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Luiz Eduardo Soares: Medo, política e segurança pública

24 de outubro de 2024

A segurança pública “não pode ficar restrita ao círculo de policiais, juristas e especialistas”, defende o professor Luiz Eduardo Soares.

Há bastante tempo, quem atua na área de segurança pública ou realiza pesquisas sobre o tema, com seriedade intelectual e compromisso ético, tem chamado a atenção para o fato de que aí se inscrevem desafios cruciais para a democracia no Brasil. Em outras palavras: segurança é problemática indissociável da questão democrática. Portanto, não pode ficar restrita ao círculo de policiais, juristas e especialistas. Deve integrar a agenda política, em posição de destaque. Afinal, diz respeito à qualidade de vida e à própria vida do conjunto da população, sobretudo dos segmentos sociais mais vulnerabilizados. Além disso, ao contrário do que determina a Constituição, as corporações policiais não têm sido submetidas adequadamente ao controle externo, que deveria ser exercido pelo Ministério Público, e tampouco efetivamente comandadas pela autoridade política estadual, por delegação da soberania popular.

Por isso, venho insistindo, há décadas, que as polícias se converteram em enclaves institucionais, refratários à Constituição, à autoridade civil, ao Estado democrático de direito. Na prática, trata-se de um insulamento gravíssimo, análogo ao que acontece com as Forças Armadas, cujo efeito é a ruptura entre autoridade e poder. Conclusão: os governos que não se alinharem às corporações armadas, serão seus reféns. O exame detalhado de cada um desses pontos exigiria dezenas de páginas. Este artigo se limitará a explorar alguns aspectos do impacto da insegurança para o que se costuma denominar qualidade de vida e seus desdobramentos políticos (deixando provisoriamente de lado as restrições à liberdade de circulação e, nas áreas mais pobres, de organização e manifestação, já suficientemente destacadas no debate público).

A referida qualidade não se esgota no plano objetivo dos acontecimentos diários; engloba também – se nos é permitido esse dualismo simplificador – a esfera subjetiva, a qual, por sua vez, não existe isoladamente, é sempre também inter-subjetiva, quer dizer, é experimentada coletivamente, nas interações, no exercício da sociabilidade. Nas conversas de bar, na esquina, no elevador, na igreja, no trabalho, na escola, no clube, em casa com a família, e, cada vez mais, nas redes sociais.

Quem vive com medo, vive apreensivo e tenso. A tensão não é fenômeno restrito à ordem psíquica, instala-se no corpo, impacta o funcionamento de todo o organismo. O psíquico é corpóreo, e vice-versa. Assim como a ordem social depende da estabilização generalizada de expectativas – positivas quanto à cooperação social, se a ordem for benigna, como é desejável no Estado democrático de direito -, a calibragem equilibrada da tensão rege dinâmicas fisiológicas saudáveis.

O medo é uma emoção indispensável ao processo evolutivo da espécie e à sobrevivência individual. Em doses (quanto à intensidade e à frequência) que não inibam reações, o medo aciona o sinal de alerta à consciência e tende a orientar decisões preventivas e defensivas proporcionais e eficientes. Entretanto, seu excesso e sua constância representam ameaças. Tudo fica mais complicado quando reconhecemos que o medo prescinde de circunstâncias ou fatos diretamente experienciados ou testemunhados. Pode ser provocado pela suspeita de que algo temível ocorra. Suspeita, nesse contexto, é a focalização – processo cognitivo que dispara a proto-percepção engatada ao campo afetivo (e vice-versa) – de uma imagem, uma ideia, um vislumbre ou uma hipótese negativa quanto ao futuro, imediato ou mediato. Em outros termos, conceber uma hipótese (nesse caso, sempre já uma experiência física e psíquica) relativa ao futuro do próprio sujeito ou de pessoas próximas corresponde a formar uma expectativa, a qual, por sua vez, corresponde a uma vivência que se dá no presente. Vivência que é plena mesmo que derive de suposições e relatos falsos – a irrealidade caracteriza o objeto referido na narrativa que instila o medo, não a experiência do sujeito, que é necessariamente real, ou não seria experiência.

Retornamos, assim, à categoria “expectativa”, que soa banal mas desempenhou papel decisivo na fundação do pensamento político ocidental moderno e continua sendo estratégica para as ciências sociais. Se nos governamos por expectativas, no cotidiano, mergulhamos o presente no mel ou no veneno de versões de acontecimentos que muitas vezes foram geradas longe de nós, mediadas pela intervenção de redes, meios de comunicação e interpretações alheias, intervenção comprometida com ideologias e interesses econômico-políticos diversos. Práticas hostis não raro chegam a nós embrulhadas em linguagens plenas de valores, preconceitos e inferências. A materialidade que nos envolve e nos inscreve na luta de classes e em tramas de conflitos históricos, mesmo tendo sua substância (salário, transporte, moradia, vulnerabilidade a eventos climáticos extremos, etc), ganha sentido pleno quando seu significado imediato se conecta ao conjunto de histórias que contamos a nós mesmos (e aos outros) sobre o mundo, das quais quase sempre não somos os enunciadores originários.

É nesse contexto que emergem os sentidos (e afetos) associados à insegurança pública. Os fatos relativos a agressões e ameaças se entrelaçam à substância mesma de nossa vida diária – assim como as ocorrências significativas que nutrem nosso imaginário, nosso conhecimento e nossa memória – e nos alcançam arrastando consigo uma floresta de símbolos, uma constelação de valores, uma visão de mundo articulada, uma ideologia. Aquilo que denominamos insegurança pública, e que marca boa parte da sociedade brasileira a ferro e fogo com a insígnia do medo, é parte inseparável de uma esfera mais ampla que nos estrutura como sujeitos: a esfera em que saberes, afetos e valores circulam em nós e entre nós, moldando ou condicionando e limitando nossos atos, nossas escolhas, nossos juízos e nossas expectativas.

Afetando corpo e mente, sentimentos e imaginário, modelando condutas, incidindo sobre valores e visões de mundo, a insegurança diz respeito tanto à política, aos códigos regentes da sociabilidade e à percepção sobre os outros, quanto à saúde pública, não apenas quando alguém é vítima de algum ato físico (ou agressão moral), mas também quando tem relações próximas com quem o sofre, ou quando participa do circuito (ativo e intenso) do medo. Vale reiterar: o medo pode ser produzido por relatos os mais diversos, envolvendo personagens conhecidos ou desconhecidos. Relatos verificáveis ou não, verdadeiros ou não, fielmente descritos ou não. A dor que o medo provoca, incidindo sobre a mente e o corpo, pode ser desestabilizadora, desestruturadora, até mesmo fulminante e letal. Exemplos da unidade sistêmica do fenômeno poderiam ser citados: a tensão inflamada pelo medo (não importa se as causas têm origem real ou fantasiosa, o que vale é sua assimilação) pode provocar um pico de pressão, um acidente vascular e/ou uma crise de pânico, um desastre físico e uma catástrofe psicológica, com sequelas imprevisíveis.

Assim como determinadas patologias, por contágio ou ação de veículos transmissores, têm potencial epidêmico, o medo têm extraordinária propensão expansiva, dada sua plasticidade discursiva e imaginária (encontrando na metonímia sua correia de transmissão, por assim dizer, natural), especialmente em um ambiente simbólico de raízes históricas coloniais e escravagistas, fortemente permeado por racismo e patriarcalismo, estruturado sobre as bases de profunfa divisão de classes. Explico. Adotemos aqui a definição mais prosaica: metonímia é a figura que descreve o ato de linguagem em que se toma a parte pelo todo. Da imagem de uma arma, passa-se à mão que a empunha, daí ao braço, ao gesto, ao corpo. Que gesto, que intenção e qual corpo estarão imaginariamente contidos na imagem de uma arma? O gesto será o de ameaça; a intenção, um assalto ou algo pior. Provavelmente, numa sociedade profundamente racista e organizada pelo capitalismo autoritário e espoliador, a resposta sobre o corpo, o personagem, apontará para o perfil de um homem pobre e negro. Assim como tudo o que estiver sobre a mesa cai no chão quando a criança puxa a toalha, o fundo mais remoto da escravidão e a brutalidade inscrita na relação entre as classes serão evocados, quando o enlace metonímico, acionado pelo medo e por seus signos, arrastar o campo associativo da insegurança. 

Num contexto como esse, qual tenderá a ser a implicação política? O apoio a lideranças que se identificarem com os signos do poder – metonimicamente associado a força – e com as tradições consolidadas – afirmando virtudes conservadoras. Lideranças que se opuserem ao que implique mudança, inovação, incerteza, experimentação, flexibilidade (democracia), ainda que esses líderes reacionários e essas tradições sejam responsáveis pela reprodução das condições que favoreceram a emergência e a expansão dos atos que suscitam medo e que se deseja evitar. Como seria admissível que os insatisfeitos com o status quo, no qual reina o medo, venham a repelir a mudança? É fácil compreender: mudança abre a porta para o desconhecido, portanto para o imprevisível, sendo razoável que, mergulhados na incerteza, busquemos nos ancorar nos hábitos mentais, nas crenças, nas referências estáveis (ou assim percebidas) que nos ajudam a navegar. Por outro lado, a situação atual tende a ser avaliada em perspectiva – não em qualquer uma, mas naquela que se funda na idealização do passado. Assim, o presente aparece à consciência como degradação do passado, como perda, decadência. A mudança desejável seria a restauração do passado perdido, isto é, corresponderia a uma espécie de rasura do tempo: deveria ser abolida a mudança corrosiva, aquela que teria produzido este presente degenerado. A mudança cujo sinônimo é a queda (as analogias bíblicas e arquetípicas não são arbitrárias) daria lugar ao trabalho de reparação e reconstrução. Lideranças autoritárias e regimes fechados revelam-se mais capazes de falar a linguagem da queda, denunciando-a e a demonizando, para exorcizá-la. As tarefas da restauração exigem força, e o vocabulário da luta se desloca para o pantanoso terreno das teogonias, colocando em cena a “profanada” simbólica da redenção. Não se trata de competência técnica ou planos de governo. Para parte expressiva da população, a vasta experiência de dolorosa imprevisibilidade, cultivada pela selvageria neoliberal, se soma à epidemia do medo, engendrada pelos dramas da segurança pública, pavimentando o paradoxal endosso político do algoz e viabilizando o eterno retorno do neoliberalismo, crescentemente – e cada vez mais despudoradamente – abraçado ao fascismo. Como nos ensinou Montesquieu, nos séculos XVII e XVIII, o medo é o princípio da tirania.

Luiz Eduardo Soares é antropólgo, cientista político, escritor, ex-secretário nacional de segurança pública.

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG