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Nádia Campeão: Cidades sob pressão

26 de outubro de 2024

Ex-vice-prefeita de São Paulo, Nádia Campeão defende a reestatização dos setores da energia, comunicação e saneamento.

E fez-se o apagão. Menos de um ano depois do último acontecido, novamente a cidade de São Paulo enfrenta algo que deveria ser coisa rara na vida do maior e mais poderoso centro urbano do país. Mais de 2 milhões de pessoas ficaram sem energia e, na sequência, parte deles sem água, por quatro dias. Imagine-se o drama: todos na vizinhança na mesma situação, em bairros inteiros, nenhuma geladeira para se socorrer, nenhuma luz para passar a noite e circular nas ruas, bares e restaurantes semi-fechados e combalidos, e pior, árvores caídas nas vias, carros e até casas atingidos, fios elétricos rompidos, semáforos apagados. E a longa espera por informações, por serviços, pela volta à normalidade – quatro dias parecem uma eternidade.

No meio do desalento e da revolta, já se fala em incluir entre os bens das residências um gerador! E ter guardados um estoque de velas e caixa de fósforo. Realmente, a modernidade neoliberal não nos deixa esquecer o passado.

A chuva e o vento nem foram tão intensos e nem começou ainda a temporada das chuvas fortes em São Paulo. Sobre isso, não se pode interferir. A questão é: o quanto a população está atendida pelos serviços básicos, como está sendo defendida, como será protegida nos casos extremos? É inescapável trazer para o primeiro plano as três esferas do Poder Público, cada qual com sua parte de responsabilidade. Ainda que a principal responsabilizada seja uma empresa privada de energia, no caso a Enel, há muito envolvimento público a considerar.

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A Enel, vejam só, é uma empresa italiana de energia, fundada como estatal e depois privatizada. A Eletropaulo era uma empresa estatal, criada em 1981 e responsável pela energia elétrica em São Paulo. Em 1998, o governo do Estado desmembrou e privatizou a empresa, que passou a se chamar AES Eletropaulo. Em 2018 foi feito um novo leilão e a empresa foi comprada pela Enel. A Enel deve ser regulada e fiscalizada pela ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica).

A ANEEL é uma autarquia vinculada ao Ministério de Minas e Energia e foi criada em 1996, juntamente com outras agências reguladoras, para supostamente defender o interesse público depois que este mesmo interesse público foi jogado no lixo das privatizações de setores estratégicos como energia, comunicações e mais recentemente, do saneamento e abastecimento de água.

É preciso registrar que a sanha privatista foi desencadeada pelos governos do PSDB, tanto no Estado de São Paulo, quanto no governo federal quando presidido por Fernando Henrique Cardoso. Atualmente, convive-se com o fato consumado. Aqueles que sendo governantes, mas guiados pelos interesses do setor privado, como o governador Tarcísio de Freitas e o prefeito de São Paulo Ricardo Nunes, nem sabem e nem querem – de fato, não de aparência – usar de autoridade para exigir qualquer responsabilidade perante a empresa. Aliás, o governador apressou-se a dizer que isso não acontecerá com a recém-privatizada, por ele, Sabesp. Ou seja, a população de São Paulo não tem um Poder Público capaz de realmente defendê-la.

O governo federal fica nos marcos institucionais de cobrar da Aneel um papel que há muito tempo estas agências não exercem, se é que exerceram em algum momento, capturadas que são pelos interesses das próprias empresas que deveriam fiscalizar. Com raras exceções, é disso que se trata em relação às agências nacionais reguladoras.

De volta à cidade, quase nenhum alento que não seja solidariedade entre os próximos e um debate estridente em meio ao segundo turno eleitoral, com justa cobrança do candidato da oposição Guilherme Boulos ao atual prefeito. Sob sua gestão não há plano consistente de enfrentamento das chuvas, não há investimentos na Defesa Civil, não há rigoroso acompanhamento dos serviços de poda de árvores nem de manutenção da rede elétrica e semafórica, muito menos iniciativa política concreta de exigir resultados.

Estes são temas que devem comparecer com força na agenda de debates e lutas dos progressistas e da esquerda no país e nas cidades. Serviços essenciais são de fato essenciais e devem estar sob responsabilidade direta do Poder Público o que nos leva à necessária reestatização dos setores da energia, comunicação e saneamento. As agências reguladoras precisam ser reconstruídas. Prevenção às intempéries causadas pelos fenômenos naturais e mudanças climáticas exigem planos consistentes de proteção e mitigação. A Defesa Civil de estados e municípios precisa estar à altura dos eventos de maior gravidade. A discussão com a população sobre este “caos urbanos” – e o Rio Grande do Sul ainda sofre para se recuperar – precisa ser muito mais esclarecedora e mobilizadora.

De fato, não são boas as notícias que envolvem o presente e futuro das nossas cidades.     

Nádia Campeão é engenheira agrônoma com especialização em gestão pública. Foi Secretária de Esportes, Secretária de Educação e Vice-Prefeita da Cidade de São Paulo. É membro do Conselho Curador da FMG.

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG