Clube de Leitura: resenha de “Socialismo e Ceticismo”, de Ralph Miliband
Miliband foi um dos principais teóricos do marxismo britânico. A resenha é de Jorge Wilton, pesquisador do Grupo de Pesquisa da FMG sobre “Problemas e desafios contemporâneos da teoria marxista”
No ano de 2000, o mercado editorial brasileiro contou com um lançamento muito importante para o debate teórico e politico. Foi o livro Socialismo e Ceticismo[1] (título original: Socialism for a Sceptical Age, publicado originalmente em 1994, na Inglaterra), de autoria do professor Ralph Miliband[2], talvez o mais destacado teórico marxista britânico da política (embora nascido na Bélgica). [3] Nesse livro, o autor dispara críticas contundentes ao capitalismo, defende o legado teórico dos clássicos do marxismo e sustenta a viabilidade de uma alternativa socialista na atualidade[4].
Foi no capítulo 1 do livro de Miliband que se encontrou o título desse artigo. “Acusações ao capitalismo” é o capitulo mais extenso do livro e parece destinado a fazer o contraponto às acusações ao socialismo, muito comuns na mídia conservadora. Uma das características do marxismo, desde Marx e Engels é, ao lado da crítica teórica, dirigida ao desvelamento dos aspectos intrínsecos, da lógica própria do regime do capital, é denunciar as diversas formas de violência engendradas no ou desencadeadas pelo capitalismo desde os seus primórdios no século XVI, concomitantemente com o processo de consolidação da dominação de classe da burguesia.
É nessa mesma perspectiva que Miliband desenvolve suas acusações. Assim, o autor belga/britânico, iniciando a discussão sobre o que está fundamentalmente errado com o capitalismo, sustenta, em primeiro lugar, que “a pergunta: “Por que não capitalismo?”, repousa sobre uma combinação de fatores econômicos, sociais, políticos e morais, todos intimamente interligados. Em segundo lugar – o que é crucial -, há o argumento de que os pontos levantados na acusação ao capitalismo e à ordem social em que ele se insere são inerentes ao sistema, “por mais reais que sejam os avanços de que é capaz”. Continuando, Miliband assinala que “por isso é tão problemática a noção de capitalismo com rosto humano. Certamente, é possível reduzir os abusos mais grosseiros do sistema, mas não é possível erradicar sua essencial desumanidade. Para fazer isso, seria preciso um sistema diferente, movido por uma dinâmica diferente”.
As acusações desferidas são abrangentes e bem fundamentadas. Elas envolvem o problema da propriedade privada dos meios de produção, o trabalho assalariado e suas implicações, a concentração de riqueza numa época de grande incremento da produtividade, a natureza restritiva e excludente da democracia burguesa – “a democracia não tem acesso às salas de direção das empresas”, diz o autor -, a hegemonia burguesa, o controle privado dos meios de comunicação e o seu papel na construção do consentimento e da resignação entre os trabalhadores e demais setores explorados da sociedade. Continuando com Miliband, este afirma que o “Etos do capitalismo penetrou tão profundamente em todos os aspectos da vida e do pensamento das sociedades capitalistas que essa forma de apropriação – o trabalho assalariado – raramente é questionada hoje em dia, sendo de modo geral considerada ‘natural’. Assim como também parecia ‘natural’ o trabalho escravo em tempos idos.” As acusações ao capitalismo não param por aí.
É na seção 8 do capítulo onde Miliband desenvolve uma das mais contundes acusações ao capitalismo, justamente na sua fase imperialista. O ponto de partida, certamente inspirado em Marx, quando este trata da assim chamada acumulação primitiva, é o registro da pilhagem colonial e do genocídio praticado contra os povos originários no bojo da conquista das Américas, de onde as potências da época vão retirar inúmeras riquezas naturais, essenciais ao nascente capitalismo. Essa conquista é seguida pela pilhagem e domínio da África e da maior parte da Ásia. “Desde então” afirma o autor, “sem dúvida a característica mais importante da história mundial tem sido a inclemente exploração do restante do mundo por parte das potências ocidentais”, revelando, aqui, sua posição claramente anti-imperialista. Para corroborar tal assertiva, Miliband recorre a Paul Bairoch, segundo o qual “é muito provável” que, no final do século XVII, os padrões médios de vida na Europa como um todo e no resto do mundo não eram marcados por grandes diferenças. “Desde então”, retomando Miliband, “o abismo que veio a ser conhecido como linha divisória norte-sul não foi obra de Deus: foi resultado direto da subjugação do Sul pelo Norte.”
Vinculada a tal subjugação estava a disputa imperialista entre as diversas potências, que desaguará, posteriormente, nas Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Embora com outros motivos aparentes, foram conflitos que, subjacentemente, tinham sua motivação fundamental na busca por território, mercados, matérias-primas e mão-de-obra barata.
Avançando a sua análise até a época da Guerra Fria, o marxista belga/britânico argumenta que embora não houvesse ameaça real do expansionismo soviético e de revolução comunista na Europa Ocidental, havia sim “real ameaça de séria contestação das estruturas de poder e privilégio existentes em muitos países, em especial no ‘terceiro mundo’, o que estava ligado, em muitos casos, à luta pela libertação da sujeição à hegemonia ocidental”. E acrescenta: “Todos esses movimentos eram alvo da implacável hostilidade dos Estados Unidos, e os regimes que deles emanavam eram expostos à desestabilização econômica e política e – quando isso de nada valia – à intervenção militar”.
O intervencionismo estadunidense sempre protegeu qualquer regime dócil às suas pretensões, por mais brutal que fosse. “Povos e países do ‘terceiro mundo’ foram assim condenados por uma sucessão de presidentes americanos a grandes sofrimentos nas mãos de regimes reacionários e tirânicos que gozavam de apoio financeiro e militar dos Estados Unidos”, destaca Miliband. Em seguida, o autor elenca inúmeros países onde a intervenção militar capitalista-imperialista estadunidense se fez presente: Grécia (1949), Irã (1953), Guatemala (1954), Brasil (1964), República Dominicana e Indonésia (1965)[5] e Chile (1973). Miliband refere-se ainda a outras ações desencadeadas pelos EUA contra movimentos revolucionários e reformistas em várias partes do mundo, inclusive ao criminoso bloqueio a Cuba.
Tudo isso, diz o autor, constitui “um gigantesco esforço, de dimensões globais, cujo fim era tornar o mundo seguro para o capitalismo, qualquer que fosse o custo para o povo submetido a essa empreitada.” Essa busca para assegurar um futuro ao capitalismo continuará e assumirá formas econômicas, políticas, culturais e militares.
Para Miliband, embora seja simplista a afirmação de que o capitalismo favorece a guerra, pode-se sustentar que “a defesa dos interesses capitalistas e da ‘livre-empresa’ em geral pelos Estados Unidos e por seus aliados gera uma poderosa propensão ao intervencionismo contra movimentos e regimes inconformistas; e conquanto esse intervencionismo assuma muitas formas, sempre acaba por incluir a ameaça e o uso da força”. Aqui, o autor parece antecipar muito do que viria acontecer após a sua morte, basta lembrar as chamadas revoluções coloridas, que derrubaram governos legítimos em vários países.
A possibilidade de se erguer uma ordem mundial contraposta a essa será bloqueada, segundo o autor, enquanto os governos ocidentais continuarem a ter como preocupação dominante a defesa do capitalismo e isso não mudará “enquanto os interesses capitalistas não forem subjugados”.
Diante das acusações feitas, a ideia de que o capitalismo se transformou tanto que se tornou o melhor que a humanidade possa “jamais esperar atingir é um horrível insulto para a raça humana”, conclui Miliband.
Ora, trinta anos depois desse escrito, o que o mundo tem assistido é a crescente piora das condições de vida dos trabalhadores e dos povos e a crescente agressividade do imperialismo, como sempre, tendo como alvo preferencial povos e países que se recusam a se dobrar aos seus desígnios, vide o cerco á Rússia, a destruição perpetrada contra o Iraque, o Afeganistão, a Líbia, a Síria e o genocídio em curso na Faixa de Gaza.
Como foi dito, o texto objeto dessa abordagem é apenas o capitulo I de um livro que, lançado numa “era de ceticismo”, em seu conjunto, constitui uma ampla defesa do marxismo e da ampliação da democracia, de combate ao imperialismo e defesa dos interesses nacionais dos povos dos países dependentes e do socialismo. Dessa forma, embora se possa divergir do autor pontualmente, trata-se de contribuição importante no esforço de reelaboração teórica e programática do marxismo.
[1] Miliband, Ralph. Socialismo e ceticismo. Bauru – SP: EDUSC/São Paulo:Editora UNESP, 2000.
[2]Para o professor Luís Fernandes, Miliband era uma das mentes mais argutas e criativas do pensamento marxista do fim do século XX. Fernandes, Luís. Conceitos fora do lugar: Uma crítica epistemológica das principais teorias ocidentais sobre os Estados socialistas do Leste. in DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 37, n. 2, 1994, pp. 129 a 220.
[3]Miliband é autor, também, de O Estado na sociedade capitalista, edição inglesa de 1969, que foi objeto de uma famosa polêmica com Nicos Poulantzas, e Marxismo e política, tida por Leo Panitch, um ex-aluno de Miliband, como sua obra maior.
[4] Ver resenha do livro, de autoria de Toledo, Caio Navarro de. Crítica Marxista, Campinas, SP v. 7, n.11, pp. 129-134, 2000. DOI: 10.53000/cma.v7i11.19731. Disponível em: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/cma/artcle/view/19731. Acesso em 18/12/2024.
[5] Os assassinatos em massa de comunistas na Indonésia são pouco conhecidos no Brasil. Note-se: se tratava do maior partido comunista no mundo, excetuando-se os da China e da URSS. Para mais informações, inclusive sobre o Brasil, ver Bevins, Vincent. O método Jakarta. Autonomia Literária, São Paulo, 2022.
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Jorge Wilton é servidor público aposentado e natural de Ibicaraí, Bahia. Milita no PCdoB desde 1979. Foi presidente do partido em Feira de Santana e integra o seu comitê estadual na Bahia. Foi diretor do Sindicato dos Fazendários – Sindsefaz, superintendente de Gestão da Secretaria da Fazenda, subsecretário da Secretaria da Copa do Mundo – Secopa e da Secretaria do Trabalho – Setre. É graduado em C. Contábeis e História e mestre em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional. É pesquisador do Grupo de Pesquisa da FMG sobre “Problemas e desafios contemporâneos da teoria marxista”.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.