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Rafael Leal: O principal recado das urnas para a esquerda: precisamos reconquistar o eleitor ganho pela picanha e cerveja em 2022

31 de outubro de 2024

Presidente da UJS, Rafael Leal defende que “o mais importante é não perdermos a convicção de que o caminho é reafirmamos um projeto que possa apontar mudanças estruturais na vida das pessoas e não cairmos nas ideias de que a moderação irá nos salvar”.

Passado o primeiro turno das eleições, muitas análises têm surgido sobre os dilemas da esquerda frente ao resultado eleitoral pouco expressivo. No quente do momento sentenças são proferidas e narrativas mirabolantes surgem, desde aquelas que decretam o fim da esquerda até as que maquiam o resultado para dizer que está tudo bem. As eleições municipais envolvem elementos locais, não se pode absolutizar ou generalizar esses resultados, mas elas apontam tendências e trazem recados que são preciosos para correções de rota e mudanças na forma da esquerda atuar na sociedade. É importante também colocá-las em perspectivas históricas, aos pessimistas demais, vamos lembrar que em 2020 estávamos apanhando ao sair nas ruas de vermelho, aos com exercício exagerado de otimismo vamos lembrar que estamos no governo federal e isso nos dá mais oportunidades de avançar em bases importantes. 

Feito este preâmbulo, acredito que estas eleições trouxeram muitas lições e recados para o campo da esquerda. Por óbvio, não vou tratar de todos eles num artigo de algumas linhas. Vou me concentrar no que eu acho que é o recado central e os diagnósticos e tarefas que partem dele. O que as urnas nos disseram centralmente é que precisamos reconquistar, e se possível organizar politicamente, o eleitor que foi ganho com o discurso da picanha e da cerveja nas eleições de 2022. A primeira pergunta importante é: quem é esse eleitor? São aquelas pessoas que “prosperaram” no Lula 1 e 2 e depois caíram de renda com a crise econômica, que nos acertou em cheio em 2014. Este setor ficou conhecido como nova classe média (ou nova classe trabalhadora). Aqui vamos chamá-los de ex nova classe média, apesar de não gostar do termo nova classe média usarei para fins didáticos e explicativos.

A segunda e decisiva pergunta é: por que num cenário onde voltamos ao poder central e temos um quadro econômico de pleno emprego, crescimento do PIB, controle da inflação, aumento da renda dos trabalhadores e o retorno de programas sociais importantes não conseguimos fidelizar essa camada social? A resposta desta pergunta nos leva a duas principais insuficiências do governo e da esquerda no Brasil hoje: uma agenda de desenvolvimento tímida e pouca capacidade de gerar agitações e disputas políticas e ideológicas na sociedade em torno de um projeto.  

Nos governos Lula 1 e 2 a geração de emprego, aumento da renda e políticas sociais foi suficiente para amarramos eleitoralmente tanto as classes mais baixas como a “nova classe média”. Este processo rendeu, por exemplo, a eleição de Dilma na presidência e Haddad na prefeitura de São Paulo, figuras com nenhuma experiência eleitoral que foram vitoriosas com a força dessa agenda. A aposta que Lula 3 faz é a mesma dos primeiros governos: governar as mornas para não tensionar com o centro político e manter a frente ampla que o elegeu, garantir estabilidade econômica sem fazer mudanças estruturais, gerando emprego e melhorando a renda, para manter amarrado esse eleitorado das camadas mais baixas e a ex nova classe média. O raciocínio parece bom, mas qual o problema para fechá-lo? O avanço acelerado do neoliberalismo, do ponto de vista econômico e ideológico, dos últimos anos. Explicarei na próxima seção.

O cerco neoliberal e a mercantilização da sociedade: a chave para entender o pouco impacto dos números positivos da economia na votação da esquerda

Com o avanço do neoliberalismo no mundo e no Brasil, principalmente após o golpe de 2016, a mercantilização da vida passou para níveis muito maiores que no primeiro ciclo dos nossos governos. O emprego gerado depois da reforma trabalhista e do aumento da desindustrialização é informal e precário. O aumento da renda é corroído por serviços cada vez mais caros por conta da privatização e da destruição da capacidade do Estado de controlar os preços de serviços essenciais, como a energia, por exemplo. Até mesmo o futebol, outrora lazer e sociabilização importante da classe trabalhadora foi mercantilizado ao ponto de afastar o povo dos estádios. O sucateamento do SUS faz milhões de brasileiros ficarem amarrados a planos de saúde com reajustes absurdos. Mês passado o Mercado Público da minha querida Belo Horizonte virou Mercado Central KTO, isso pode não ter afetado os preços lá dentro, mas simbolicamente é a expressão da mercantilização extrema da vida. 

Portanto, é neste contexto de forte avanço do neoliberalismo que as mudanças, que classifiquei como tímidas, na política econômica não surtem efeitos na melhoria da vida das pessoas. Linera estava certo quando em entrevista afirmou que para a esquerda voltar a ter capacidade de direção da sociedade deveria “resolver de maneira estrutural a pobreza da sociedade, a desigualdade, a precariedade dos serviços, a educação, a saúde e a habitação.”  O caminho que apontamos hoje para a política econômica está longe de resolver estruturalmente esses problemas. Alguns podem afirmar que depois de seis anos de sequestro do estado nacional pelo capital financeiro estamos indo até onde a correlação de forças permite. Eu concordo com isso, escrevi sobre em um artigo de balanço de um ano do governo Lula, mas é aqui que reside o segundo problema. Se não existe correlação de forças para ir mais além, tampouco existe disposição de travar uma luta política e de ideias para alterar essa correlação de forças. 

O cerco ideológico da nova razão (neoliberal) do mundo e a extrema direita

Dardot e Laval foram certeiros ao diagnosticar que o neoliberalismo não é só um modelo econômico, mas sim uma nova razão de organizar a vida. Nesta nova razão as ideologias do empreendedorismo individualista, da luta individual por sobrevivência, da meritocracia e de espantalhos para resolver problemas sistêmicos acabam tendo terreno mais fértil. Ou seja, vivemos um modelo de organizar a produção e vida em que as relações sociais que surgem daí constituem um caldo cultural mais propício para crescimento das ideias políticas da extrema-direita. A subjetividade neoliberal é ante sala das ideias neofascistas hoje. 

A ex nova classe média não quer saber do discurso de igualdade, ela não quer achatar a pirâmide social. Ela quer voltar a subir novos degraus e através do discurso sedutor e de mobilização de ressentimentos a extrema-direita convenceu que o Estado, imigrantes, feministas, LGBT’s, a esquerda de modo geral, são inimigos para essa ascensão. Por isso deve nos preocupar muito as novas lideranças que incorporam em sua trajetória de vida melhor esse discurso, pois eles terão mais aderência entre esse público que “subiu de vida” e com a crise “caíram”. Sem contar que o aspecto menos militarizado pode atrair mais jovens, como Marçal já demonstrou em São Paulo. 

Portanto, além de medidas tímidas de mudanças estruturais, vivemos um tempo em que a razão hegemônica é propícia para as ideias da extrema-direita e da direita, que mais organizada e financiada consegue explorar bem isso. É neste cenário de cerco econômico e ideológico por parte das frações da classe dominante que se alinham à direita autoritária para levar a cabo um projeto neoliberal autoritário que estamos nos movimentando. Por isso, os mesmos remédios do passado não curam os novos sintomas de uma nova doença. 

O caminho para reconquistar a ex nova classe média e formar uma maioria social

Nesta quadra alguns vão apontar que o caminho agora é ir mais ao centro, pois precisaremos mais que nunca deles para vencer a extrema-direita eleitoralmente em 2026. Claro que precisaremos do centro para vencer as eleições de 2026, mas o centro acompanha quem tem mais tração política na sociedade, pois eles mesmos não tem. Eles só sobrevivem de parasitagem e lobby para as frações de classe que eles representam, não existe hoje um líder de centro com capacidade de formar maioria. Nós só vamos ter tração política se conseguirmos ganhar as classes mais baixas e a ex nova classe média e só iremos ganhar esse setor se tivermos mudanças significativas na estrutura econômica e um discurso e pautas de agitação que possam sinalizar um rumo de mudança estrutural da vida como ela é hoje.  

Tensionar o governo à esquerda não pode ser visto como enfraquecer o governo, pelo contrário. Assim como negar o Lulismo e dizer que ele está superado não é o caminho. Ainda é Lula que consegue arregimentar, mesmo que eleitoralmente, as camadas mais baixas da sociedade. Precisamos dentro deste campo político criar convicções de que o caminho para a vitória eleitoral e, mais importante ainda, o caminho para formar uma nova geração e um novo movimento de esquerda, com novas formas organizativas e linhas discursivas não é ir em direção a moderação. 

Guardadas as devidas proporções, é o caminho que Petro escolheu na Colômbia e vem dando alguns frutos. Todas as grandes mudanças significativas na América Latina vieram de grandes jornadas e mobilizações, precisamos mesmo sendo governo conseguir produzir uma nova onda de luta que possa gerar desejo e consiga engajar as pessoas no nosso processo de crítica ao sistema e de transformação do mesmo. Caso contrário, quem irá conduzir o ressentimento da população, principalmente desta que caiu de renda no último período, será a extrema-direita e o terreno para eles é mais fértil, como foi exposto acima. 

Bandeiras como taxação das grandes fortunas, críticas às privatizações, mais investimentos públicos, diminuição da jornada de trabalho, denúncia das oligarquias financeiras serão fundamentais no próximo período. O professor Lincoln Secco, em seu artigo “A Esquerda Empreendedora”, trouxe um apanhado bem concreto de como podemos enfrentar o tema do empreendedorismo e do mundo do trabalho sem capitular a ideologia neoliberal. Creio que no percurso vamos ter a inteligência necessária para descobrir as pautas e formas organizativas. O mais importante é não perdermos a convicção de que o caminho é reafirmamos um projeto que possa apontar mudanças estruturais na vida das pessoas e não cairmos nas ideias de que a moderação irá nos salvar. O que ganhou a eleição foi defender o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda, para garantir cerveja e picanha, ou seja prosperidade, para todos. Esse discurso precisa se materializar ou no mínimo sinalizarmos e agitarmos nossa intenção de persegui-lo. 

Rafael Leal, Cientista Social (PUC-MG), Mestrando pelo PROLAM-USP, Presidente Nacional da União da Juventude Socialista (UJS) e membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil.

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG