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Mundo do Trabalho: Contra o Discurso da Automação: o fim da escala 6×1 e a campanha Faça a Amazon Pagar 

29 de dezembro de 2024

Pesquisador do Grupo de Pesquisa da FMG sobre Trabalhadores e a Era Digital, Cristhiano Duarte demonstra como empresas de alta tecnologia como a Amazon vivem do trabalho precarizado.

Coincidências da Vida

Com algum atraso chegamos ao nosso encontro de dezembro. Finalmente! Como a coluna demorou mesmo pra ficar pronta, permitam-me arrastar um pouco mais o passado recente e colocar a ponta do fio condutor da nossa conversa nos acontecimentos dos últimos trinta dias… e apertem os cintos, essa coluna vai ser longa.

Nesse ano, vocês se lembram, o mês da consciência negra viu o primeiro feriado nacional em homenagem à Zumbi dos Palmares [1]. Uma antiga luta por reconhecimento dos vários movimentos negros nacionais e que se articula perfeitamente com a luta anti-capitalista. Afinal, todo feriado pode e deve ser visto como um pequeno grão de areia na máquina de guerra da acumulação desenfreada de um sistema que faz com que todos os seus agentes dependam do mercado para produzir e reproduzir — vamos voltar a esse tema mais pra frente. Contudo, colado ao feriado, por essas coincidências que a vida nos traz, novembro também foi o mês da Black Friday.

Numa celebração à ‘comodificação’ de todas as esferas da vida contemporânea, a famigerada e esperada última sexta-feira de novembro é um dia dedicado às vendas e às promoções mais mirabolantes [2] que o comércio varejista consegue imaginar. Uma importação recente [3] do varejo brasileiro que não parece incomodar tanto assim os defensores da cultura, da língua e da soberania nacional. De fato, ao que parece, o dia foi um ‘sucesso’ na sua versão de 2024. Pelo menos é o que contam as muitas bocas do mercado: um crescimento de 16,1% nas vendas em comparação com o ano anterior — puxado por uma alta de 17,1% no comércio físico e de 8,9% no comércio online — aliado a um faturamento 15,2% maior do que o obtido em 2019 (ano pré-pandêmico) [4-6]. Uma maravilha! Um case de sucesso!

Mas qual a relação entre a Black Friday e a luta anti-racista com o discurso da automação, o fim da escala 6×1 e a campanha Make Amazon Pay (Faça a Amazon Pagar), objetos de escrutínio da coluna desse mês?

Materialismo Histórico

Me permitam colocar meu chapéu de materialista histórico uma vez mais, e começar a costurar essa colcha de retalhos olhando para como um pedaço da bruxaria envolvida nesse dia de vendas é organizada — no sentido mais cru do termo. É certeza que qualquer mercadoria comprada durante a Black Friday não caiu do céu, acertando em cheio o showroom da loja Luíza da esquina. Muito menos o produto comprado online, esse também não foi teleportado pelo aplicativo da grande varejista nacional (ou americana, ou chinesa) diretamente da fabricante para a porta da sua casa. Muito provavelmente, essas mercadorias passaram um tempo sentadas num grande armazém sabe-se Deus lá aonde — parece que ‘estoque’ é uma palavra que entrou em desuso. Assim que seu pedido é concluído, uma longa cadeia de atividades envolvidas na circulação do capital é acionada uma vez mais: da validação e liberação da compra pelas operadoras de crédito e da movimentação dentro do próprio estoque, passando pelos correios e empresas de logística privadas até o momento da entrega… trabalho humano, trabalho humano e trabalho humano. Nos armazéns, no transporte e na venda, é o trabalhador e a trabalhadora que se apertam entre a oferta e a demanda do eterno ciclo da acumulação capitalista [7]. Deixem-me ser ainda mais taxativo: o trabalho nos armazéns [8], nas vans de entregas [9] e nos caixas não são realizados por robôs autônomos [10].

