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Carlos Azevedo escreve sobre o livro de memórias do repórter Seymour Hersh

21 de novembro de 2024
"Repórter: memórias", livro do jornalista estadunidense Seymour Hersh, saiu pela editora Todavia em 2019.

“Repórter: memórias”, livro do jornalista estadunidense Seymour Hersh, saiu pela editora Todavia em 2019.

“SE SUA MÃE DISSER QUE TE AMA É BOM DAR UMA CONFERIDA”

O livro do jornalista estadunidense Seymour Hersh é um documento monumental, não tanto pelo seu tamanho gigante (530 páginas) como pelo conteúdo revelador da alma profunda do seu país, assim como pelo estilo trepidante, irresistível, e riqueza de imagens. Ele põe você na cena que, simplificando, é o retrato pungente da política imperial dos Estados Unidos, composta de violência, guerra, conspiração, corrupção contra os outros povos, mas também contra o próprio povo. Monumental aula de jornalismo. (De um jornalismo, como ele mesmo diz, que já não se pode fazer).

E mais: Seymour é a representação acabada do mito americano de sucesso pessoal, do menino que sai da pobreza de um bairro classe média baixa de Chicago e com trabalho duro se torna uma referência mundial (self made man). 

Trabalho duro é o que ele aprendeu desde o início. Filho de um rude imigrante judeu, desde a adolescência se ocupa na lavandeira do pai estudando nos intervalos. Depois, enquanto faz universidade, trabalha em bares da periferia, convivendo com trabalhadores pobres, muitos deles negros, e imigrantes. É notável como toda essa experiência vai lhe ser útil mais tarde.

Não pensava em ser jornalista, mas para lutar contra a pobreza acaba se envolvendo na produção de jornais de bairro fazendo uma mistura de redator, repórter, gráfico e vendedor de publicidade. Diz: “naquela época minha ideia de uma reportagem de peso era uma que desse um jeito de elogiar um anunciante”.

Recusado nos jornais mais importantes acaba por ser contratado pela agência de notícias UPI para trabalhar numa pequena cidade do interior, em Dakota do Sul. O trabalho era apenas fazer um resumo das notícias da véspera às 7 da manhã. Mas tentando conhecer a região descobre que ali vivem nove tribos indígenas na mais completa pobreza, 90% de desemprego, por racismo. Por iniciativa própria escreve matéria sobre a penúria da tribo Oglala Sioux, publicada no Chicago Tribune, jornal importante do Meio-Oeste.

Em 1963, com 26 anos, consegue emprego na agência de notícias AP – Associated Press, escalado para fazer matérias sobre interesses humanos. Faz denúncia de corrupção policial, violação de direitos humanos, controle de natalidade, pressão dos negros por direitos iguais. Isso ele conhecia: trabalhou doze anos na lavanderia do pai em contato com negros. Entrevista o líder negro Martin Luther King e passa a acompanhar seu movimento. É transferido para Washington.

Vietnã: McNamara está mentindo

Em algum momento Seymour ouviu de algum jornalista veterano a frase “se sua mãe disser que te ama é bom dar uma conferida”, que ele adotaria como lema. “Ler antes de escrever”, dizia. Lia muito, lia tudo que caía em sua mão. Apurar, apurar, apurar era sua rotina. Não divulgava uma denúncia sem antes confirmá-la com uma segunda fonte.

Em 1966, os Estados Unidos estavam com mais de 380 mil soldados no Vietnã. É cético, acha essa guerra um equívoco. Mas separa a visão pessoal da responsabilidade profissional. Escalado como setorista no Pentágono testemunha diariamente as notícias oficiais sobre a guerra. Desconfia da versão do governo.

Por exemplo: uma tropa de 100 soldados caiu numa emboscada do vietcongue e foi dizimada. O general no comando mandou outra tropa que também sofreu muitas baixas. O Secretário de Defesa, Robert McNamara informa que não foi um mau resultado, o inimigo sofreu mais baixas. E que esse general até foi promovido por essa ação. Seymour contata um alto oficial que confidencia: o tal general na verdade fora rebaixado e retirado do cenário da guerra. Seymour compreende que McNamara estava mentindo para o povo. Mas não publica para não comprometer a fonte.

O The New York Times enviou um repórter a Hanói, capital do Vietnã do Norte, Harrison Salisbury, que logo depois de chegar enviou matérias relatando que Hanói estava sendo bombardeada seguidamente com destruição aleatória e vítimas civis. McNamara negou categoricamente e fontes do governo insinuaram que aquele repórter e o jornal estavam atuando como agentes do inimigo. Depois concederam que havia bombardeios em Hanói, mas só contra alvos militares.

Para furar essa barreira de desinformação, Herst entrevistou diversos altos oficiais em suas casas. Disseram-lhe que bombardeios aéreos não tinham precisão, que “as bombas nunca caem onde foram miradas”. Ele publicou isso, dizendo que o governo tinha fotos mostrando extensos prejuízos causados à cidade de Hanói e que não mais que 10 por cento dos alvos foram atingidos.  

Achava que estava praticando um suicídio profissional. Mas o Times em seguida republicou a matéria. Causou furor. Em seguida Hersh replicou contando que McNamara havia determinado que um círculo de 8 quilômetros em torno de Hanói não poderia mais ser bombardeado. Estavam confirmadas as reportagens de Salisbury.

Hersh soube que o governo estava fabricando armas químicas e biológicas de extermínio em massa além de jogar napalm para queimar as florestas no Vietnã. A justificativa era para fazer frente às armas químicas dos russos, embora não houvesse indicação de que estes estivessem trabalhando nisso. Descobriu 52 laboratórios em universidades e centros de pesquisa universitários ocupados nesse projeto, em geral em cidades do interior. Havia perigo de contaminação da população. Soube da morte de funcionários que foram contaminados e também de um entregador que entrou num laboratório na hora errada.

Entregou a matéria para seu editor na AP. Semanas depois o texto foi devolvido. O editor argumentou que era longo demais. Hersh levou o material para a revista New Republic que estava se tornando conhecida por sua oposição à guerra. Corria o risco de ser demitido da AP por publicar a matéria em outro veículo. Mas, como sempre, arriscou. Não houve manifestações de seus chefes. A série de matérias provocou protestos nas universidades e questionamentos no Congresso. Também foi convidado a escrever um livro sobre o assunto. Pediu demissão da AP e foi fazer o que seria seu primeiro livro.

Terminado o livro aceitou trabalhar como assessor de imprensa na campanha do senador Eugene McCarthy à presidência porque ele anunciava que iria acabar com a guerra no Vietnã.

Foi um período de atividade intensa, rocambolesca. Hersh descreve de modo eletrizante o caos que envolve uma campanha e a agitação em que o país estava envolvido em 1968, quando no Vietnã ocorreu a ofensiva vietcongue do Tet que chegou até à embaixada dos EUA em Saigon, e quando Martin Luther King (abril) e Robert Kennedy (junho), este pré-candidato à presidência, foram assassinados. E como tudo isso levou à desistência do presidente democrata Lyndon Johnson de se candidatar à reeleição. O que favoreceu a eleição do republicano Richard Nixon.

De volta ao jornalismo, Hersh publica o livro sobre as armas químicas de destruição em massa, causa repercussão e vira matéria de destaque no Washington Post. Seis mil ovelhas aparecem mortas na zona rural de Nevada numa área próxima a um laboratório de testes ultra secreto do Exército.

Ele publica uma série de reportagens sobre o perigo da produção dessas armas químicas e biológicas que estavam sendo produzidas para aplicar no Vietnã, mas que também eram uma ameaça para a população dos EUA. O debate acaba indo para o Congresso e toma conta da opinião pública, milhões de pessoas protestam, uma marcha em Washington reúne 500 mil manifestantes. O governo recua. O presidente Nixon determina a interrupção do programa de armas biológicas. Hersh se diz orgulhoso de haver participado. É cada vez mais reconhecido e também detestado.

My Lai, um vilarejo no Vietnã do Sul

Em 1969, aconteceu algo que ia mudar a vida de Hersh. Ele já sabia que o governo e o Exército mentiam todo o tempo sobre o Vietnã. Incomodava perceber que os sucessos na guerra eram avaliados pelo número de inimigos mortos. Foi procurado por ativista contra a guerra que lhe falou de um soldado que estava sendo processado em corte marcial pelo Exército, acusado da morte de 75 civis.

Aqui começa um momento fascinante temperado pelo faro de repórter com ajuda do acaso. Fuçando pelo Pentágono e não encontrando informação alguma cruzou com um oficial conhecido. Tinha sido ferido no Vietnã, estava mancando, fora promovido a general, e agora trabalhava no Pentágono. Conversa vai, conversa vem, pergunta ao general se sabia de alguma chacina. A resposta foi furiosa: “Você tá me dizendo que alguém que mata bebezinhos e sai por aí dizendo que está matando vietcongues sabe o que tá fazendo? (…)  Esse Calley é um lunático!”

Hersh controlou seu entusiasmo e sua discordância. Não se tratava de um louco, mas de uma ação generalizada. E agora ele tinha um nome!

Ao longo de muitas páginas Hersh conta como foi a caçada incansável, quase inacreditável, por um labirinto de dezenas de quartéis do Exército na base de Forte Bhening até conseguir encontrar, beber, comer com Calley e fazer uma entrevista exaustiva com ele.

Tinha a matéria, mas para publicá-la enfrentou uma batalha ainda maior, batendo de frente com um muro de autocensura. Os grandes jornais e revistas recusavam a publicação. Foi vendendo o material para jornais menores, o Times de Londres se interessou. Acontece um debate no Parlamento inglês. Ele dá entrevistas, faz discursos em universidades e centros de debates.

Aos poucos os grandes jornais do país vão entrando no caso. Isso ia acontecendo ao mesmo tempo que Hersh contatava outros soldados da companhia de Calley que participaram do massacre. Levou um deles para contar na TV sua participação na matança. Essa entrevista num programa de grande audiência na CBS News, na opinião de Hersh, “mudou os Estados Unidos”. Diante das contestações, que são muitas e poderosas, vai opondo novas informações, novos detalhes confirmados pelos participantes do horrível acontecimento. Vários repórteres começam a publicar matérias de outros massacres promovidos pelos soldados americanos no Vietnã, deixando claro que a matança indiscriminada de civis, mulheres, velhos, crianças, era a rotina dessa guerra. Nas estatísticas do governo constavam como vietcongues mortos.

O movimento contra a guerra cresce no país e repercute em todo o mundo. Torna-se consenso que os EUA não iriam ganhar. O governo de Nixon fica cada vez mais impopular e na defensiva.

Hersh reúne tudo num livro: “My Lai 4 um relato do massacre e sua repercussão”. Em 1970, recebe o Pulitzer, o maior prêmio jornalístico dos EUA. Em seguida, outros prêmios importantes. Ganha fama e algum dinheiro para comprar uma pequena casa em Washington. Continua desempregado.

Depois de suas matérias sobre My Lai Hersh é bem visto em Hanói e vê aceito um pedido de visto que fizera anos antes. Escreve de lá várias matérias para o New York Times. Contratado afinal pelo Times acompanha em Paris as negociações entre EUA e Vietnã que estavam paralisadas. O Vietnã recusa firmemente as propostas de Nixon-Kissinger. De volta a Washington descobre que um general punido por fazer bombardeios em desacordo com ordens superiores na verdade havia recebido ordens secretas de Nixon e Kissinger.

Watergate

Havia dois anos que os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein, do Washington Post, estavam denunciando uma conspiração do governo Nixon-Kissinger. Durante a campanha eleitoral de 1972 um grupo de cinco funcionários havia invadido o escritório do Partido Democrata para implantar escutas e espionar. Os culpados foram descobertos e o processo do escândalo que se chamou Watergate (nome do edifício) se arrastava. O Times escalou Hersh para entrar no caso. De 19 de abril a 1º. de julho de 1973 ele publicou 42 reportagens com informações exclusivas que apontavam cada vez mais para o presidente Nixon.

Convidado para um almoço com um funcionário do FBI, este ficou jogando conversa fora enquanto Hersh achava que estava perdendo tempo. O homem do FBI disse que ia ter que sair antes, mas que na cadeira em que estava sentado havia alguma coisa para ele. O cara foi embora e o repórter pegou um envelope sobre o qual o outro estivera sentado. Abriu o envelope na redação e havia nada menos do que 16 ordens de Kissinger para grampear telefones de jornalistas e funcionários do seu próprio gabinete. Avisado de que a matéria iria sair Kissinger ameaçou renunciar. Saiu e ele não renunciou. Hersh comentou: “ele mente mais do que uma pessoa normal respira”.

Além do Watergate, Hersh tornou públicos outros crimes de Kissinger: mandara bombardear secretamente o Camboja, era o mandante do grupo de “encanadores”, que faziam os grampos, e movia uma frenética guerra clandestina através da CIA contra o governo de Allende no Chile. Por tudo isso, crescia a oposição na opinião pública e no Congresso.  O governo de Nixon ficava cada vez mais ameaçado de impeachment. Diante de novos escândalos sua situação ficou insustentável e renunciou para fugir do impeachment.

A reportagem de maior repercussão foi a que revelou que a CIA, criada para atuar no Exterior, também agia dentro dos Estados Unidos e que monitorava muitos milhares de cidadãos estadunidenses. Também reportou que, desde o governo de Kennedy, Fidel Castro estava no topo da lista dos inimigos que deviam ser assassinados.

Kissinger

Depois de se demitir do Times Hersh dedicou-se por quatro anos a escrever um livro sobre Henry Kissinger. The Price of Power tem  698 páginas em que mostra os grandes crimes cometidos pela CIA e as forças armadas sob as ordens de Kissinger no Vietnã, Camboja, Chile etc. E também sua grande habilidade para não ser incriminado, tanto que não foi condenado. Ao redor dele havia uma “atmosfera vil, vingativa e paranoica”. Os críticos diziam que o livro era um amontoado de mentiras, mas quando convidados a mostrar quais afirmações do livro eram mentirosas respondiam que não o haviam lido. Nem Kissinger nem ninguém moveu processo contra Hersh.

Israel nuclear

Em 1991, Hersh publica o livro The Sampson Option em que revela ao mundo o apoio dos EUA na construção da bomba nuclear de Israel, fato que Israel não admite até hoje. Houve grande repercussão, os judeus se voltaram contra ele.  Explicou: “O que eu quis dizer não era que Israel não devesse ter bombas, mas que o apoio secreto americano tinha sido descoberto pelo Oriente Médio e transformava em piada os esforços dos Estados Unidos para impedir a proliferação de armas no Paquistão e em outras nações com ambições nucleares não declaradas”.

John Kennedy

Em seguida, Hersh remexe o passado para escrever o livro O lado escuro de Camelot  sobre o ex-presidente John Kennedy. Camelot foi uma comparação de seu governo com a corte de Alexandre Magno e os cavaleiros da távola redonda. Com riqueza de detalhes, Hersh revela os repetidos, mas inúteis esforços do presidente para  assassinar Fidel Castro, através da CIA, e usando inclusive o apoio da máfia. Kennedy queria se vingar pela derrota humilhante na Baia dos Porcos, quando a tropa enviada por ele para invadir Cuba foi totalmente derrotada.

Revela também o apetite sexual de Kennedy. O livro foi um sucesso de vendas, mas o repórter foi muito criticado. Assassinado em 1963, Kennedy era incensado pelo establishment e jogar luz sobre seu lado escuro foi visto como uma heresia.

Torres gêmeas e a guerra contra o terror

Depois do atentado de 11 de setembro de 2001 o projeto do presidente Bush filho era reorganizar e moldar o Oriente Médio, instalar democracias de estilo liberal pró-americanas em todos aqueles países. Resultado: as tropas ianques ficaram enterradas no Afeganistão e depois de 20 anos fizeram uma retirada vergonhosa. No Iraque, em que pese toda a violência e mortandade, a guerra foi mal e o que se viu foi uma guerra de guerrilha que não deu sossego para os invasores. Nos dias atuais, a situação permanece instável e o governo xiita conclama os EUA a se retirarem.

O repórter Seymour Hersh desmentiu que Saddam Hussein tivesse armas de destruição em massa. Adiante, divulgou as barbaridades cometidas pelos EUA, as torturas e humilhações cometidas contra os presos na prisão de Abu Ghraib, inclusive com fotos, com grande repercussão. Revelou que os corpos dos prisioneiros mortos durante interrogatório não eram enterrados, mas destruídos com ácido.

Pelos anos seguintes Hersh continuou. Revelou a existência de um grupo de assassinos que matou muita gente durante o governo de Bush filho. Afirmou que a derrota de Israel diante do Hezbollah, em 2006, foi muito mais séria do que se admitiu. Obama foi eleito com uma esperança de que as coisas podiam mudar na política externa, mas foi uma decepção. Mandou mais tropas para o Afeganistão, atacou a Síria violentamente e montou a farsa da morte de Bin Laden.

Aos 80 anos, em 2017, Hersh ainda trabalhava num livro sobre Dick Cheney.

Em 2018, escreveu suas memórias que terminam assim:

“Essa minha profissão é incrível. Passei a maior parte da minha carreira escrevendo matérias que questionavam a narrativa oficial, e fui muito recompensado por isso, tendo sofrido apenas um pouco. Eu não faria nada diferente”.

Atualmente tem 87 anos.

Carlos Azevedo é pesquisador do Grupo de Pesquisa da Fundação Maurício Grabois sobre a Sociedade Brasileira

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.