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Estoques de grãos: os traumas do passado não podem paralisar a política pública de segurança alimentar

9 de novembro de 2024
Luiz Rodrigues defende a política do atual governo de retomar estoques de grãos e de outros alimentos.

Luiz Rodrigues defende a política do atual governo de retomar estoques de grãos e de outros alimentos.

A segurança alimentar de um país é um pilar fundamental para seu desenvolvimento. Os estoques de grãos, nesse sentido, desempenham um papel estratégico, garantindo o abastecimento e a estabilidade de preços, mesmo em tempos de crise. Recentemente, o Brasil retomou a política de formação de estoques públicos de grãos, depois de um período de redução que vinha ocorrendo de forma contínua desde 2016. Este tipo de ação, inclusive, foi uma das promessas de campanha do atual governo. As enchentes do Rio Grande do Sul elevaram as preocupações com eventual possibilidade de falta de alimentos básicos, tal como o arroz, o que não veio, felizmente, a se concretizar, mas deste modo fomentou-se ainda mais este debate. A verdade é que os estoques de grãos no país nunca foram debatidos para além de um pequeno círculo de especialistas e interessados. No entanto, dada sua importância para a segurança alimentar essa deveria ser uma discussão mais ampla, para que as decisões governamentais na área tivessem o devido suporte ao longo do tempo e maior previsibilidade.

Parte do problema da opacidade do debate se deve à formação de especialistas e operadores da área que foram traumatizados pelos escândalos de corrupção e má gestão dos estoques públicos que vieram à tona principalmente nos anos 1980. Foi comum ver cenas de fraude na política agrícola vigente, inclusive com fraudes de estoques, em silos que deveriam estar cheios de grãos, conforme constava nos documentos oficiais, mas que, quando verificados, se mostravam incompletos e com grãos que já não estavam em condições de consumo. Se não bastasse essa amarga experiência, no começo dos anos 1990, o Governo Collor funde três empresas públicas, uma de distribuição de alimentos, outra de armazenagem e outra de financiamento da produção na Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) sem dotá-la das ferramentas necessárias para a integração de culturas tão distintas e sem recursos para a manutenção de suas infraestruturas básicas. Daí e durante todo o período dos anos 90, os estoques foram sendo reduzidos e encarados pela área fiscal do governo como um custo demasiado e pela área de controle e mesmo por seus operadores como uma área em potencial para surgimento de corrupção e malversação de recursos.

Isso tudo em conjunto levou a um consenso silencioso entre boa parte dos especialistas da área, muitos deles inclusive funcionários da Conab e do Ministério da Agricultura. Tal consenso era de que estoques públicos de grão são um problema, um custo demasiado e que não deveriam ser incentivados, de modo que o racional seria sua redução ao longo do tempo. Não é preciso ter muito conhecimento na área para perceber que tal tipo de raciocínio estava jogando fora o bebê junto com a água. É verdade sim que estoques de alimentos costumam ter algum custo para sua manutenção e que esse tipo de uso compete com outros usos nobres como prestação direta de serviços de saúde e educação no orçamento público. No entanto, é preciso levar em conta os benefícios dessa política pública.

A função mais importante dos estoques de grãos é, sem dúvida, a segurança alimentar. No contexto mundial de rivalidades geopolíticas e conflitos bélicos tal função é, sem dúvida, ainda mais importante. No caso dos dois alimentos básicos do Brasil, o arroz e o feijão, o tipo desses grãos ao que o brasileiro está habituado e sabe preparar no dia a dia não encontra grandes correspondentes no mercado mundial. Ainda que o arroz seja um dos cereais mais consumidos no mundo, este tipo longo, agulhinha, é bem peculiar do Brasil. Já o feijão tem outra particularidade, o de tipo marrom (carioquinha, a variedade mais comum dele) não suporta muito tempo de armazenamento, perdendo suas características e palatabilidade, o que faz com que estoques de feijão devam ser feitos majoritariamente de feijão preto. Isto posto, é importante que o Brasil possua estoques mínimos para estes dois produtos, assim como outros igualmente relevantes para a alimentação básica, tal como farinha de mandioca.

Além da segurança alimentar sob a óptica do abastecimento mínimo emergencial, os estoques servem também para dar estabilidade aos preços, balizando oferta e demanda. Obviamente, existe risco de uso exacerbado de tais instrumentos que pode distorcer demasiadamente a produção levando à quebra de expectativas e, consequentemente, queda nos investimentos, reduzindo a produção. No entanto, se bem empregados tais instrumentos são importante auxílio às cadeias agroindustriais. Especialmente no caso da indústria de proteína animal – como no caso da carne de frango, da carne de porco, do leite (e seus derivados) e do ovo, – os estoques de grãos como os de milho (ou sorgo) e, em menor proporção, os de soja, são importantes para dar estabilidade na produção e para manter preços competitivos tanto para abastecimento interno de tais proteínas quanto para torná-las competitivas no exterior e assim trazer divisas em moeda estrangeira para o país.

Assim, fica claro que é acertada a decisão do atual governo de retomar estoques de grãos e de outros alimentos. O susto do Rio do Grande do Sul pode ter sido um importante balizador nessa discussão. Mas no atual contexto de ajuste fiscal, o ritmo de recomposição de estoques pode se dar em ritmo mais lento do que originalmente esperado. É evidente que não dá para recompor um grande volume de estoques num período muito curto de tempo sem criar grandes rupturas no mercado, e isso não seria desejável. Deste modo, há mesmo que ter alguma tranquilidade para sua recomposição, mas é importante nesse diapasão que a sociedade faça um debate mais amplo sobre o papel dos estoques para a segurança alimentar. Um país que se projeta mundialmente, que tem algumas ambições e que deseja se desenvolver precisa ter um sistema de estoques que seja proporcional às suas necessidades. Os traumas do passado no uso de tais instrumentos não devem ser pretexto para impedir seu uso necessário no presente e no futuro. Antes é preciso aprender a utilizar corretamente as ferramentas fazendo benchmark necessário com outros países, quando necessário. Tal arcabouço é parte importante para a construção de um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento, para criar as condições necessárias para uma sociedade mais justa e próspera no Brasil.

Luiz Rodrigues é consultor legislativo do Senado Federal, ex-secretário executivo adjunto do Ministério da Agricultura e Pecuária, é engenheiro agrônomo, pós-graduado em relações internacionais e mestre em desenvolvimento e governança

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG