China: Reconstruindo a Escada para o Desenvolvimento no Século XXI
O economista Euzébio Jorge Silveira de Sousa discute a estrategia chinesa de inovação tecnológica para o desenvolvimento. Foto: Diário do povo.
As transformações tecnológicas são elementos centrais na dinâmica do capitalismo, atuando como marcadores das mudanças nos ciclos econômicos e determinando o ritmo e a estrutura do crescimento econômico global. Desde a Segunda Revolução Industrial, a tecnologia desempenha um papel crucial, associando-se a níveis elevados de concentração de capital, centralização dos mercados e intensificação da divisão e rotinização do trabalho. Essas mudanças são reflexos de um processo de transformação em que a inovação tecnológica define os rumos da produção e as condições de competitividade. Neste texto, abordaremos a importância de investimentos em Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) e como a China tem investido em inovação para realizar um novo modelo de desenvolvimento, integrando-se globalmente, mas mantendo características chinesas (SOUSA, 2024).
Nathan Rosenberg, em sua obra Por Dentro da Caixa Preta, cita Marx para afirmar que a forma como os artefatos são produzidos possui maior relevância para compreender a organização da sociedade do que a função desempenhada por esses artefatos (ROSENBERG, 2006). Esse raciocínio destaca que os avanços tecnológicos, ao redefinirem os processos produtivos, são os verdadeiros alicerces das mudanças sociais e econômicas. Durante a Segunda Revolução Industrial, por exemplo, a introdução de tecnologias como a eletrificação e a produção em massa aumentaram a eficiência, mas também resultaram em maior centralização econômica, intensificando as desigualdades estruturais entre regiões e setores. Rosenberg conclui que, nas sociedades industriais, a ciência é moldada por incentivos econômicos e tecnológicos, tornando-se uma atividade endógena. Ele ressalta que o progresso científico não ocorre de maneira isolada, mas como parte de um processo interativo e cumulativo, onde tecnologia, ciência e economia se influenciam mutuamente.
A relação entre centro e periferia, explorada por Celso Furtado, evidencia outro impacto crítico da inovação tecnológica no capitalismo global. A dependência tecnológica dos países periféricos em relação aos países centrais reforça a reprodução de padrões culturais e produtivos originados nos centros de desenvolvimento. Furtado aponta que essa dependência resulta na consolidação de uma heterogeneidade estrutural, em que os setores econômicos mais dinâmicos não conseguem disseminar produtividade para os setores menos desenvolvidos (FURTADO, 2013). Esse fenômeno impede que os países periféricos aumentem a complexidade de suas indústrias, aprofundando as desigualdades regionais e dificultando a inserção desses países em uma economia global mais competitiva (FURTADO, 1961).
Além disso, a heterogeneidade estrutural impede o avanço para uma diversificação econômica, necessária para a construção de uma economia mais resiliente e menos vulnerável às flutuações globais. A dependência tecnológica não apenas limita a capacidade de inovação endógena dos países periféricos, mas também promove a replicação de padrões de consumo e produção alheios às necessidades locais (FURTADO, 2013). Essa realidade, segundo Furtado, perpetua estruturas econômicas que são incapazes de atender às demandas sociais e de reduzir desigualdades de maneira efetiva.
Paulo Bastos Tigre contribui para esse debate ao enfatizar que o desenvolvimento econômico não pode ser medido exclusivamente em termos de crescimento quantitativo. Ele argumenta que o verdadeiro avanço exige uma diversificação qualitativa, que promova a ampliação da base produtiva, a geração de empregos de qualidade e a expansão dos mercados consumidores. Para atingir esses objetivos, Tigre (2014) ressalta a importância de adaptar as estruturas produtivas às condições específicas de cada país ou região (TIGRE, 2014). Isso envolve o aproveitamento eficiente dos fatores de produção disponíveis e a promoção de inovações que respondam às demandas sociais e econômicas locais.
Essa perspectiva se conecta diretamente à estratégia chinesa, que compreende a centralidade das inovações tecnológicas para a superação de deficiências estruturais de sua economia. A China direciona sua estratégia de desenvolvimento econômico e social para a construção de uma sociedade moderadamente próspera, promovendo intensa expansão, diversificação e inovação tecnológica (NONNENBERG; MOREIRA; BISPO, 2022). A promoção da autonomia tecnológica por meio da inovação endógena e o foco em setores estratégicos, como inteligência artificial, energias renováveis, biotecnologia e veículos elétricos, ilustram o comprometimento do país em alinhar o progresso econômico com objetivos de longo prazo. Para evidenciar esse enfoque, analisaremos alguns dados que demonstram como a estratégia chinesa de desenvolvimento está centrada em CTI, destacando os impactos de seus investimentos em inovação no cenário global (SOUSA; DEL VECCHIO; DA COSTA, 2024).
De acordo com o Gráfico 62, a China apresentou um crescimento acelerado na produção científica, ultrapassando 800 mil artigos publicados em periódicos indexados pela Scopus em 2021. Este desempenho reflete investimentos consistentes em pesquisa acadêmica e na formação de capital humano qualificado (MCTI, 2022). A estratégia enfatiza a expansão de universidades, centros de pesquisa e a cooperação entre instituições científicas e industriais.
Os dados do Gráfico 63 evidenciam a liderança global da China em pedidos e concessões de patentes no Escritório de Marcas e Patentes dos EUA. Em 2021, a China registrou mais de 60 mil pedidos, consolidando-se em áreas como semicondutores, inteligência artificial e energias renováveis. Esses números demonstram o papel estratégico da inovação para o fortalecimento econômico (MCTI, 2022).
A China tem demonstrado um crescimento exponencial nos investimentos em P&D. Conforme mostrado no Gráfico 55, em 2020, os gastos absolutos em P&D ultrapassaram 500 bilhões de dólares (paridade de poder de compra), aproximando-se dos níveis de economias avançadas, como os Estados Unidos. O percentual do PIB destinado a P&D passou de 0,91% em 2000 para 2,4% em 2020, evidenciando o alinhamento estratégico entre políticas públicas e crescimento econômico (MCTI, 2022). O Estado desempenha papel central nesse processo, oferecendo incentivos fiscais e subsídios a empresas inovadoras, especialmente em tecnologias avançadas como semicondutores e 5G.
A China também investe massivamente na formação de talentos em ciência e engenharia. Segundo o Gráfico 60, em 2020, mais de 5 milhões de trabalhadores estavam empregados em atividades de P&D, consolidando o país como líder global no setor (MCTI, 2022). A expansão de universidades, institutos de pesquisa e a integração com indústrias são elementos cruciais para a construção de uma base científica sólida (MCTI, 2024).
O impacto dessas políticas é evidente em setores-chave. No setor de carros elétricos, a China lidera globalmente, respondendo por mais de 60% das vendas mundiais em 2023. Sua estratégia inclui parcerias internacionais, como com a Tesla, e subsídios ao consumidor e à indústria (SOUSA; DEL VECCHIO; DA COSTA, 2024). No setor de energias renováveis, os investimentos em energia solar e eólica consolidaram a China como a maior exportadora global de painéis solares. Em biotecnologia e saúde, o aumento de patentes na área de fármacos reflete o crescimento da indústria farmacêutica e da biotecnologia como prioridade estratégica. Na nanotecnologia, a China também apresentou crescimento exponencial.
Além disso, na área de tecnologia da informação (TIC), a China registrou um salto de 148 pedidos de patentes em 2000 para 29.408 em 2019. Esses dados refletem investimentos em inteligência artificial, 5G e semicondutores. Em termos de meio ambiente, o número de pedidos de patentes da China cresceu de 98 em 2000 para 5.214 em 2019, consolidando sua liderança em tecnologias sustentáveis e energias renováveis (MCTI, 2022). Esses avanços demonstram que a China entende a importância de inovações tecnológicas que sejam não apenas eficientes e competitivas, mas também socialmente inclusivas e ambientalmente sustentáveis.
Por fim, a estratégia de internacionalização e cooperação da China se destaca pela integração em cadeias globais de valor, utilizando joint ventures e transferências de tecnologia para reduzir a dependência de insumos estrangeiros. A diplomacia econômica, com iniciativas como o Cinturão e Rota, fortalece a presença chinesa no Sul Global, promovendo parcerias comerciais e acadêmicas. O apoio estatal coordenado assegura a continuidade dos avanços tecnológicos, direcionando investimentos e supervisionando a alocação de recursos estratégicos.