Como muito bem articulado por Robert Brenner [11], a tendência do fechamento de postos de trabalho notada desde o fim dos anos 70 é uma expressão das crises de excesso de capacidade da produção capitalista. De fato, nos anos 80 a maioria dos trabalhadores e trabalhadoras do mundo ainda se concentravam no setor agrícola; já no fim de 2018 esse número atinge a marca de 28% do total da força de trabalho mundial [12]. O maior destruidor de empregos do século XX foi o ‘capitalismo nitrogenado’ e não o ‘capitalismo do Vale do Silício’ [12]. A automação completa do setor de serviços ainda mora num futuro distante, a exploração do trabalho humano nesse setor ainda reina soberana, e os discursos da automação não se seguram quando o assunto é a materialidade do mundo real.

A bem da verdade, num sistema de propriedade social onde o lucro é um fim em si mesmo, avanços tecnológicos muito dificilmente superarão a espoliação humana, em especial naqueles lugares onde o trabalho humano permanecer barato, dócil e em número suficiente. Não há como negar que o sonho molhado da substituição completa do trabalho humano pelo trabalho ‘robotizado’ libertaria a humanidade da exploração do capital, mas essa tautologia ainda é um pedaço de ficção. As recentes mobilizações de trabalhadores e trabalhadoras da Amazon e a recente pauta unificadora contra a 6×1 em solo nacional dão um tapa de luva na cara daqueles que propagam o discurso da automação.

(Contra) O Discurso da Automação

É comum encontrar futuristas, comentaristas políticos, jornalistas e vulgos especialistas em novas tecnologias (disruptivas) alardeando o fim do trabalho como o conhecemos. É claro que o fenômeno não é uma novidade, mas é fato que os rápidos avanços nas áreas de inteligência artificial, aprendizado de máquina e robótica jogam um papel importante na versão contemporânea desse discurso. Linhas de montagem ‘de luzes apagadas’; máquinas que dançam, que cozinham, que conversam e fazem sexo; computadores que detectam sinais iniciais de câncer; caminhões que se dirigem sozinhos; cachorros-robôs que carregam armamentos militares pesados por regiões de difícil passagem; a ‘comodificação’ das decisões de políticas públicas sob a insígnia das smart cities [13]… a lista é enorme e — na superfície — parece indicar que estamos próximos a um ponto de inflexão. Mas como articula Aron Benanav, existem muitos indícios pra suspeitar do hype entorno do ‘discurso da automação’.

Esse tipo de ‘discurso’ faz parte de uma tentativa justa de se organizar uma teoria social que visa não somente analisar as tecnologias atuais e predizer o futuro delas, mas também explorar as consequências e os impactos das mudanças tecnológicas para a sociedade como um todo. Muito do que fazemos nessa coluna e uma parte do trabalho da própria Fundação Maurício Grabois também passa por esse ponto — afinal, carxs leitorxs, avanços tecnológicos disruptivos são expressões concretas das leis de movimento impostas pelas relações de propriedade sociais do sistema em que viemos. Entretanto, o que chamamos de ‘discurso da automação’ tem certas características marcantes [12]. Primeiro, ele advoga que trabalhadores e trabalhadoras já estão sendo deslocados por máquinas cada vez mais avançadas — resultando em níveis elevados de ‘desemprego tecnológico’. Segundo, esse deslocamento faria parte de um sinal indiscutível de que estamos próximos a um momento de virada, onde a sociedade seria amplamente automatizada, com virtualmente todo o trabalho sendo executado por máquinas e computadores inteligentes. Terceiro, ainda que esse sonho de virada acabasse com o trabalho humano, vivemos numa sociedade baseada no subjugo real do trabalho ao capital, e sem trabalho esse sonho se tornaria um pesadelo [14]. Por fim, posto o pesadelo (ou sonho) do fim do trabalho, a única maneira de contornar a situação seria a instituição de algo como uma renda básica universal, responsável por cortar o laço entre o salário e trabalho. Auto-declarados futuristas (de todos os espectros políticos) são os maiores disseminadores do ‘discurso da automação’, mas eles não estão sozinhos. O mesmo tipo de pensamento também é entusiasticamente adotado por uma parte da elite vocal e famosa do Vale do Silício [15].

O que periodicamente invoca o fantasma do discurso da automação é uma ansiedade profunda sobre o funcionamento crítico e a organização do mercado de trabalho típica do modo de produção social que enfrentamos: existem muito menos empregos do que pessoas aptas a trabalhar. Por que o mercado de trabalho não absorve todas essas pessoas? Bom, proponentes do discurso da automação vão explicar a baixa demanda por trabalho como um efeito da desorganização causada pelas mudanças tecnológicas — hoje mais do que nunca. Não obstante, essa explicação não é unânime, longe disso. Existem contra-argumentos materialista-históricos para as bases do ‘discurso da automação’, e eles são a espinha dorsal dessa coluna. Vamos à teoria e depois ao fatos.

Primeiramente, o declínio na demanda por trabalho das últimas décadas não se deveu a um salto tecnológico genuinamente disruptivo e sem precedentes, mas sim a mudanças técnicas num ambiente de aprofundada estagnação econômica. Segundo, a baixa demanda por trabalho tende a se manifestar como precarização persistente das relações de trabalho (sub-empregos, empregos precários, contratações temporárias e etc.), e não como um pico de desemprego em massa. Terceiro ponto, dentro do sistema prevalente, uma massa de trabalhadores e trabalhadoras precarizadxs vai continuar a ser aceito ou mesmo bem-recebidxs por aqueles que se apropriam da mais-valia alheia — nesse sentido, como tão bem argumentado pelo bom e velho Marx, é de duvidar que avanços tecnológicos levem mecanicamente à adoção de medidas tecnocráticas como a renda básica universal — veja, por exemplo, como a defesa da renda básica universal é feita num monólogo Suplicyiano no Brasil. Isso posto, o que nós, comunistas ou não, deveríamos nos dedicar é em como criar — na práxis — um mundo de abundância mesmo sem uma automação total da força de produção.

Em resumo, desafiando o discurso da automação — e as consequências políticas práticas dele oriundas — podemos dizer que as novas tecnologias até podem servir como uma causa secundária da baixa demanda por trabalho humano, mas o ponto crucial para explicar esse fenômeno não é o ritmo rápido da destruição de empregos nesses ramos do setor produtivo, mas sim a ausência de uma correspondente alta na criação de postos de trabalho na economia como um todo. Seguindo de perto o argumento de Brenner e Benanav, a principal explicação para essa ‘ausência’ não vem de uma série de mudanças tecnológicas desenfreadas, se assim o fosse elas se refletiriam nas estatísticas como um rápido aumento na produtividade. A realidade nua e crua dos fatos mostra exatamente o oposto, as taxas de produtividade vem caindo, não aumentando. A baixa demanda por trabalho humano na economia como um todo encontra sua verdadeira fonte (i) na diminuição do ritmo do crescimento econômico como um todo, associado com (ii) o esgotamento do motor da manufatura e (iii) a falha em achar uma alternativa para ele. A consequência nefasta dessa dinâmica é a precarização persistente e a super-exploração da força de trabalho. Vejamos como grandes empresas de tecnologia lidam com os seus ‘robôs’.

Make Amazon Pay

Quando pensamos na Amazon, é provável que pensemos no caráter varejista da mesma. A receita da gigante do varejo vem aumentando ano após ano: de absurdos 280 bilhões de dólares em 2019 aos estrondosos 574 bilhões em 2023. O crescimento das operações de vendas também vai bem obrigado: 37% em 2020 quando comparado ao ano anterior e aproximadamente 12% em 2023 quando comparado à 2022 [16]. Talvez pensemos na Amazon como uma empresa de tecnologia. Ironicamente prometendo mudar o mundo para melhor, desde 2006 a Amazon Web Services oferece serviços de computação em nuvem (incluindo soluções de Inteligência Artificial Generativa), com parceiros comerciais variando de institutos de pesquisa e empresas brasileiras, até máquinas de guerras de governos genocidas — junto da Google, a AWS assinou um contrato de 1,2 bilhões de dólares com o governo israelense para prover um ecossistema de computação em nuvem para o setor público de Israel, do qual o IDF pode ser o maior beneficiário [17]. Pode até ser que pensemos na Amazon como uma empresa de logística. Em 2023, o investimento acumulado de 5 anos no Delivery Service Partner foi de 8 bilhões de dólares. A estimativa é que considerando apenas o ano de 2023 a ‘Amazon’ tenha entregue 7 bilhões de pacotes para seus usuários prime dos Estados Unidos. Contudo, quero fechar esse resumo com a perspectiva de quem realmente faz a Amazon ser o que ela é.  Segundo Gabriel Irizarry, motorista da Amazon na DIL7 em Illinois (EUA): “A Amazon é uma das maiores e mais ricas corporações do mundo… Eles falam muito sobre cuidar de seus trabalhadores, mas quando se trata disso, a Amazon não nos respeita e nem ao nosso direito de negociar melhores condições de trabalho e salários. Não temos nem condições de pagar nossas contas.

“Não temos nem condições de pagar nossas contas”… a precarização descrita por Gabriel Irizarry não é um caso isolado e reflete com perfeição o contra-discurso da automação que abordamos no bloco anterior. Por anos a empresa vem enfrentando a resistência de trabalhadoras e trabalhadores super-explorados em armazéns, vans, supermercados e pequenas manufaturas ligadas à empresa — gerenciados diretamente ou indiretamente pela gigante da tecnologia. Aqui tem de tudo um pouco: casos de neo-colonialismo na Cidade do Cabo; passividade com relação a condições de trabalho insalubre em Bangladesh, Índia e Califórnia; metas impraticáveis para motoristas de entregas; quebra e ações organizadas contra sindicatos; restrição ao escrutínio público… a lista é praticamente interminável. O fato é que a Amazon não deixaria nada a desejar para um relatório sobre a condição da sua classe trabalhadora — sem falar no impacto ambiental legado pela varejista: desmatamento, emissão de CO2, uso excessivo de plásticos de uso único [18].

Se curvar a essa gigante da tecnologia não é uma opção, e essa luta vem sendo travada local e internacionalmente. Em 2020, uma coalizão internacional de trabalhadores, trabalhadoras e ativistas começou uma mobilização também de escala global para Fazer a Amazon Pagar (Make Amazon Pay). De São Paulo a Berlim, de Seattle a Hyderabad, ativistas projetaram esse grito de guerra em locais onde a Amazon opera, avisando a corporação de que seus dias de impunidade acabaram. Em novembro de 2022 a Amazon enfrentou protestos coordenados na Argentina, Austrália, Áustria, Bangladesh, Bélgica, Brasil, Camboja, Canadá, República Tcheca, França, Alemanha, Hungria, Índia, Japão, Luxemburgo, Holanda, Palestina, Polônia, Eslováquia, África do Sul, Turquia, Reino Unido e EUA. Em outubro de 2023, esses mesmos trabalhadores e trabalhadoras organizaram a primeira Cúpula para Fazer a Amazon Pagar em Manchester, no Reino Unido. Esse ano, no período entre a Black Friday e a Cyber Monday, trabalhadores e trabalhadoras ao redor do mundo se articularam mais uma vez para Fazer a Amazon Pagar.

Sem sombras de dúvidas, a Amazon é uma grande empresa de tecnologia, mas seus galpões, vans, supermercados e manufaturas ao redor do globo estão longe de personificar a utopia tecnológica propagada pelos arautos do fim do trabalho. Para todos os efeitos práticos (e teóricos) a Amazon é feita de gente de carne e osso… carne e osso super-explorado e precarizado em busca do lucro.

Mas a Amazon é só uma empresa, certo?

O Trabalho Ainda é Central: pelo fim da 6×1!

Pois bem, se o exemplo concreto da precarização do trabalho humano persistentemente levado a cabo pela Amazon ainda não é suficientemente convincente, passemos a discutir a luta pelo fim da escala 6×1; um fenômeno nacional que revela (mais uma vez) não só o caráter estrutural das relações de trabalho no capital, mas como o discurso da automação falha miseravelmente em dar conta dos fatos materiais — e que de quebra ainda mostra como a relação capital x trabalho ainda deve ser vista como central ao sistema [20], e como raça e gênero estão imbricadas com a noção de classe.

A proposta de emenda à constituição assinada pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-RJ) surge das demandas e reivindicações de trabalhadores e trabalhadoras, por meio de mecanismos participativos, como a petição pública online do Movimento “Vida Além do Trabalho”, organizado pelo trabalhador Ricardo Azevedo, em que quase 800 mil brasileiros e brasileiras cobraram do Congresso Nacional o fim da jornada 6×1 e adoção da jornada de trabalho de 4 dias na semana sem redução salarial — evidenciando a relevância e o respaldo significativo da sociedade em relação à necessidade de reformas na legislação trabalhista. Na história brasileira das relações de trabalho, os conflitos e tensões em torno da jornada reduzida sempre foram alvo preferencial dos empregadores e empregados, não obstante, por meio da luta de trabalhadores e trabalhadoras conquistou-se o descanso semanal remunerado, férias, licenças maternidade e paternidade, abono de faltas e outros direitos. A história geral de todo e qualquer avanço da redução da jornada de trabalho sempre se deu num contexto de mobilizações que conseguiram furar o bloqueio patronal — afinal, a luta de classe é o motor da história. Contudo, voltando ao contexto brasileiro, sob análise da redução de jornada legal de trabalho, compreende-se que, no marco da Constituição de 1988, em que o tempo de trabalho foi reduzido de 48h para 44 semanais, as outras grandes alterações na legislação do tempo de trabalho favoreceram os empresários em detrimento de trabalhadores e trabalhadoras, como aconteceu em 2017 — para uma análise rigorosa do tema, veja o relatório do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades Made/USP [21].

Relações de gênero e racialização também jogam um papel importante nessa história, como destacou Julieta Palmeira numa intervenção aqui mesmo na Fundação Maurício Grabois: a redução da jornada de trabalho interessa em especial às mulheres. No Brasil, elas representam 48,1% da força de trabalho. Com variações regionais, o percentual de domicílios sob a responsabilidade de mulheres cresceu e passou de 36% em 2012 para 50,8% em 2023. No recorte de ‘raça’, as mulheres negras lideram 21,5 milhões de lares (56,5%) e as não negras 16,6% milhões de lares (43,5%). A essa realidade soma-se o fato de que as mulheres são maioria das pessoas desempregadas (55,5%), em subemprego ou desalentadas, recorrendo ao trabalho informal. Entre as famílias chefiadas por mulheres negras 43,9% estão fora do mercado de trabalho formal e entre os lares chefiados por não negras a percentagem chega a 44,2. Já a taxa geral de desocupação das mulheres negras foi de 13% e de não negras 8,8% mantendo o padrão de que as mulheres negras têm taxa de desemprego maior. Ainda considerando diferenças regionais, as mulheres dedicam 9,6 horas por semana a mais do que os homens aos afazeres domésticos e/ou de cuidados com pessoas — as mulheres com alguma ocupação chegam a dedicam 6,8 horas semanais a mais do que os homens ocupados [22]. Nesse sentido, conclui Julieta, o eventual fim da escala 6×1 pode trazer benefícios para a qualidade de vida das trabalhadoras brasileiras, em especial das mulheres negras, diante do quadro atual da organização e divisão de trabalho produtivo e reprodutivo no Brasil. 

