Economia: Bancos privados exigem demais e fazem muito pouco
Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre desenvolvimento nacional e socialismo da Fundação Maurício Grabois, Diogo Santos defende que o governo Lula eleve o papel dos bancos públicos. Foto: Agência Brasil.
Recentemente o governo federal e a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) anunciaram a criação de um grupo de trabalho (GT) no âmbito do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável (CDESS) para elaborar propostas para reduzir o custo do crédito no país. Sem dúvidas, os gargalos do mercado de crédito e, de modo mais amplo, do financiamento da atividade econômica, é um dos obstáculos ao desenvolvimento brasileiro. Contudo, a lista de medidas propostas pela Febraban tem o conteúdo de sempre: exigir mais garantias para os bancos em troca da promessa de reduzirem os juros. O problema estrutural é outro e nele os bancos privados não querem tocar.
Como demonstrou Marx, o sistema de crédito é uma alavanca chave da acumulação de capital. Isto porque é o sistema de crédito que liberta as empresas de crescerem limitadas pelo lucro acumulado no período anterior e as permite acelerar os investimentos acompanhando o ritmo de crescimento da demanda e a necessidade de competir umas com as outras pelo controle do mercado. O que também ficou demonstrado pela experiência dos países que se industrializaram após a Inglaterra é que, quanto maior o salto produtivo e tecnológico que o país precise realizar, mais decisivo se torna o funcionamento adequado do sistema de crédito.
Ocorre que no Brasil, e não é de hoje, o crédito é escasso e caro. Entre países subdesenvolvidos comparáveis, o Brasil está entre as menores proporções da relação entre crédito para as empresas e produto interno bruto (PIB), uma forma de medir o volume das operações de crédito de um país. Segundo dados do Banco de Compensações Internacionais (BIS), essa relação está em torno de 50% para o Brasil nos últimos anos, acima apenas de México (22%) e África do Sul (30%), e abaixo de Índia (55%), Turquia (65%), Rússia (70%), Chile (100%) e China (160%). Quanto ao custo do crédito, entre esses mesmos países, o Brasil é de longe o que possui a maior diferença entre os juros pagos pelos bancos para captar recursos e os juros cobrados nas operações de crédito aos clientes, o chamado spread bancário. Dados da Fitch, agência de classificação de risco, mostram que até antes da pandemia, enquanto o spread estava entre 2% e 3% para os demais países com exceção do México (5%), no Brasil o patamar era de 7%.
Temos no país, portanto, um problema relevante para o desenvolvimento. Mas como enfrentá-lo? As propostas da Febraban são sempre na direção de que o problema não está nos bancos e sim nos clientes. Logo, a solução é aumentar o poder dos bancos em acessar os bens dos devedores, vincular os empréstimos ao desconto automático nos salários e receitas dos clientes e o Estado assumir com recursos públicos parte do risco do crédito, por meio da criação de novos fundos garantidores de crédito. Um exemplo de medida proposta é a reformulação do crédito consignado para trabalhadores da iniciativa privada para destravar o crescimento dessa modalidade. Essa medida é sintomática de outra característica disfuncional do sistema bancário no Brasil nos últimos anos: os bancos ofertam mais créditos para consumo das famílias do que crédito para a produção e investimento das empresas.
A verdade é que os governos sempre se mostraram dispostos a atender os pleitos dos bancos privados e realizaram rodadas de mudanças institucionais para assegurar a lucratividade dos bancos ao diminuir o risco inerente ao ato de emprestar recursos. Nos primeiros governos Lula várias mudanças foram implementadas, entre elas, a mais famosa, a criação do crédito consignado. No governo Temer, entre outras medidas, um grande golpe foi dado a favor da garantia da lucratividade dos bancos privados com a extinção da vantagem competitiva que o BNDES possuía ao poder adotar uma taxa de juros, a TJLP, abaixo do mercado. Mesmo neste governo Lula, por meio da Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, já foram realizadas mudanças para ampliar as garantias que os bancos possuem ao emprestar (como tomar posse de modo célere de um automóvel financiado em caso de inadimplência). Agora, mais um conjunto de propostas da Febraban está sobre a mesa. Não há dúvidas de que o governo, mais uma vez, buscará atender aos pedidos, sobretudo diante da necessidade de manter estímulos ao crescimento econômico no curto prazo, em um ambiente em que o regime macroeconômico é hostil ao desenvolvimento e as eleições presidenciais já estão ali na esquina. Mas o governo deveria fazer mais que isso. Deveria apontar na direção das reformas que condicionem o sistema financeiro na direção de servir ao desenvolvimento do país.
Particularmente, a alta concentração da oferta de crédito em poucos bancos, a segunda maior entre os países citados anteriormente, precisa ser enfrentada, para citar apenas um grande problema. A elevada concentração concede aos bancos privados um grande poder de ditar as condições do mercado de crédito. E, ao mesmo tempo, concede a eles uma elevada margem para não contribuírem com o país nos momentos de maior necessidade. Por exemplo, no período imediatamente após a crise capitalista global de 2007/2008 os bancos privados se concentraram em preservar sua rentabilidade, deixando para os bancos públicos a tarefa de ampliar a oferta de crédito, assumindo riscos maiores. É também essa elevada concentração que coloca os governos sempre na posição de terem que negociar mais e mais reformas para reduzir risco e assegurar a rentabilidade dos bancos.
Em uma ocasião esse problema chave foi diretamente enfrentado. No primeiro governo da presidenta Dilma Rousseff, foi tocado no ponto nefrálgico ao orientar os bancos públicos a reduzirem as taxas de juros dos empréstimos. Além do contexto internacional, essa medida foi essencial para se verificar a redução dos spreads ocorrida naquele período. E, mais importante, foi o principal experimento de tentativa de quebrar o domínio privado sobre as condições do crédito no país, lidando assim com um tema crucial para o desenvolvimento nacional, desde o período do nacional desenvolvimentismo. Essa e outras posições do governo estiveram na raiz das motivações para o movimento que levou ao golpe de 2016. Mas é preciso frisar que aquela medida surtiu efeito e, principalmente, demonstrou que os problemas do mercado de crédito no Brasil não são apenas falta de garantias e risco elevado para os bancos, e, sim, uma imposição dos grandes bancos privados acostumados a moldarem o sistema financeiro do país desde a ditadura militar.
O governo Lula deve, portanto, elevar o papel dos bancos públicos em oferecer condições de crédito melhores e também acelerar o crescimento dos financiamentos do BNDES. Precisa voltar para a agenda a revisão da decisão do TCU que impede o Tesouro de capitalizar o BNDES por meio da captação de recursos com emissão de títulos de dívida. Mas também é necessário que o Conselho Monetário Nacional – formado pelo ministro da Fazenda, ministra do Planejamento e presidente do Banco Central – encare a discussão da urgente elevação da meta de inflação e da revisão do fim da TJLP. A primeira discussão para diminuir o viés anti-desenvolvimento da política monetária e a segunda para reduzir o custo do crédito para os setores estratégicos para a nova industrialização.
Diogo Santos é economista e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Desenvolvimento nacional e Socialismo da Fundação Maurício Grabois.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.