Marxismo: a autodeterminação das nações na teoria leninista
Vice-presidente nacional do PCdoB, Carlos Lopes escreve sobre a questão da autodeterminação das nações na obra de Lênin.
Notas muito breves sobre a autodeterminação nacional
A autodeterminação das nações firmou-se como princípio da política internacional após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), sobretudo com a Revolução Russa de 1917.
Até então, mesmo nas situações em que o problema existiu de maneira aguda – tal como no período da unificação italiana (1861) – os Estados nacionalmente heterogêneos, como a Rússia e a Áustria-Hungria, não eram considerados uma anomalia.
Pelo contrário, esses Estados dominavam a cena, territorialmente, na Europa, a ponto de levarem à própria Guerra Mundial, arrastando seus patronos mais poderosos economicamente (Inglaterra e França, de um lado; Alemanha, de outro), como aconteceu em seguida ao assassinato do arquiduque austríaco Francisco Ferdinando, em Sarajevo (28 de junho de 1914).
Naturalmente, isso não quer dizer que os problemas de opressão nacional fossem resolvidos ao fim da Primeira Guerra Mundial. Pelo contrário, a luta das nações por seu direito à independência tomaria todo o restante do século XX, na África e na Ásia – e, hoje, ainda é candente no genocídio que ensanguenta a Palestina.
No entanto, se a luta revolucionária pela autodeterminação preencheu quase toda a história de países como a Índia, o Vietnã e a Argélia, a discussão teórica e programática sobre a questão é anterior à própria Guerra Mundial de 1914-1918.
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Nesse sentido, os escritos de Lenin sobre a autodeterminação nacional, sobretudo na segunda década do século XX, têm uma importância de princípio, tanto na obra do líder bolchevique, quanto no marxismo em geral.
Reparemos, em primeiro lugar, que esse é um ângulo decisivo da questão democrática, tanto do ponto de vista de que a autodeterminação somente pode ser uma realização da democracia, inclusive na medida em que ela é, em si, uma reivindicação democrática, quanto do ponto de vista de que a classe operária não pode chegar ao socialismo senão através do mais profundo democratismo, portanto, não pode ignorar a luta pela autodeterminação nacional.
Por exemplo, em 1913, Lenin afirma:
“Para que diferentes nações vivam em conjunto livre e pacificamente ou se separem (quando isto lhes for mais conveniente), constituindo Estados diferentes, para isso é necessária a completa democracia defendida pela classe operária. Nenhum privilégio para nenhuma nação, para nenhuma língua! Nem a mínima perseguição, nem a mínima injustiça para com a minoria nacional! — tais são os princípios da democracia operária” (A Classe Operária e a Questão Nacional, maio de 1913).
Ou seja, a autodeterminação não é a obrigatoriedade de constituir uma nação em separado. A atitude de Marx em relação à Irlanda, reconhecendo o direito de separação dos irlandeses até para que optassem a permanecer junto com os ingleses, é usado por Lenin para ilustrar esse ponto. As nações devem ter o direito a se separar de seus dominadores, até para que não possam usá-lo, ou seja, para que, em condições de igualdade, continuem juntas em nações maiores. Essa é a essência da democracia preconizada pela classe operária.
O que é anulado pela autodeterminação nacional é, justamente, a desigualdade imposta pela dominação de uma nação sobre outra.
Antes de abordarmos, sob esse prisma, o conteúdo do próprio conceito da autodeterminação nacional, vejamos outro trecho em que Lenin formula a importância da questão democrática:
“O proletariado não pode vencer senão através da democracia, isto é, realizando integralmente a democracia e ligando a cada passo da sua luta reivindicações democráticas formuladas da maneira mais decidida. É absurdo opor a revolução socialista e a luta revolucionária contra o capitalismo a uma das questões da democracia, neste caso a questão nacional. Devemos combinar a luta revolucionária contra o capitalismo a um programa e a uma táctica revolucionários em relação a todas as reivindicações democráticas: república, milícia, eleição dos funcionários pelo povo, igualdade de direitos das mulheres, autodeterminação das nações, etc. Enquanto existir o capitalismo, todas essas reivindicações só serão realizáveis como exceção e mesmo assim de maneira incompleta e deformada. Apoiando-nos na democracia já existente, desmascarando o seu caráter incompleto sob o capitalismo, nós exigimos a derrubada do capitalismo, a expropriação da burguesia, como base necessária tanto para liquidar a miséria das massas como para a completa e integral realização de todas as transformações democráticas. Algumas dessas transformações serão iniciadas antes da derrubada da burguesia, outras durante essa derrubada, outras ainda depois dela. A revolução social não é uma batalha única, mas uma época com toda uma série de batalhas por todas e cada uma das questões das transformações econômicas e democráticas, que só terminarão com a expropriação da burguesia. É precisamente em nome desse objetivo final que devemos formular de modo consequentemente revolucionário cada uma das nossas reivindicações democráticas. É inteiramente concebível que os operários de qualquer país determinado derrubem a burguesia antes da realização integral mesmo de uma só transformação democrática essencial. Mas é completamente inconcebível que o proletariado, como classe histórica, possa vencer a burguesia se não estiver preparado para isso por uma educação no espírito do democratismo mais consequente e resolutamente revolucionário” (O Proletariado Revolucionário e o Direito das Nações à Autodeterminação, outubro de 1915, grifos de Lenin).
