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Durval de Noronha: Os italianos do exterior

22 de novembro de 2024
Durval de Noronha escreve sobre as relações entre Brasil e Itália. "Pelos números apresentados, vislumbra-se claramente que a Itália, não obstante as ligações históricas parcialmente comuns, leva enorme desvantagem nos seus vínculos com o Brasil e que deixa de aproveitar um potencial extraordinário, tanto humano como econômico", avalia.

Durval de Noronha escreve sobre as relações entre Brasil e Itália. “Pelos números apresentados, vislumbra-se claramente que a Itália, não obstante as ligações históricas parcialmente comuns, leva enorme desvantagem nos seus vínculos com o Brasil e que deixa de aproveitar um potencial extraordinário, tanto humano como econômico”, avalia.

Nápoles – A República Italiana tem potencialmente muito mais cidadãos a viver no exterior do que propriamente em seu território nacional. Digo possivelmente porque poucos que têm o direito à cidadania a adquiriram, quer seja por desinteresse ou por dificuldades no seu exercício. Apenas aqueles vivendo no Brasil (cerca de 40 milhões de pessoas) e na Argentina (cerca de 20 milhões) somados equivalem à população atual da Itália. Tais números deixam de levar em consideração os descendentes de italianos a viver nos Estados Unidos da América (EUA), em número ligeiramente inferior àquele da Argentina, na Austrália, no Canadá, no Uruguai, na Venezuela e noutros cantos do mundo, deixando-se de computar aqueles residentes em países da União Europeia. Somente a cidade de São Paulo tem mais descendentes de italianos que as populações conjuntas de Roma e Milão, além de ter mais napolitanos que a própria bela e admirável cidade de Nápoles.

Uma pequena parte deste contingente de descendentes dos desterrados históricos poderia representar uma enorme contribuição de cunho econômico, social, ético e cultural à Itália, um país em ininterrupta crise política desde o movimento de unificação, em 1861. De fato, o Reino de Itália foi uma criação marcial de natureza artificial, devido a iniciativa conjunta por França e Inglaterra, no propósito de avançar sua agenda de poder contra os impérios de Áustria e Rússia. De fato, o desembarque de Garibaldi na Sicília e na península itálica foi garantido pela esquadra inglesa.

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Desde aqueles tempos, a Itália sujeita-se a potências hegemônicas, inicialmente a França e Inglaterra; a Alemanha nazista por um breve período; e, desde o final da II Guerra Mundial, os EUA, cujas forças militares ocupam o seu território até os dias atuais, direta ou indiretamente, sob o manto da OTAN. Tais forças mantém armas nucleares que não estão sob o controle do governo italiano, não obstante colocarem o país como alvo, em caso de conflito militar. Ao perder a capacidade de formulação de política externa; a possibilidade de criar uma política monetária pela adesão ao Euro; e ter limitado por influências exógenas o seu potencial econômico, social, político, cultural, humanístico e ético, a Itália chafurda numa crise permanente.

Devido à natureza, tanto brutal, como desalmada da unificação, os muitos refugiados da miséria imposta aos habitantes do antigo Reino das Duas Sicílias emigraram para o exterior, durante ou imediatamente após uma cruenta guerra civil. Foi uma lúgubre fuga em massa, um exílio coletivo, um desesperado salto no escuro dado pelas vítimas de um verdadeiro genocídio, de acordo com os critérios legais posteriores. Essas, que não falavam a língua italiana, como 93% dos habitantes da península, foram na prática consideradas cidadãs de Estado inimigo pelo Reino de Itália e não tiveram acesso a qualquer direito em sua nova ordem jurídica.

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Abandonados, esquecidos, discriminados e desprezados, aqueles exilados construíram novos países e, de um lado, aliviaram o custo do erário italiano para, de outro, encher os seus cofres com as remessas do exterior feitas em libras esterlinas ou dólares, através do Banco di Napoli, com o objetivo de prover a manutenção dos parentes que permaneceram. O exílio dos pequenos proprietários rurais ademais facilitou a formação de latifúndios pouco produtivos e a concentração de rendas em setores parasitários e decadentes da sociedade.

É sabido que um dos muitos males da submissão a Estados hegemônicos é a cegueira estratégica, causada pelo vezo de seguir a voz do(s) dono(s). Esta condição traz diversas implicações nefastas, mas aqui vale apenas mencionar o desdém com que os emigrantes peninsulares têm sido tratados pelos diversos governos italianos desde 1861. As enormes comunidades itálicas do Brasil (da Argentina e dos EUA) não tiveram o benefício sequer do ensinamento da língua italiana, idioma que não existia quando do maior movimento imigratório. As iniciativas educacionais do Reino de Itália para os imigrados no Brasil foram, e ainda são, vergonhosamente nulas. Muito mais fizeram (e fazem) os governos da Alemanha e do Japão. Durante o tenebroso governo de Mussolini, pior ainda, foram apenas empreendidas ações de propaganda fascista.

Não obstante, as comunidades itálicas mantiveram os vínculos culturais com a terra de origem, expressos nos valores do trabalho, da solidariedade proletária e do sindicalismo, na religião, na música e noutras manifestações culturais. Os imigrantes promoveram a tolerância ao se miscigenar com elementos de outras etnias, virtude que tem se feito algo escassa na Itália. No Brasil, eles replicaram a rica cultura gastronômica de sua origem e hoje consomem abundantemente produtos de manufatura italiana, para além de visitar a Itália como turistas. Muitos se tornaram empreendedores de enorme sucesso, bem como profissionais e artistas de projeção internacional. Milhões se tornaram prósperos.

Muitos, mas não todos, mostraram ou mostram interesse em manter os vínculos com o país de origem de seus ancestrais, mediante a aquisição da cidadania. A maior parte daqueles que o demonstram pretende apenas o exercício do direito e desconhece a língua italiana, idioma que não foi o de seus ancestrais e ao cujo aprendizado não tiveram acesso. Outros desejam a oportunidade de proporcionar aos filhos uma educação na Itália. Há aqueles que querem investir naquele país, já que a globalização econômica abriu oportunidades que inexistiam há poucas décadas.

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No entanto, apesar da lei italiana assegurar o acesso à cidadania aos descendentes dos imigrantes, de maneira ilegal, uma medida horizontal no sentido da procrastinação e dificultação do seu reconhecimento pelas repartições diplomáticas italianas tem estado em vigor há muitos anos, colocada cínica e sistematicamente em prática pelos diversos governos do país. Esse caminho árduo, espinhoso, problemático, moroso e humilhante explica o relativo pequeno número de descendentes documentados com o reconhecimento da cidadania italiana. Menos de 5% do contingente brasileiro o teve.

Num mundo que oferece hoje maiores opções para a internacionalização e movimentação de pessoas, o lastro econômico de parte da população brasileira, de um lado, e a vontade de buscar alternativas para o desenvolvimento pessoal, de outro, leva-a a se movimentar de maneira crescente em direção ao exterior. Em 2023, o número de brasileiros no exterior foi estimado em cerca de 5 milhões, ou aproximadamente 4% do total. Segundo recentes dados acadêmicos, o número de brasileiros na Itália atualmente situa-se em cerca de 300 mil. A guisa de comparação, no Estado da Florida, nos EUA, residem aproximadamente 600 mil brasileiros.

A este número de brasileiros residentes na Itália devem ser acrescidas aproximadamente 100 mil pessoas com dupla nacionalidade. Trata-se de um contingente inexpressivo estatisticamente. Muitos daqueles que fizeram a transferência domiciliar, legalmente ou ilegalmente, são sujeitos a dificuldades com preconceitos diversos dirigidos aos imigrados naquele país, tanto no trato social como perante as autoridades centrais ou regionais. Estes imigrados, não apenas deixam de ter uma rede de serviços públicos, mas são frequentemente sujeitos a perseguições, à intolerância, à discriminação, ao escárnio, ao ódio e mesmo à violência, como no triste caso das mulheres brasileiras.

Da mesma forma, as relações econômicas entre os dois países estão muitíssimo abaixo de seu potencial, face às raízes parcialmente comuns. Para 2024, estima-se que o PIB de Brasil e Itália sejam mais uma vez equivalentes, por volta de US$ 2.3 trilhões. A Itália tem um comércio internacional no valor de US$ 1.2 trilhão, com um saldo de US$ 34 bilhões e o Brasil, no montante de US$ 600 bilhões, com um saldo de US$ 100 bilhões. No entanto, o comércio bilateral ítalo-brasileiro é de apenas US$ 10 bilhões. A guisa de comparação, o comércio bilateral entre o Brasil e o Estado da Florida é US$ 23 bilhões.

O estoque de investimentos diretos italianos no Brasil é de US$ 17.4 bilhões enquanto aquele de brasileiros na Itália é de US$ 600 milhões, segundo dados do governo brasileiro. De acordo com a Receita Federal do Brasil, os investimentos declarados de cidadãos nacionais no exterior superam os US$ 200 bilhões. Apenas no setor imobiliário na Flórida, brasileiros investiram US$ 1,6 bilhão em 2023. Estima-se que os investimentos nacionais não declarados às autoridades brasileiras devam se aproximar dos oficiais.

Pelos números apresentados, vislumbra-se claramente que a Itália, não obstante as ligações históricas parcialmente comuns, leva enorme desvantagem nos seus vínculos com o Brasil e que deixa de aproveitar um potencial extraordinário, tanto humano como econômico. Esta capacidade, naturalmente, deve partir de um tratamento digno aos nacionais de cada país. Todavia, esta, de maneira profundamente lamentável, não tem sido a regra. Atualmente, a situação tende a se agravar com a nova iniciativa legislativa italiana, perversa, demagógica e obtusa, no sentido de oficializar e expandir substancialmente as limitações ao acesso à cidadania daquele país por brasileiros descendentes, dentre outros, já aprovada pelo parlamento.


Durval de Noronha Goyos Junior é jurista, escritor, historiador e lexicógrafo. Autor da Breve História da Imigração Italiana; do Dicionário de Aforismas Napolitanos (napolitano, italiano, português e inglês); e da História da Campanha da FEB para a Libertação da Itália (português, italiano e inglês), pela qual recebeu medalha da Presidência da República do Brasil (Dilma Rousseff). Escreveu ainda 2 livros em italiano sobre investimentos no Brasil publicados pela Embaixada Brasileira na Itália e pelo Consulado Geral de Milão, em anos diversos.

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.