Assim, a China demonstra um crescimento exponencial em todas as áreas analisadas, destacando-se como uma das principais potências tecnológicas globais e redefinindo o cenário da inovação no século XXI. No entanto, é importante ressaltar que, embora a China seja uma referência no campo da CT&I, ela não deve ser considerada um modelo universal. A experiência chinesa revela o potencial para novas formas de desenvolvimento econômico, diferenciadas da chamada modernidade ocidental.
A China demonstra que é possível alinhar crescimento econômico com características próprias, promovendo inovação de forma integrada à sua cultura e estratégias nacionais. Essa abordagem evidencia a necessidade de repensar a indústria do século XXI, tornando-a mais tecnológica, digital, inclusiva e ambientalmente sustentável.
A combinação dessas perspectivas destaca que a inovação tecnológica, quando integrada a estratégias de desenvolvimento, pode transcender seu papel econômico tradicional e atuar como um catalisador para transformações sociais mais amplas. No entanto, para que isso ocorra, é fundamental que a inovação seja planejada e adaptada às realidades locais, evitando a reprodução de dependências tecnológicas e desigualdades estruturais (MCTI, 2024). A diversificação econômica deve ser um objetivo central, promovendo não apenas o crescimento do PIB, mas também a criação de um sistema produtivo mais equilibrado, sustentável e inclusivo (MCTI, 2024).
Portanto, a inovação não deve ser vista apenas como um motor do crescimento econômico, mas como um instrumento essencial para a transformação estrutural das economias capitalistas, especialmente nas periferias. Ao integrar ciência, tecnologia e inovação a estratégias nacionais de desenvolvimento, é possível promover uma industrialização mais equilibrada, reduzir desigualdades regionais e atender aos dilemas sociais contemporâneos. Essas reflexões reforçam que o papel da inovação transcende o campo econômico, alcançando o cerne das questões sociais e estruturais do capitalismo global.
Referências
FURTADO, Celso. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.
FURTADO, Celso. Essencial Celso Furtado. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
INDICADORES DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO NO BRASIL. Brasília: Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), 2022.
POLÍTICAS INDUSTRIAIS NA CHINA NOS ÚLTIMOS TRINTA ANOS. Nonnenberg, Marcelo José Braga; Moreira, Uallace; Bispo, Scarlett Queen Almeida. Revista Tempo do Mundo, n. 28, abr. 2022. Disponível em: https://doi.org/10.38116/rtm28art11. Acesso em: 27 dez. 2024.
RELATÓRIO GERAL DA 5ª CNCTI. Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Brasília: MCTI, 2024.
ROSENBERG, Nathan. Por Dentro da Caixa Preta: Tecnologia e Economia. São Paulo: Edgard Blücher, 2006.
SILVEIRA DE SOUSA, Euzébio Jorge. Brasil e China: inovação e sustentabilidade na era da fratura hegemônica. São Paulo: Fundação Maurício Grabois, 2024.
SILVEIRA DE SOUSA, Euzébio Jorge; DEL VECCHIO, Angelo; DA COSTA, Rafael Rodrigues. Estratégia chinesa e o potencial brasileiro. Versão v3. 2024.
TIGRE, Paulo Bastos. Gestão da Inovação: Uma Abordagem Estratégica, Organizacional e de Gestão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.
[1] Este texto é uma versão preliminar que será apresentado e debatido durante o 8º Encontro Anual de Economia Política, a ser realizado na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, em Portugal, entre os dias 30 de janeiro e 1º de fevereiro de 2025, com o tema “Economia Política para uma Vida Justa: Desafios Teóricos e Práticos”. Ficarei satisfeito em receber observações dos leitores para incorporar no texto, seja nos comentários da postagem ou por e-mail: [email protected].
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Euzébio Jorge Silveira de Sousa é Coordenador do GP 4: Trabalhadores e a Era Digital – Assessor especial do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), autor do livro “Juventude, Trabalho e o Subdesenvolvimento” e doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Unicamp. Atualmente, atua como professor de Economia na FESPSP e na Strong Business School, e é membro da Cátedra Celso Furtado. Ele também possui pós-doutorado em Economia Criativa e da Cultura pela UFRGS.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.