Desde, pelo menos, 1903, a autodeterminação das nações era um ponto específico do programa da social-democracia russa. A polêmica em torno deste ponto somente surgiu com o imperialismo em sua versão moderna, que seria abordado depois pelos marxistas, sobretudo pelo próprio Lenin, especialmente em Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo (1916).
O motivo da polêmica – cujos principais adversários de Lenin, antes da traição de Kautsky, foram Rosa Luxemburg e Karl Rádek -, como é assinalado em Resposta a P. Kievsky, de 1916, foi o esmagamento ideológico diante do imperialismo.
No entanto, o problema da autodeterminação nacional antecede o próprio imperialismo, inclusive em um Estado pré-capitalista, como era o caso da Rússia antes de 1917, chamada, pelos revolucionários russos, de “cárcere de povos”.
Então, o que constituía a autodeterminação nacional antes dessa época, que levaria à Primeira Guerra Mundial?
“… por autodeterminação das nações entende-se a sua separação estatal das coletividades nacionais estrangeiras, entende-se a formação de um Estado nacional independente”.
E, mais abaixo, no mesmo texto:
“… seria errado entender por direito à autodeterminação tudo o que não seja o direito a existência estatal separada” (Sobre o Direito das Nações à Autodeterminação, maio de 1914).
Notemos que isso não se confunde, necessariamente, com a libertação nacional das colônias e países dependentes sob o imperialismo, embora seja evidente o entrelaçamento com essa questão.
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Nas condições do princípio do século XX, isto significava a independência de países submetidos onde houvesse movimentos democrático-burgueses, movimentos nacionais, pois o Estado Nacional era o terreno mais favorável para o desenvolvimento do capitalismo – e o Estado pré-capitalista era um entrave para esse desenvolvimento necessário para se atingir o socialismo.
Ao contrário de Lenin, Rosa Luxemburg argumentava que o Estado mais favorável para o capitalismo era o “Estado de rapina”, tal como existia na Rússia e na Áustria-Hungria – e não o Estado Nacional. Daí sua oposição, por exemplo, à independência da Polônia (seu país natal), na época submetida ao domínio da Rússia czarista.
A fundamentação de Rosa Luxemburg, de que o capitalismo na Polônia não era obstruído pelo Estado feudal russo é contestada por Lenin nos seguintes termos:
“Rosa Luxemburg substituiu a questão da autodeterminação política das nações na sociedade burguesa, da sua independência estatal, pela questão da sua autonomia e independência econômicas. Isto é tão inteligente como se uma pessoa, ao debater a reivindicação programática da supremacia do parlamento, isto é, da assembleia dos representantes do povo, num Estado burguês, se pusesse a expor a sua convicção plenamente justa da supremacia do grande capital sob qualquer regime num país burguês” (Sobre o Direito das Nações à Autodeterminação, maio de 1914).
Evidentemente, se na Polônia o capitalismo se desenvolvia mais rapidamente do que na Rússia, isso significaria que a contradição nacional entre essas duas nações seria cada vez mais acentuada – e tanto mais provável seria a separação da Polônia capitalista em relação à Rússia pré-capitalista.
Mas o raciocínio de Rosa Luxemburg era o inverso – como certos teóricos da dependência nos países da América Latina, muito tempo depois, que da premissa de que os países latino-americanos podem se desenvolver sob a dependência do imperialismo norte-americano, concluíram pela desejabilidade da própria dependência.
Por aquela época, Lenin observa que a questão da autodeterminação só existe – e, portanto, somente é passível de formulação programática – nos países (como a Rússia) em que as transformações democrático-burguesas ainda não se completaram:
“… só perfeitos ignorantes (…) podem ‘comparar’ o programa agrário dos marxistas russos com os europeus ocidentais, pois o nosso programa dá resposta à questão da transformação agrária democrático-burguesa, da qual nem sequer se fala nos países ocidentais. O mesmo se passa relativamente à questão nacional. Na maioria dos países ocidentais foi há muito resolvida. É ridículo procurar resposta nos programas ocidentais para perguntas que não existem. Rosa Luxemburg perde aqui de vista exatamente o principal: a diferença entre países com transformações democrático-burguesas há muito terminadas e aqueles onde elas não estão terminadas” (Sobre o Direito das Nações à Autodeterminação, maio de 1914, grifo nosso).
Neste texto, Lenin contesta a afirmação de Rosa Luxemburg, que pretende igualar o problema nacional da Rússia ao da Austro-Hungria – ele nota que neste último país o capitalismo está muito mais desenvolvido do que no primeiro.
Mas, mesmo assim, mesmo sob esse aspecto, diz ele, Rosa Luxemburg não tem razão:
“… é incorreta a afirmação de Rosa Luxemburg de que no programa dos sociais-democratas austríacos não figura o reconhecimento do direito das nações à autodeterminação. Basta abrir as atas do congresso de Brünn, que adotou o programa nacional, e veremos aí as declarações do social-democrata ruteno Hankiewicz em nome de toda a delegação ucraniana (rutena) (p. 85 das atas) e do social-democrata polaco Reger em nome de toda a delegação polaca (p. 108) de que os sociais-democratas austríacos de ambas as nações mencionadas incluem entre as suas aspirações a aspiração à unificação nacional, à liberdade e à independência dos seus povos. Consequentemente, a social-democracia austríaca, não colocando abertamente no seu programa o direito das nações à autodeterminação, ao mesmo tempo conforma-se plenamente com a apresentação por partes do partido da reivindicação de independência nacional. De fato isto significa justamente, como é natural, reconhecer o direito das nações à autodeterminação!” (Sobre o Direito das Nações à Autodeterminação, maio de 1914).
Um ano depois, Lenin enfrentaria a mesma questão, mas não mais em relação a países pré-capitalistas, como a Rússia, e a movimentos puramente nacionais, isto é, democrático-burgueses. Agora, em plena Primeira Guerra Mundial, seria o imperialismo – isto é, o capitalismo atual – e o socialismo que estariam no centro da autodeterminação das nações.
A posição de seu adversário – Rádek – é simplesmente a de que a autodeterminação, assim como os Estados Nacionais, foram superados pelo imperialismo. Portanto, a luta pela autodeterminação é algo do passado.
Lenin, sucintamente, mostra que é Rádek “que olha para trás, e não para a frente, quando, partindo em campanha contra a adoção pela classe operária do ‘ideal do Estado nacional’, volta os olhos para a Inglaterra, a França, a Itália, a Alemanha, isto é, para os países onde o movimento de libertação nacional pertence ao passado, e não para o Oriente, para a Ásia, a África, as colônias, onde esse movimento pertence ao presente e ao futuro. Basta citar a Índia, a China, a Pérsia, o Egito” (O Proletariado Revolucionário e o Direito das Nações à Autodeterminação, outubro de 1915).
Do fato de que o imperialismo agudizou extraordinariamente a opressão nacional, decorre, precisamente, que o proletariado revolucionário deve ligar a luta pelo socialismo à luta pela independência nacional.
Porém, agora, na luta internacional pelo socialismo, é um ponto crucial do programa revolucionário a divisão das nações em opressoras e oprimidas, que reivindicam, nesse contexto, a autodeterminação, “definição consequentemente democrática, revolucionária e conforme com a tarefa geral da luta imediata pelo socialismo” (idem).
E Lenin termina com a proclamação das tarefas dos socialistas naquele momento e para além daquele momento:
“… o socialista de uma nação opressora que não faça, tanto em tempo de paz como em tempo de guerra, propaganda da liberdade de separação das nações oprimidas não é socialista nem internacionalista, é chauvinista! O socialista de uma nação opressora que não faça essa propaganda a despeito das proibições dos governos, isto é, na imprensa livre, isto é, ilegal, será um partidário hipócrita da igualdade de direitos das nações!” (O Proletariado Revolucionário e o Direito das Nações à Autodeterminação, outubro de 1915).
Carlos Lopes é redator-chefe do jornal Hora do Povo, vice-presidente nacional do PCdoB e membro do Grupo de Pesquisa sobre Problemas e desafios contemporâneos da teoria marxista.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.