexões e seu empenho pessoal, a consciência geral do Partido e da sociedade chinesa sobre a importância da preservação e valorização da cultura tradicional chinesa atingiu um novo patamar. É cada vez maior a quantidade de pesquisadores dedicados ao tema da cultura tradicional e inúmeros são os museus e espaços culturais que se erguem por toda a China.

São muitos os exemplos que demonstram o empenho pessoal de Xi Jinping para o fortalecimento da cultura tradicional chinesa, valorização do legado civilizacional e o aprofundamento da adaptação do marxismo à realidade cultural do país. Por exemplo, no dia 30 de novembro de 2012, duas semanas após ser eleito Secretário-Geral do Partido, Xi Jinping escolheu o Museu Nacional, em Beijing, para sua primeira aparição pública. Na ocasião, ao visitar a exposição “O Caminho da Revitalização” (复兴之路), ele mencionou pela primeira vez a ideia dos “dois centenários” e do grande “sonho chinês” de modernização do país e de revitalização da nação. Um ano depois, em 26 de janeiro de 2013, ele foi a Qufu, na província em Shandong, visitar a Mansão da Família Kong, a residência dos descendentes diretos de Confúcio, e o Instituto de Pesquisa sobre o Confucionismo. Na ocasião, Xi Jinping destacou a longevidade da herança cultural da nação chinesa e sugeriu a aplicação do materialismo histórico ao estudo do pensamento confucionista instruindo para que as melhores partes fossem preservadas e minimizadas as partes menos importantes ou desatualizadas, pois assim o confucionismo passaria a desempenhar um papel positivo na nova era.

Não precisamos nos estender com tantos exemplos, mas é valioso o simbolismo das duas primeiras visitas públicas logo depois de Xi ser reeleito para seu terceiro mandato como Secretário-Geral do PCCh em outubro de 2022 no XX Congresso do Partido. Primeiro ele e os outros seis membros do Birô Político estiveram na antiga base revolucionária de Yan’an, na província de Shaanxi e em seguida foram para província de Henan visitar as Ruínas Yin, um sítio arqueológico com cerca de 3300 anos pertencente à dinastia Shang,

Em Yan’an,  Xi Jinping recordou que ali “o Partido se tornou mais maduro no sentido político, ideológico e de organização”, comparando Yan’an a “um livro que vale a pena ler para sempre”, pois serve como testemunha “da gloriosa jornada do Partido na liderança da revolução chinesa e na exploração de maneiras de adaptar o marxismo ao contexto chinês e às necessidades dos tempos”. Já em sua visita às Ruínas Yin, Xi Jinping assim expressou: “Venho aqui sedento por uma compreensão mais profunda da civilização chinesa para que possamos fazer o passado servir o presente e tirar inspirações para uma melhor construção da civilização chinesa moderna.”

Vale recordar que as Ruínas Yin começaram a revelar ao mundo um conjunto significativo de “inscrições em ossos oraculares” um dos registros mais antigos da escrita chinesa grafados em ossos bovinos e cascos de tartarugas. Também no mesmo sítio arqueológico foi encontrado o Ding “Houmuwu”, um vaso de bronze tetrápodes de 832,84 kg, um grande tesouro nacional exposto atualmente no Museu Nacional, em Beijing.

Esses exemplos servem para confirmar que a temática da cultura tradicional chinesa e do processo de adaptação e aplicação do marxismo na China estão há muito tempo impregnadas no DNA das elaborações intelectuais e no estilo de trabalho de Xi Jinping. Assim, a apresentação formal do Pensamento de Xi Jinping sobre a Cultura, anunciado durante a Conferência Nacional sobre o Trabalho Ideológico e Cultural, realizada entres os dias 7 e 8 de outubro de 2023, é apenas o coroamento desse processo.

Aliás, o Pensamento de Xi Jinping sobre a Cultura tem como inovação principal a teoria da “Segunda Integração”, cuja essência reside na integração do marxismo com a excelente cultura tradicional da China. E os princípios norteadores dessa nova teoria, assim como sua relevância histórica e implicações para a modernização socialista, se tornaram públicas no início de junho de 2023, em um discurso feito por Xi Jinping sobre Herança Cultural e Desenvolvimento.

No referido discurso, Xi Jinping destaca cinco características essenciais da civilização chinesa, sobre as quais deve se assentar essa integração:

a continuidade: “Se não fosse pelo prisma de sua extensa história de continuidade, não se poderia compreender a China antiga, a China contemporânea, e muito menos a China do futuro”;

a criatividade, um elemento que a permite manter a civilização viva e sempre;

a unidade: “Através de experiências amargas, o povo chinês aprendeu que a unidade e a solidariedade trazem prosperidade, enquanto a fragmentação nacional e a agitação geram adversidade”;

a inclusividade: que “define a abertura da cultura chinesa para abraçar e se inspirar em outras culturas”;

e a pacificidade: “A China permanece comprometida em promover trocas e aprendizado mútuo entre diversas civilizações sem nunca buscar hegemonia cultural”.

Nessas cinco características estão a chave para conectar o passado chinês ao presente e conectá-lo ao futuro, isto é, concretizar o grande sonho da nação chinesa, cuja essência reside na prosperidade e fortalecimento do país, na revitalização da nação, na felicidade do povo chinês e na construção, junto com os demais povos e civilizações, de um futuro compartilhado para humanidade, onde a mentalidade da paz possa finalmente triunfar.

Para concluir este ensaio, compartilhamos uma instigante “profecia” feita por Wang Tao (1828-1897), um pensador chinês do século XIX que contribuiu diretamente com o escocês James Legge (1815-1897) no processo de tradução dos clássicos do confucionismo para língua inglesa. Ponderava ele: “Os nossos antigos sábios fizeram uma distinção entre o Dao (道), um modo de vida virtuoso, e o Qi (器), utensílios, ferramentas… Portanto, as grandes invenções que as potências ocidentais estão a usar para invadir a China serão usadas pelos sábios de uma era futura como meio para a unificação dos modos de vida de todas as nações da terra”. (Shih, Hu (1936). The Chinese Renaissance).

O sinólogo português Pe. Joaquim Guerra, na sua introdução do clássico “Escrituras Selectas” (Livro dos Documentos), que narra diversos acontecimentos políticos da antiguidade chinesa, também faz menção a essa citação de Wang Tao, mas acrescenta em seguida que “O prodígio chinês ai continua em pé, a pedir uma explicação razoável: Um povo inteligente, que sobrevive há tantos milhares de anos, e cresce assombrosamente num desafio ao futuro! Grande alma deve ter este povo” (Macau, 1980)!

Vale salientar que na cultura tradicional chinesa, a conjunção de sábios governantes é algo muito frequente e comum. Se o processo de prosperidade econômica e estabilidade social iniciado com a reforma e abertura continuar, essa deve ser a tendência dos seus governantes.

Nota: as ideias principais desse texto foram publicadas originalmente em chinês no dia 14 de abril de 2024, na primeira página do Jornal da Academia de Ciências Sociais da China.

José Medeiros, Potiguar, natural de Touros (RN), é professor e diretor do Centro de Estudos de Brasil na Universidade de Estudos da Internacionais de Zhejiang, em Hangzhou – China.

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG