He Ganqiang: diferenças entre a economia chinesa e a soviética (Parte 1)
Primeira parte do artigo do economista chinês, He Ganqiang, publicado originalmente na Research on Political Economy, 2024, edição nº 3. A tradução é de Gabriel Martinez.
O que nos impediu de cair na tragédia histórica das “reformas” soviéticas?
I. Introdução
A Decisão do Comitê Central do Partido Comunista da China sobre o aprofundamento das reformas para avançar a modernização ao estilo chinês (doravante denominada “a Decisão”), aprovada na Terceira Sessão Plenária do 20º Comitê Central do PCC, afirma claramente: “Devemos continuar a melhorar e desenvolver o sistema de socialismo com características chinesas e promover a modernização do sistema de governança nacional e da capacidade de governança” [1]. Esse é o objetivo geral para o aprofundamento das reformas e do desenvolvimento. A Decisão também estabelece a meta de concluir as tarefas de reforma até 2029, coincidindo com o 80º aniversário da fundação da República Popular da China.
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Este grande movimento de reforma, liderado por nosso Partido e voltado para promover a prosperidade comum de toda a população chinesa por meio da autossuficiência e do trabalho árduo, exige que nos apeguemos aos princípios orientadores do marxismo e rompamos com as amarras de diversas ideologias errôneas. Conforme apontado pelo 20º Congresso Nacional do PCC: “A prática nos mostra por que o Partido Comunista da China é capaz de alcançar resultados e por que o socialismo com características chinesas funciona. Em última análise, isso ocorre porque o marxismo é eficaz, e o marxismo adaptado ao contexto chinês e aos desafios do nosso tempo também o é. Contar com a orientação científica do marxismo é o que permite ao nosso Partido manter firme sua fé e convicção e assumir o protagonismo na condução da história” [2].
Focando no aprofundamento das reformas dentro do sistema econômico socialista, devemos aderir inabalavelmente aos princípios orientadores da economia marxista, traçar uma linha clara com a economia burguesa ocidental e manter sempre uma mente lúcida. Só assim poderemos tomar a iniciativa no trabalho econômico e avançar de forma constante em direção à modernização ao estilo chinês. Este artigo visa delinear alguns entendimentos-chave sobre este assunto.
II. Adesão à Economia Marxista para Guiar a Construção da Economia de Mercado Socialista
O secretário-geral Xi Jinping apontou que o rascunho da Decisão enfatizou “o papel fundamental da reforma do sistema econômico” e esclareceu que “aprofundar a reforma do sistema econômico” é o foco da reforma abrangente [3]. Isso reflete os requisitos da visão materialista da história, já que as atividades econômicas formam a base material dos movimentos multilaterais da sociedade. Portanto, para avançar a modernização ao estilo chinês, devemos primeiro alcançar a modernização econômica ao estilo chinês, com o foco em aprofundar a reforma do sistema econômico, “centrada na construção de uma economia de mercado socialista de alto nível”.
Desde 1992, a China propôs claramente o estabelecimento de uma economia de mercado socialista. Com base em mais de 30 anos de prática, experiência e lições aprendidas, elevar o nível deste sistema econômico exige que insistamos na orientação da economia marxista. Há muito tempo existe um debate significativo sobre se devemos usar a economia marxista ou a economia burguesa ocidental como princípio orientador para entender a economia de mercado socialista.
Uma visão influenciada pela ideologia econômica neoliberal internacional que distorce a economia marxista em relação à dialética entre produção e circulação. Ela exagera o papel condicional que a circulação de mercado pode desempenhar na determinação da produção social sob certas circunstâncias, elevando-a a um papel incondicional, ao mesmo tempo em que nega que a produção geralmente determina a circulação. Essa visão opõe o desenvolvimento da circulação de mercado à propriedade pública e equipara “reforma econômica” ao desmantelamento do sistema de propriedade pública e coletiva dos meios de produção. Como resultado, a economia pública nos setores industriais e comerciais da China declinou severamente. “De 2012 a 2023, a participação das empresas privadas no número total de empresas no país aumentou de 79,4% para 92,3%, ultrapassando 53 milhões, enquanto o número de estabelecimentos comerciais e industriais individuais subiu de 40 milhões para 124 milhões”; “a economia privada absorveu mais de 80% do emprego urbano” [4].
No entanto, as empresas privadas são essencialmente de natureza capitalista. Portanto, em minha opinião, a estrutura de propriedade dos meios de produção nos setores industriais e comerciais da China agora é predominantemente privada, desviando-se das disposições dos artigos 6 e 7 da Constituição. De acordo com o princípio básico revelado por Marx de que as relações de distribuição das condições de produção (isto é, a propriedade dos meios de produção) “determinam toda a natureza e o movimento da produção” [5], uma vez que a economia pública perde sua posição dominante, isso inevitavelmente leva a sérias consequências nas relações de distribuição e outras relações econômicas. Na última década, o coeficiente de Gini da China em termos de distribuição de renda oscilou entre 0,47 e 0,465, ultrapassando a linha de alerta internacional de 0,4 e permanecendo elevado [6]. O balanço fiscal nacional anual tem consistentemente apresentado déficit, com o valor do déficit acelerando ano após ano [7]. Essas condições desfavoráveis são evidências dos danos severos causados pelo pensamento econômico neoliberal à reforma do sistema econômico da China.
A outra visão insiste na orientação da economia marxista, enfatizando que o significado científico da economia de mercado socialista é a integração orgânica da propriedade pública socialista e da circulação de mercado. Isso exige que, na prática da reforma do sistema econômico, enfatizemos consistentemente o papel de liderança da economia estatal, que está sob propriedade pública, na economia nacional. Além disso, devemos focar no papel das organizações econômicas coletivas rurais na promoção da produção agrícola. Isso, em grande medida, impediu que o desenvolvimento da economia de mercado fosse equiparado à privatização, permitindo que a China evitasse a tragédia histórica de colapso do partido e desintegração do Estado que acometeu a União Soviética em meio ao clamor por “reforma”. Também manteve a estabilidade básica da economia da China durante o processo de reforma e sustentou o crescimento do seu agregado econômico. Nos dez anos entre o 18º Congresso Nacional do Partido Comunista da China em 2012 e o 20º Congresso Nacional em 2022, “o produto interno bruto (PIB) da China cresceu de 54 trilhões de yuans para 114 trilhões de yuans, e a economia da China representou 18,5% da economia global, um aumento de 7,2 pontos percentuais, mantendo firmemente sua posição como a segunda maior economia do mundo. O PIB per capita aumentou de 39.800 yuans para 81.000 yuans” [8].
A Decisão propõe claramente o objetivo de “construir um sistema de economia de mercado socialista de alto nível”, afirmando que devemos “otimizar a eficiência de alocação de recursos e maximizar os benefícios, garantindo tanto a flexibilidade quanto o controle.” Isso fornece uma explicação clara do que “alto nível” implica. Necessariamente, isso exige o ressurgimento da economia pública socialista com base na Constituição, corrigindo a situação desfavorável da diminuição da proporção da economia pública dentro da estrutura de propriedade e alcançando a combinação eficiente de uma economia pública dominante com a circulação de mercado.
III. Adesão à Economia Marxista para Guiar a Construção do Sistema Econômico Básico
A Decisão lista “aderir e melhorar o sistema econômico socialista básico” como um elemento chave no “foco na construção de um sistema de economia de mercado socialista de alto nível”. O termo “socialista” aqui é crucial, pois indica claramente que, embora o sistema econômico básico inclua diversas formas de propriedade dos meios de produção, a economia pública deve ocupar a posição dominante, e a economia estatal deve desempenhar um papel de liderança na economia nacional. Somente assim o sistema econômico básico pode ter uma natureza socialista.
É essencial reconhecer que o sistema econômico socialista básico foi estabelecido sob a orientação da economia marxista. Esse conceito não pode ser encontrado na economia burguesa ocidental, que se baseia em uma visão idealista da história e não compreende que a propriedade dos meios de produção forma a base econômica da sociedade. A economia burguesa sempre busca defender a propriedade privada capitalista. Em contraste, a economia marxista, seguindo a visão materialista da história, reconhece o sistema econômico básico de uma sociedade com base no estado real de propriedade dos meios de produção. A Constituição da China define cientificamente o sistema econômico socialista básico com base na visão materialista da história. Se alguém ultrapassar o escopo da estrutura de propriedade e introduzir a circulação de mercado para explicar o sistema econômico básico, isso desviaria do contexto histórico e dos limites do sistema econômico básico e entraria em contradição com a visão materialista da história.
Seguindo os princípios da economia marxista, existe um conflito econômico inerente de interesses entre a propriedade pública dos meios de produção e a propriedade privada capitalista. Somente nas condições específicas da China, onde o país enfrentava o perigo de invasão colonial imperialista, houve uma unidade entre os dois sob a liderança do Partido Comunista e com base na aliança operário-camponesa, visando salvaguardar os interesses econômicos nacionais e alcançar o desenvolvimento comum. Em 1956, a China obteve uma grande vitória na transformação socialista da indústria e do comércio privados, o que foi uma aplicação criativa dos princípios da economia marxista.
Tanto a teoria quanto a prática mostram que o pré-requisito para o desenvolvimento comum de múltiplas formas de propriedade é manter a propriedade pública como a forma dominante da economia. Somente essa condição garante a aliança operário-camponesa, que protege fundamentalmente os interesses econômicos de toda a nação. Uma vez que a posição da propriedade pública declina para um papel não dominante, a natureza da economia nacional inevitavelmente se inclinará para o capitalismo. Isso levaria ao surgimento de problemas como produção espontânea, circulação de mercado anárquica, desemprego e superprodução — problemas que permitiriam ao imperialismo atacar destrutivamente a economia nacional, minando as condições para o desenvolvimento comum de várias formas de propriedade. Isso não é um alerta exagerado!
Alguns argumentam que o desenvolvimento da propriedade privada (referida como economia privada) pode aumentar o emprego e contribuir para a arrecadação de impostos pelo Estado, aparentemente sem conflito com a propriedade pública. Essa é uma visão com a qual não concordo.
Sem dúvida, dentro da estrutura do papel dominante da propriedade pública, fornecer espaço para o desenvolvimento da propriedade privada pode, de fato, oferecer várias funções auxiliares positivas para promover a economia nacional. No entanto, se a condição fundamental da dominância da propriedade pública for abandonada, esses efeitos positivos não poderão ser alcançados. Em resumo, não devemos esquecer que a modernização “ao estilo chinês” inclui inerentemente os significados básicos duplos de “socialismo científico” e “condições nacionais chinesas”. Permitir que a proporção de propriedade privada na estrutura de propriedade aumente sem controle inevitavelmente prejudicará o desenvolvimento da modernização “ao estilo chinês”.
Portanto, a interpretação dos “dois princípios inabaláveis” não deve ser abordada de uma perspectiva centrista ou comprometedora. Em relação à economia pública, é necessário “inabalavelmente” aderir e manter sua posição dominante; quanto à economia não pública, é necessário “inabalavelmente” promover a redução de sua antagonismo em relação à economia pública e garantir que ela se torne uma força auxiliar no desenvolvimento da modernização ao estilo chinês.
Para “promover as vantagens complementares e o desenvolvimento comum de várias formas de propriedade”, a tarefa mais importante é implementar o espírito da Decisão por meio do “fortalecimento, otimização e expansão do capital estatal e das empresas estatais”, garantindo o papel de liderança da economia estatal na promoção da modernização econômica ao estilo chinês.
O artigo continua na Parte 2.
Notas:
[1] Decisão do Comitê Central do Partido Comunista da China sobre o aprofundamento das reformas para avançar a modernização ao estilo chinês, People’s Daily Online (people.com.cn), 21 de julho de 2024, 16:42; Fonte: Xinhua News (news.cn). As citações subsequentes desta Decisão não terão notas de rodapé adicionais]
[2] Xi Jinping: Erguer bem alto a grande bandeira do socialismo com características chinesas e lutar em unidade para construir um país socialista moderno em todos os aspectos—Relatório ao 20º Congresso Nacional do PCC, People’s Daily, 26 de outubro de 2022, p. 1].
[3] Xi Jinping: Explicação sobre a “Decisão do Comitê Central do Partido Comunista da China sobre o Aprofundamento da Reforma e Promoção da Modernização ao Estilo Chinês”, Conselho de Estado da República Popular da China (www.gov.cn), 21 de julho de 2024, 16:49, Fonte: Xinhua News.
[4] Estes são os últimos dados oficiais sobre a estrutura de propriedade, conforme relatado por Zheng Bei, Vice-Diretor da Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma, Relatório sobre a Situação de Promoção do Desenvolvimento da Economia Privada – Apresentado na Décima Reunião do Comitê Permanente da 14ª Assembleia Popular Nacional em 25 de junho de 2024. http://www.npc.gov.cn/npc/c2/c30834/202406/t20240627_437798.html. 29 de julho de 2024
[5] O Capital, Volume 3, Editora do Povo, 2004, p. 995.
[6] Dados dos Anuários Estatísticos da China de 2017 a 2023, “Tabelas Compreensivas 1-4: Indicadores de Desenvolvimento Econômico e Social Nacional”: http://www.stats.gov.cn/tjsj/ndsj/2017-2023/indexch.htm
[7] Veja dados no Anuário Estatístico da China 2023, Tabela 7-1: Total e Taxa de Crescimento da Receita e Despesa Pública Geral.
[8] Xi Jinping: Erguer bem alto a grande bandeira do socialismo com características chinesas e lutar em unidade para construir um país socialista moderno em todos os aspectos – Relatório ao 20º Congresso Nacional do PCC, People’s Daily, 26 de outubro de 2022, p. 1.
He Ganqiang – Professor na Escola de Economia da Universidade de Finanças e Economia de Nanjing e consultor da Sociedade Chinesa de Economia Política.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG