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 Táki Cordás discute as sequelas físicas e psicológicas da tortura

28 de novembro de 2024
O psiquiatra Táki Cordás apresenta as complicações físicas, psicológicas e psiquiátricas da tortura.

O psiquiatra Táki Cordás apresenta as complicações físicas, psicológicas e psiquiátricas da tortura.

Tortura: sequelas físicas e psicológicas, uma brevíssima introdução

Infligir tortura a alguém ou um grupo de pessoas tem um longo registro na história da humanidade. Desde a Antiguidade a tortura se aplica a inimigos de crenças ou seitas diferentes; prisioneiros de guerra; por vingança; para obtenção de informações; por observância religiosa ou heresia, como na Inquisição, entre outras motivações.

Mas o que se define como tortura?

O conceito de tortura é muito variado, mas a definição mais aceita é a do Artigo 1 da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984):

“Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica”.

“Não estarão compreendidos no conceito de tortura as penas ou sofrimentos físicos ou mentais que sejam consequência de medidas legais ou inerentes a elas, contanto que não incluam a realização dos atos ou a aplicação dos métodos a que se refere este artigo”.

Esta definição foi ampliada para incluir a violência por agentes não oficiais, como em conflitos civis, mas todos referem-se à infringir intencionalmente dor e/ou sofrimento.

Na lei brasileira vigente a tortura é definida como:

“Art. 1º Constitui crime de tortura:

I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa.

II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”.

Entre os primeiros relatos mais sistemáticos pelas vítimas e avaliados por profissionais de saúde estão as vítimas de tortura do regime de Francisco Franco na Espanha. As torturas iniciaram-se já no início da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e continuaram até o final dos anos 1970.

Os métodos infames de tortura são numerosos.

A tortura física inclui agressões corporais, incluindo espancamentos; permanência forçada em posição dolorosa (pau de arara); enforcamento; queimaduras; choque elétrico; indução de asfixia; e exposição ao frio; privação de sono por dias; privação de água, alimentos e remédios; isolamento sensorial (solitária) por longos períodos; agressão sexual e estupro; introdução de animais em orifícios, entre outros.

As diferentes formas de tortura psicológica, incluem xingamentos; ameaças contra familiares, (inclusive crianças) e amigos; falsas acusações forjando provas; testemunhar tortura e assassinato; execuções simuladas entre outras.

O filme já vitorioso “Ainda Estou Aqui” (2024), do diretor Walter Salles e maravilhoso elenco, baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, grita aos ouvidos patrícios a vilania que execráveis criaturas executaram. A ditadura militar brasileira foi anteriormente representada em dois filmes, “Prá frente, Brasil”(1982), de Roberto Farias e “O que é isso, companheiro? (1997) de Bruno Barreto”. Verdugos, muitos deles ainda estão por aí, sem que um “Argentina, 1985” tenha ocorrido.

Leia mais: Theófilo Rodrigues – Ainda estou aqui, filme brasileiro no Oscar, é um chamado sensível por Memória e Verdade

COMPLICAÇÕES FÍSICAS DA TORTURA

Podemos dividir as complicações físicas das torturas em consequências diretas, emergenciais e consequências indiretas ou crônicas. A consequência direta mais comum e desesperadora é a dor.  Dada a centralidade da dor, não é surpreendente que a dor aguda e posteriormente crônica seja uma queixa muito comum em sobreviventes.

A localização e intensidade da dor dependem do tipo de tortura sofrida, se nos braços, pernas, pés, ruptura de articulações e músculos ou lesões neurológicas. Alguns exemplos infames de tortura e suas complicações clínicas incluem:

“Pau de arara”, aplicado já nos tempos da escravidão, originado dos portugueses traficantes de escravos para punir escravos “desobedientes”. Consiste em amarrar punhos e pés do indivíduo nu com os braços e joelhos dobrados; em seguida, passa-se uma barra de ferro de lado a lado no vão formado entre os joelhos dobrados e os cotovelos. A barra é suspensa deixando a pessoa pendurada. Essa posição leva à dores lancinantes pioradas pela aplicação sistemática de choques elétricos em região genital, espancamentos e afogamentos. Rupturas musculares nos membros superior e inferior, traumas de coluna definitivos, compressão dos vasos sanguíneos e nervos periféricos, parada cardíaca e respiratória são efeitos comuns.

Choques elétricos (110 ou 220 volts) frequentemente aplicados de diversas formas podem levar à crises convulsivas, infarto do miocárdio e todo grau de queimaduras de pele. Lesões teciduais por exposição à eletricidade são principalmente causadas pela conversão da energia elétrica em calor, resultando em queimaduras. Um choque elétrico pode causar poderosas contraturas musculares, resultando em deslocamentos (choque elétrico é uma das poucas causas de deslocamento posterior do ombro), fraturas vertebrais ou outras.

“Telefone”: consiste na aplicação de pancada com as mãos em concha nos dois ouvidos ao mesmo tempo. Esse método de tortura é responsável pela ruptura dos tímpanos, provocando em alguns casos de surdez definitiva. Vertigens (uma falsa sensação de estar se movendo ou girando) são comuns.

“Sessão de Karatê” ou “Corredor polonês”: o preso é colocado no centro de uma roda formada por vários torturadores, que aos gritos passam a agredi-lo com socos, pontapés, golpes de karatê etc. Por vezes essa “sessão” se desenvolve com o uso de paus, cassetetes, etc. Além das lesões aparentes, as fraturas e hemorragia dos órgãos internos são frequentes.

“Soro da Verdade”: nome dado ao barbitúrico pentotal, embora outras substâncias já tenham sido usadas incluindo o ecstasy, a maconha e o LSD. Não há uma certeza científica de que funcionem.

As consequências físicas indiretas da tortura são doenças que se instalam cronicamente como hipertensão, doenças cardiovasculares; doenças pulmonares; maior risco de Acidente Vascular Cerebral (derrames); enxaquecas; infecções imputadas nos atos de tortura; problemas sexuais.

COMPLICAÇÕES PSICOLÓGICAS E PSIQUIÁTRICAS

Entre os problemas psicológicos e psiquiátricos vale destacar os decorrentes de todas as formas de privação sensorial.                                                                                 

Os efeitos do confinamento solitário ou vedação prolongada incluem depressão, ansiedade, dificuldade de concentração e memória, hipersensibilidade a estímulos externos, alucinações visuais e auditivas, distorções de percepção e problemas de controle de impulsos. Esses quadros persistem em maior ou menor grau após a volta à vida normal.

Quando ocorre a privação de sono, o comprometimento do pensamento, memória, atenção, desorientação no tempo e no espaço, impulsividade, irritabilidade, alucinações visuais e auditivas ocorrem e podem persistir por meses.

Ataques de pânico são 5 vezes mais comuns em indivíduos que foram expostos à violência e tortura do que na população geral.

O transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) é um tipo de ansiedade grave que pode se desenvolver em pessoas que vivenciaram um evento traumático tal como assalto ou sequestro; acidente de carro; desastres naturais; tortura pessoal ou ser obrigado a testemunhar a tortura de amigo ou familiar. As estatísticas apontam que cerca de 25% até 60% das pessoas que passaram por torturas desenvolvem TEPT, estatísticas que variam conforme a população estudada.

Em 80% dos casos o indivíduo apresenta TEPT e Depressão simultaneamente. PTSD e Depressão são manifestações de disfunção do sistema nervoso central (cérebro). A resposta ao estresse do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal é um resposta normal, contudo, sob prolongado estresse, pode haver consequências graves para saúde pela liberação elevada do hormônio do estresse, o cortisol e de noradrenalina cerebral.

O TEPT causa sofrimento intenso e prejuízos a vários aspectos da vida, como trabalho e relacionamentos, em função dos seguintes sintomas:

  • Lembranças persistentes da situação traumática – a lembrança involuntária em forma de imagens, vozes, pesadelos trazem de volta a situação traumática (flashbacks).
  • Reações físicas – taquicardia, tremor, sudorese, náusea e outros.
  • Comportamento de fuga – em relação à lugares que trazem recordações dolorosas.
  • Excitação exagerada – inclui ficar em estado de alerta constante, explosões de raiva, dificuldade para dormir e para se concentrar.
  • Problemas com concentração, problemas para aprender novas habilidades e déficits de memória.
  • Dores físicas crônicas.
  • Abuso de álcool ou drogas.
  • Perda de interesse pela vida e sentimentos de desamparo ou desesperança.
  • Depressão.
  • Pensamentos de suicídio.
  • Aumento do risco de suicídio, como infelizmente ocorreu, entre outros, com o Frei Tito Alencar Lima e com Carlos Alexandre Azevedo, torturado quando tinha apenas um ano e oito meses de vida. Ele nunca se recuperou do trauma e cometeu suicídio em 2013, aos 37 anos.

Indicações de leitura

1-Torture and Other Cruel, Inhuman or Degrading Treatment or Punishment. Available at: http://www.un.org/documents/ga/res/39/a39r046.htm (1984)

2- Williams A C de C, Peña CR and Rice ASC. Persistent pain in survivors of torture: a cohort study. J Pain Symptom Manage  2010; 40: 715–722.

3-Carlsson M, Mortensen E and Kastrup M. Predictors of mental health and quality of life in male tortured refugees. Nord J Psychiatry 2006; 60: 51–57.

4-Steel Z, Chey T, Silove D et al. Association of torture and other potentially traumatic events with mental health outcomes among populations exposed to mass conflict and displacement: a systematic review and meta-analysis. JAMA 2009;302:537-49.

5-James M, Jaranson JM, Butcher J et al. Somali and Oromo refugees: correlates of torture and trauma history. Am J Public Health 2004;94:591-8

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Táki Athanássios Cordás é Coordenador da Equipe Multiprofissional de Assistência do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Coordenador do Programa de Transtornos Alimentares (AMBULIM) do IPQ-HCFMUSP. Prof. dos Programas de Pós-Graduação do Departamento de Psiquiatria da USP, do Programa de Neurociências e Comportamento do Instituto de Psicologia da USP e do Programa de Fisiopatologia Experimental da FMUSP. Pós-Graduação (latu-sensu) em Filosofia (PUC-RS).

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.