Se voltarmos ao exemplo da Black Friday no Brasil, é bem provável que quem está lendo essa coluna também foi ao comércio ou trabalhou no comércio durante o período. O que se via era um mais do mesmo piorado pelo esquema de guerra das lojas: funcionários e funcionárias completamente moídos — numa semana que não terminava na Friday, nem no Saturday… talvez no Sunday… mas que com certeza voltava na Monday. Vale lembrar que o segmento do comércio corresponde a assustadores 19,3 milhões de empregos no Brasil [23], um recorde da série histórica da PNAD contínua — sem falar na ocupação também recorde no setor de serviços como um todo [24]! Muita gente espremida entre a oferta e a demanda. Muitos humanos com contratos precários, salários baixos, pressão patronal, escalas intermináveis, mas que se avolumam cada vez mais e mais… muito a se explicar se adotarmos o discurso da automação e a consequente conclusão de que as máquinas já estão entre nós roubando nossos empregos, não é mesmo!?

Conclusão

Certos futuristas, comentaristas políticos, jornalistas e ‘especialistas’ querem nos fazer crer que um futuro comunal de puro luxo tecnológico e sem trabalho humano está mais próximo do que parece, dado o constante fechamento de postos de trabalho e os contínuos saltos tecnológicos dos últimos anos. O que adeptos e adeptas do discurso da automação parecem querer esquecer é que a correlação de duas variáveis aleatórias não implica em causa direta entre elas — ou que talvez o fato de escrever livros num escritório fechado e fresquinho e dar palestras em grandes e requintados teatros não é representativo do trabalho do resto do mundo. Uma análise mais criteriosa mostra que a longa retração econômica sentida globalmente desde o fim dos anos 1970 é uma expressão de uma profunda crise do capital, e não de um admirável novo mundo. Se a baixa demanda por trabalho fosse reflexo da substituição do humano pelo robotizado, o que veríamos era um aumento global de produtividade na economia dos países mais ‘avançados’ tecnologicamente. Essa tendência não é percebida na prática, muito pelo contrário. Exemplos de que ainda estamos sob a égide da exploração do trabalho humano abundam, e aqui abordamos dois deles: a campanha Make Amazon Pay e o início de uma longa luta pelo fim da escala 6×1.

Tratar da exploração do trabalho contemporâneo é tratar do sistema pelo qual essa exploração é organizada. Não há alternativa, precisamos voltar a falar da natureza estrutural e estruturante da economia moderna [25]. Precisamos voltar a olhar para as relações de propriedade sociais que impõem uma dependência brutal do mercado e a comodificação de todas esferas da vida humana a ela associada. Precisamos entender que avanços tecnológicos não são puxados por uma seta universal, unilinear e determinista, mas sim pela luta de uma classe que tudo produz em oposição a outra que apenas se apropria do trabalho alheio. Nesse sentido, devemos ir além da espera de um milagre, de uma tecnologia salvadora que invariavelmente caiará do céu azul e transformará o mundo de exploração e precarização em algo parecido com um comunismo de luxo, sem trabalho. Precisamos acima de tudo lembrar que um programa político que aponte um caminho rumo a uma alternativa socialista deve reconhecer as condições históricas daquilo que queremos superar. Aliás, não podemos esquecer que qualquer alternativa socialista válida deve defender com unhas e dentes uma verdadeira noção de democracia — que exprima uma nova racionalidade, uma nova lógica econômica, uma nova lei de movimento.

De fato, se quisermos apresentar uma alternativa viável para superar o sistema onde a irracionalidade do mercado impera soberana, precisamos da força de quem move o sistema. Precisamos lembrar que classe é relação e processo. A luta pelo fim da 6×1 nos mostrou uma luz no fim do túnel. Bom fim de ano a todxs!

Notas

[1]Cristhiano Duarte, Novas Tecnologias Disruptivas – Raça, Classe e o Fetiche Tecnocrático: O Feriado de 20 de Novembro e a Defesa Técnica, Fundação Maurício Grabois,https://grabois.org.br/2024/11/20/novas-tecnologias-disruptivas-raca-classe-e-o-fetiche-tecnocratico-o-feriado-de-20-de-novembro-e-a-defesa-tecnica/ (acessado em 23 de Dezembro de 2024).

