Observatório Internacional: Relações Brasil-China e a Diplomacia do Esporte
Emanuel Junior, pesquisador da Tongji University, China, escreve sobre o Memorando de Entendimento sobre Cooperação Esportiva entre o Ministério do Esporte da República Federativa do Brasil e a Administração Geral do Esporte da República Popular da China. Foto: Agência Brasil.
Por ocasião da visita de Estado do Presidente chinês Xi Jinping ao Brasil, em 20 de novembro de 2024, foram assinados e anunciados 37 atos bilaterais adotados entre os dois países, nas áreas de agricultura, comércio, investimentos, infraestrutura, indústria, energia, mineração, finanças, ciência e tecnologia, comunicações, desenvolvimento sustentável, turismo, saúde, educação e cultura. Dois acordos fundamentais solidificam e aprofundam as relações entre Brasil e China, cujo impacto vai muito além das relações bilaterais, tendo enorme potencial para a geopolítica global e a construção de um Futuro Compartilhado mais justo e equitativo: Declaração Conjunta entre a República Federativa do Brasil e a República Popular da China sobre a Formação Conjunta da Comunidade China-Brasil de Futuro Compartilhado para um Mundo Mais Justo e um Planeta Mais Sustentável; Plano de Cooperação do Governo da República Federativa do Brasil e do Governo da República Popular da China para estabelecer sinergias entre o Programa de Aceleração do Crescimento, o Plano Nova Indústria Brasil, o Plano de Transformação Ecológica, o Programa Rotas de Integração Sul-Americana e a Iniciativa Cinturão e Rota. Entretanto, em meio às mais de três dezenas de atos assinados, há um em particular ao qual eu gostaria de chamar a atenção: o Memorando de Entendimento sobre Cooperação Esportiva entre o Ministério do Esporte da República Federativa do Brasil e a Administração Geral do Esporte da República Popular da China.
Nelson Mandela, quando presidiu a África do Sul, usou o esporte para unir seu país na reconstrução nacional pós-Apartheid. Certa vez, Mandela disse que “o esporte tem o poder de mudar o mundo”. Como sua própria história mostrou ao mundo, ele estava muito certo. Afinal, o esporte é uma ferramenta, que, se bem utilizada, serve para a construção de pontes, o estabelecimento de diálogos, a aproximação da comunicação e a promoção da cooperação e do intercâmbio entre povos e nações. O esporte, portanto, é um poderoso instrumento diplomático, sendo muito útil para facilitar outros objetivos de política externa.
Não por acaso, desde a proclamação da República Popular da China, em 1º de outubro de 1949, o esporte tem exercido um importante papel na política e geopolítica da construção da Nova China. Na China socialista, o esporte não é apenas um elemento essencial na formação educacional e intelectual de seus cidadãos, seguindo uma tradição marxista de combinar o treinamento da mente com o treinamento do corpo, mas também um instrumento diplomático, desempenhando, desde os primeiros anos, um papel fundamental no estabelecimento de relações com outros países. Um bom exemplo é a chamada “sovietização do esporte chinês”, que ajudou a criar um sistema desportivo de elite na China e o estabelecimento de relações diplomáticas e de engajamento com os países do Leste Europeu. Temos, ainda, o caso da Diplomacia dos Estádios, iniciada ainda em 1958, que teve um período fundamental no começo dos anos 1960, quando os chineses buscavam se colocar como alternativa junto aos países das novas forças emergentes não-alinhadas, e que foi intensificado principalmente nos anos 2000, servindo de instrumento para as relações da China com países do Sul Global. Além, claro, do exemplo mais clássico da diplomacia do esporte, que foi a Diplomacia do Pingue-Pongue, que, em 1971, permitiu a aproximação entre a China e os EUA, construindo a ponte necessária para que estes dois países iniciassem discussões para que estabelecessem, anos depois, relações diplomáticas (com os EUA reconhecendo, por exemplo, o princípio da China única, que se mantém até hoje, apesar de toda a retórica estadunidense nos últimos anos).
No já referido Memorando de Entendimento sobre Cooperação Esportiva entre o Ministério do Esporte da República Federativa do Brasil e a Administração Geral do Esporte da República Popular da China, os dois países se comprometem a se esforçar para desenvolver intercâmbios e cooperação esportiva com base no respeito mútuo, igualdade e benefício mútuo. Além disso, são incentivados intercâmbios e cooperação entre especialistas em esportes nas áreas de esportes competitivos, esportes para todos, ciência e medicina esportiva, bem como intercâmbios e cooperação entre associações esportivas nacionais.
É interessante observarmos como nos últimos anos o esporte tem surgido com frequência em declarações conjuntas e outros atos diplomáticos da China com diferentes países do mundo, como foi o caso do mencionado memorando de entendimento com o Brasil. Não por coincidência, isso tem se intensificado desde a chegada de Xi Jinping ao poder. Xi que em seu discurso na 16ª Cúpula do BRICS mencionou os esportes quando tratou da importância de se “construir um BRICS comprometido com trocas mais próximas entre pessoas”, e todos devem “agir como defensores da coexistência harmoniosa entre todas as civilizações”. Para o presidente chinês, é importante aproveitar “totalmente o potencial inexplorado de cooperação em áreas como esportes” para que se promova “o espírito de inclusão e coexistência harmoniosa entre as civilizações”. Algo que fica evidente, portanto, é que o presidente Xi reconhece a importância da diplomacia pública, que, entre outras, se expressa por meio da diplomacia cultural e, como o esporte é uma manifestação cultural, da diplomacia esportiva.
Antes deste acordo assinado entre Lula e Xi Jinping em Brasília, outros documentos já haviam sido celebrados entre as duas nações. Em 2014, o então ministro do Esporte, Aldo Rebelo, afirmou que “por meio dos ministérios do esporte da China e do Brasil, os dois países se engajaram em uma cooperação profunda” e acrescentou: “Sei que o presidente Xi Jinping gosta de futebol, e isso definitivamente torna a relação entre China e Brasil ainda mais próxima”. Em 2017, o então presidente brasileiro Michel Temer fez uma visita de Estado à China e entre os 14 acordos de cooperação assinados, um tratava do futebol. Já em 2019, a Declaração Conjunta entre a República Popular da China e a República Federativa do Brasil declarou: “O papel da cooperação nos campos cultural, educacional e esportivo para aumentar o conhecimento e a compreensão mútuos, em particular em questões relacionadas ao futebol”.
A diplomacia do esporte evoluiu para uma forma mais deliberada e estratégica de diplomacia. Ela envolve uma ampla gama de atores estatais e não estatais colaborando com parceiros de todo o cenário internacional dos esportes. Isso inclui partes interessadas, como órgãos governamentais, federações nacionais e regionais das mais diversas modalidades, clubes, jogadores/atletas, fãs, patrocinadores, empresas, mídia esportiva e indústrias criativas relacionadas.
O esporte, como já foi dito neste texto, é um excelente mecanismo para relações pacíficas e harmoniosas entre povos e nações. Com sua natureza educacional, e mesmo que em seu caráter competitivo de alto escalão com suas características que promovem o compartilhamento e unidade, o esporte promove o conhecimento mútuo e pode proporcionar uma relação de ganho mútuo entre todos os envolvidos.
No que toca às relações Brasil-China no campo esportivo, algumas iniciativas foram tomadas. No entanto, é necessário ir além, principalmente para passar do campo das ideias e do papel para a prática, para estabelecer parcerias e memorandos de entendimento que efetivamente implementem essas ações e tornem a cooperação e o intercâmbio uma realidade.
A educação também desempenha um papel fundamental. A ciência e o conhecimento produzidos nas universidades têm um enorme potencial para o desenvolvimento dos esportes. Sabemos que a China pretende desenvolver o futebol no país, colocando este desenvolvimento como elemento fundamental para o crescimento de toda a indústria esportiva do país. Por outro lado, os chineses conseguiram atingir o patamar de potência olímpica, rivalizando com os EUA, substituindo o vácuo deixado pela extinção da União Soviética a nível competitivo com os estadunidenses nos Jogos Olímpicos. Portanto, temos o Brasil com seu enorme conhecimento e seu talento no futebol, podendo, assim, cooperar para o desenvolvimento do futebol na China. Ao passo que podemos aprender com as políticas públicas dos esportes olímpicos chineses, por exemplo. Para isso, Universidades brasileiras e chinesas podem estabelecer memorandos de entendimento (MoU) para cooperarem e, assim, produzirem conhecimento compartilhado, enquanto os intercâmbios podem beneficiar jovens estudantes chineses que praticam esportes ou pretendem trabalhar na indústria esportiva.
Vale destacar, também, que o esporte transcende fronteiras, línguas e culturas, tornando-se uma ferramenta poderosa para a diplomacia e cooperação internacional. Por meio dos intercâmbios esportivos, os países fortalecem laços de amizade, promovem o respeito mútuo e constroem pontes culturais que transcendem as diferenças. No contexto da globalização com características chinesas, que é inclusiva e orientada para relações de ganho mútuo, o esporte surge como um meio pacífico de construção de relações e parcerias estratégicas. Afinal, entendemos que a globalização com características chinesas é uma construção histórica institucional e multidimensional, representando não apenas características distintas, mas como uma alternativa à globalização neoliberal.
A cooperação no esporte, seja por meio de programas compartilhados de treinamento ou iniciativas de desenvolvimento esportivo, seja por meio da cooperação entre universidades, na produção de conhecimento compartilhado e na troca de experiências entre alunos, professores e pesquisadores, seja na cooperação entre as Confederações esportivas dos dois países ou mesmo entre Federações estaduais brasileiras e Federações das províncias chinesas, pode refletir o espírito de colaboração e confiança mútuas. Esses esforços contribuem para a construção da Comunidade de Futuro Compartilhado para a Humanidade, promovendo valores como solidariedade, integração e convivência pacífica. Assim, o esporte vai além da esfera esportiva, podendo se consolidar como um elo que une estas duas grandiosas nações em torno de um propósito comum: prosperidade e harmonia global.
Emanuel Junior é Doutor em Políticas Públicas (Universidade de Aveiro, Portugal) | Investigador Associado (Tongji University, China).
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.