Cultura: O Auto da Compadecida 2 e a modernização conservadora
Theófilo Rodrigues traz uma leitura da sociologia política para o novo filme de Guel Arraes. O Auto da Compadecida 2 estreou nos cinemas no último dia 25 de dezembro.
Estreou nos cinemas brasileiros na última semana O Auto da Compadecida 2, filme que dá sequência ao clássico lançado em 2000 a partir da obra de Ariano Suassuna. Mais uma vez a direção ficou com o genial Guel Arraes, agora ao lado de Flávia Saraiva, além do trio original no elenco formado por Matheus Nachtergaele (João Grilo), Selton Mello (Chicó) e Virginia Cavendish (Rosinha). Enrique Díaz também está de volta em seu papel de cangaceiro.
A novidade no elenco fica por conta de Humberto Martins (Coronel Ernani), Taís Araújo (Nossa Senhora de Aparecida), Eduardo Sterblitch (Arlindo), Luís Miranda (Antônio do Amor) e Fabiula Nascimento (Clarabela Catacão).
Claro que alguém poderá dizer que o filme não tem o mesmo desempenho do primeiro, mas ele não faz feio. É divertido, bonito e poético, como é do costume do diretor. É preciso ressaltar que Guel Arrares está num bom ano. Após um tempo sumido das telas do cinema, o diretor voltou com tudo em 2024 com o lançamento de Grande sertão e, agora, com O Auto da Compadecida 2. Diga-se de passagem, o diretor repetiu alguns atores em seus dois filmes desse ano como Eduardo Sterblitch e Luís Miranda. Por sinal, tanto Grande sertão quanto O Auto da Compadecida são representantes do que há de melhor no realismo mágico brasileiro.
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Mas não é só o diretor Guel Arrares que está com tudo. O ator Selton Mello também aparece nas telas pela segunda vez neste 2024. A primeira foi com o aplaudidíssimo Ainda estou aqui, filme de Walter Salles que representará o Brasil no Oscar em 2025.
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O filme mantém o humor do original de Suassuna. Além disso, reafirma a diversidade cultural que já estava presente no primeiro filme. Se na versão de 2000 a figura de Jesus era representada por um ator negro (Maurício Gonçalves), dessa vez é Nossa Senhora Aparecida que aparece perfeitamente bem na pele negra de Taís Araújo – na primeira versão, foi Fernanda Montenegro quem viveu o papel.
A modernização conservadora em Taperoá (Alerta de spoiler)
O pano de fundo da história de O Auto da Compadecida 2 é o conflito entre o arcaico Coronel Ernani, proprietário das terras da cidade de Taperoá na Paraíba, e o moderno empresário da rádio local, Arlindo. Arlindo e Coronel Ernani disputam com unhas e dentes a eleição pela prefeitura da cidade. Contexto perfeito para as trapalhadas de Chicó e João Grilo, no mesmo estilo do primeiro filme.
Há, no entanto, uma diferença sociológica que merece atenção. Certamente os dois filmes tratam da questão social e das assimetrias decorrentes de uma sociedade de classes. Contudo, se no primeiro filme o conflito se dava entre o cabo e o valentão da cidade, enquanto o fazendeiro Major Antônio Morais reinava sem maiores problemas, dessa vez o que está em atrito é a própria estrutura de classes de Taperoá. Por um lado, o velho latifundiário Coronel Ernani representa tudo o que há de mais atrasado e arcaico naquela sociedade. Por outro, o jovem empresário Arlindo é a face da modernização promovida pelo capitalismo, articulando no mesmo empreendimento o comércio e a finança com seus produtos, serviços e créditos.
Seria um belo conto didático para aqueles que acreditam que a história se resume ao novo superando o velho, sem qualquer dialética, como se em todas as formações sociais o burguês fosse a negação do aristocrata, ou o comércio a negação do latifúndio, sem qualquer mediação. Mas aqui é o Brasil…
Lenin com o conceito de via prussiana, Gramsci com o conceito de revolução passiva e Barrington Moore com o conceito de modernização conservadora já haviam percebido que a transição do arcaico ao moderno não aconteceu em todos os lugares da mesma forma, debaixo para cima. Na Itália do Risorgimento, na Prússia dos junkers, na França da Restauração ou no Brasil, a modernização não veio desde baixo, mas sim pelo alto, a partir de uma aliança entre as classes antigas e as classes novas, uma aliança entre a burguesia e a aristocracia.
E o que acontece na Taperoá do O Auto da Compadecida 2? O conflito entre Arlindo e o Coronel Ernani culmina em conciliação, em uma aliança entre o moderno e o arcaico pelo compartilhamento de poder. A mudança se dá pelo alto, numa revolução sem revolução.
Não bastasse a beleza da narrativa, o novo filme de Guel Arrares é também uma aula de sociologia política.
Theófilo Rodrigues é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UCAM. É coordenador do Grupo de Pesquisa Cultura & Sociedade da Fundação Maurício Grabois.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.