[2] Andreia Verdélio, Cartilha dá dicas para não cair em golpes na Black Friday, Agência Brasil, https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2024-11/cartilha-da-dicas-para-nao-cair-em-golpes-na-black-friday (acessado em 23 de dezembro de 2024).

[3] Black Friday: Entenda a Origem do Dia e Onde Surgiu o Termo, Revista Exame, https://exame.com/pop/black-friday-entenda-a-origem-do-dia-e-onde-surgiu-o-termo/ (acessado em 23 de dezembro de 2024).

[4] Curiosamente, os segmentos que mais se destacaram no faturamento da Black Friday de 2024 foram os supermercados e hipermercados, com alta de 26,2%, seguidos por farmácias e drogarias, que registraram alta de 21,7%. O fato que esses dois setores (alimentação e saúde) encabeçam a lista dos campeões do faturamento de 2024 é reveladora em si mesma e merece uma análise mais detalhada, um tópico pra uma coluna futura.

[5] Vendas da Black Friday no Brasil crescem e superam nível pré-pandemia, diz Cielo, CNN Brasil, https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/vendas-da-black-friday-no-brasil-crescem-e-superam-nivel-pre-pandemia-diz-cielo/#:~:text=CNN%20Money-,Vendas%20da%20Black%20Friday%20no%20Brasil%20crescem,n%C3%ADvel%20pr%C3%A9%2Dpandemia%2C%20diz%20Cielo&text=O%20varejo%20teve%20crescimento%20de,faturamento%20total%20apurado%20pelo%20setor. (acessado em 23 de dezembro de 2024).

[6] Maria Luiza Dourado, Black Friday: vendas no e-commerce brasileiro crescem 10,5%, totalizando R$ 9,3 bi, InfoMoney, https://www.infomoney.com.br/consumo/black-friday-vendas-no-e-commerce-brasileiro-crescem-105-totalizando-r-93-bi/ (acessado em 23 de dezembro de 2024).

[7] Não vou me ater aqui a eterna discussão sobre se a logística, transporte e venda de ‘commodities’ também gera valor, deixo esse tópico pra aqueles e aquelas que realmente entendem do assunto. O que vou me ater aqui é sobre a imbricação entre automação, exploração do trabalho formal e o papel das grandes empresas de tecnologia. Para uma discussão sobre a possível extração de valor no momento da circulação veja: Karl Marx et. al., Capital: A Critique of Political Economy, London, Penguin Books in association with New Left Review, (1990-1991); David Harvey,  A companion to Marxs Capital, Verso (2010); Peter Meiksins, Beyond the Boundary Question, New Left Review, 1/157, May/Jun (1986);

[8] Shirin Ghaffary, Robots arent taking warehouse employeesjobs, theyre making their work harder,  Vox, https://www.vox.com/recode/2019/10/22/20925894/robots-warehouse-jobs-automation-replace-workers-amazon-report-university-illinois (acessado em 24 de dezembro de 2024); Beth Gutelius e Nik Theodore, The Future of Warehouse Work: Technological Change in the U.S. Logistics Industry, UC Berkeley Labor Center Working Partnerships USA,  disponível em http://laborcenter.berkeley.edu/future-of-warehouse-work/ (2019)

[9] Sophie K Rosa,  Bezos is to Blame For Amazon WorkersPublic Defecation, Novara Media e Progressive International, https://novaramedia.com/2021/01/25/amazon-delivery-drivers-are-being-shamed-for-relieving-themselves-in-public-but-bezos-is-to-blame/ (acessado em 24 de dezembro de 2024).

[10] Ramishah Maruf, Amazons cashier-less technology was supposed to revolutionize grocery shopping. Its been a flop, CNN, https://edition.cnn.com/2024/04/03/business/amazons-self-checkout-technology-grocery-flop/index.html (acessado em 24 de dezembro de 2024); Peter Wilgoren, Self-checkouts are disappearing from retailers. Heres why, KTLA, https://ktla.com/news/consumer-business/self-checkouts-are-disappearing-from-retailers-heres-why/ (acessado em 24 de dezembro de 2024).

[11] Robert Brenner, The Boom and the Bubble: The US in the World Economy, New York: Verso (2002).

[12] Aaron Benanav, Automation and the Future of Work. London: Verso (2020).

[13] Smarter Cities, New cognitive approaches to long-standing challenges, IBM (acessado em 24 de dezembro de 2024).

[14] Vale a pena falar que visões menos pessimistas dessa virada rumo ao fim do trabalho também podem ser encontradas na literatura, como é o caso da perspectiva de tecno-otimistas como Ray Kurzweil: Ray Kurzweil, The Singularity Is Near: When Humans Transcend Biology, New York: Viking (2005).

[15] Bill Gates já propôs algo como um imposto sobre robôs; Mark Zuckerberg já disse aos calouros e calouras de Harvard que elxs deveriam explorar ideias como a renda básica universal; e o próprio Elon Musk que além de concordar com o dono da Meta sobre a renda básica (um tópico tão caro a nossa esquerda, não é mesmo camaradas?) também batizou alguma de suas naves da SpaceX com nomes vindo de ficções científicas libertárias, onde humanos e robôs convivem sem a presença de Estados e Mercados. 

[16]  WSJ Markets, https://www.wsj.com/market-data/quotes/AMZN/financials/annual/income-statement (acessado em 24 de dezembro de 2024).

[17] Charmaine Chua, Jake Alimahomed-Wilson e Spencer Luis Potiker, Amazons Investments in Israel Reveal Complicity in Settlements and Military Operations, The Nation, https://www.thenation.com/article/economy/amazon-prime-day-israel/ (acessado em 24 de dezembro de 2024).

[18] Amazons U.S. transportation pollution surges since company announced Climate Pledgefive years ago, Pacific Environment, https://www.pacificenvironment.org/press-releases/amazons-u-s-transportation-pollution-surges-since-company-announced-climate-pledge-five-years-ago/# (acessado em 24 de dezembro de 2024).

[19] Saiba um pouco mais sobre a campanha no website: https://makeamazonpay.com/.

[20] Ellen M. Wood, Why Class Struggle is Central, Against The Current, 10 (1987).

[21] SERRA, G. P.; BOTTEGA, A.; SANCHES, M. A reforma trabalhista de 2017 pode ter tido efeito sobre a taxa de

desemprego no Brasil? Uma breve revisão da literatura. São Paulo: Centro de Pesquisa em Macroeconomia das

Desigualdades (Made/USP), 2024. (Nota de Política Econômica n. 21), d

[22] Julieta Palmeira, O Fim da 6×1 Interessa em Especial às Mulheres, Fundação Maurício Grabois, https://grabois.org.br/2024/11/17/julieta-palmeira-o-fim-da-6×1-interessa-em-especial-as-mulheres/ (acessado em 25 de dezembro de 2024).

[23] Agência Gov. EBC, Com 102 milhões de pessoas ocupadas, mercado de trabalho bate novos recordes, Agência Gov,  https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202408/com-102-milhoes-de-pessoas-ocupadas-mercado-de-trabalho-bate-novos-recordes (acessado em 25 de dezembro de 2024).

[24] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Pesquisa Anual de Serviços, https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/servicos/9028-pesquisa-anual-de-servicos.html?=&t=destaques (acessado em 25 de dezembro de 2024).

[25] Phillip Inman, We need to talk about capitalism: Why won’t labour do it?, The Guardian. https://www.theguardian.com/business/2024/nov/30/we-need-to-talk-about-capitalism-why-wont-labour-do-it (acessado em 25 de dezembro de 2024).

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Cristhiano Duarte é pesquisador da Chapman University. É membro do Grupo de Pesquisa da FMG sobre Trabalhadores e a Era Digital.

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG.