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Saúde: o STF, as empresas e a judicialização da saúde no Brasil

31 de dezembro de 2024
Durval de Noronha Goyos Junior critica o posicionamento do presidente do STF, Luís Roberto Barroso, acerca da judicialização dos casos de saúde. Foto: Agência Brasil.

Durval de Noronha Goyos Junior critica o posicionamento do presidente do STF, Luís Roberto Barroso, acerca da judicialização dos casos de saúde. Foto: Agência Brasil.

A RESISTÊNCIA CIVIL AOS ABUSOS CAPITALISTAS NA SAÚDE PÚBLICA: O CASO DO TRANSTORNO AUTISTA

O acesso à prestação jurisdicional do Estado é uma circunstância essencial para o exercício dos direitos da cidadania e resolução dos conflitos econômicos e sociais. De fato, sem o recurso ao Poder Judiciário, a enunciação das leis apresenta-se como inane e ineficaz, sendo meramente retórica ou exortatória. Assim, a proteção pela Justiça configura um direito fundamental do cidadão e um irrenunciável e imprescindível serviço público do Estado. É certo que, para a implementação da lei, impõe-se um Judiciário independente, competente, digno e atento às vicissitudes humanas e sociais, como a solução dos casos dentro de um universo de tempo que seja o mais breve possível. O referido princípio foi acolhido pela Constituição de 1988, a qual dispõe no inciso XXXV, artigo 5º, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direitos”.

Não obstante a veemente clareza do dispositivo constitucional, a sua aplicabilidade prática tem sido comprometida através dos tempos, tanto pela desatenção ao seu texto por juízes e tribunais, por diversos motivos idiossincráticos, como ainda pela falha na obediência ao princípio da isonomia, ou da igualdade de todos perante a lei, também consagrado no mesmo artigo supramencionado. Se, na sociedade, o poderoso se prevalece ante ao frágil, o arrogante perante o humilde, o rico face ao pobre, o petulante face ao afável, o branco sobre as demais raças, o homem sobre a mulher, tal ascendência não pode persistir no Judiciário, que deve se pautar sempre dentro do ordenamento jurídico.

A inobservância de tal direito fundamental comprometeria absolutamente a estrutura democrática de um país, levando-o à opressão, à barbárie, à selvageria, ao exercício arbitrário das próprias razões, ao abuso da cidadania, ao terror e à desesperança. Esta situação tem lamentavelmente ocorrido nos últimos tempos, com a desenvoltura das forças capitalistas, alimentada pela ganância pelo lucro desmedido, animada pelo sentimento cruel de busca da terra devastada e pela desalmada indução da miséria absoluta para a consecução do seu propósito de sobreposição ao Estado e aos direitos civis.

No Brasil, o fenômeno se mostrou agudo no tocante à questão da saúde pública, direito também reconhecido pela Constituição de 1988 em seu artigo 6º, o qual ademais “deve ser garantido por políticas sociais e econômicas, visando o acesso universal e igualitário para a sua promoção, proteção e recuperação”. Com o objetivo da implantação do preceito legal, foi criado em 1990 o Sistema Único de Saúde (SUS), governado pelos princípios da universalização, equidade e integralidade. O SUS foi uma das mais importantes conquistas da nação brasileira.

Ao lado do SUS, o capitalismo desenvolveu uma estrutura de seguros de saúde, chamados alegórica e erroneamente de “planos”, para falsear sua natureza legal com o propósito de mitigar as responsabilidades, e de atendimentos médicos e hospitalares de natureza privada. Como é sabido, os modelos capitalistas buscam o lucro e não o bem-estar público. O propósito das ações do capital na saúde é o de remunerar aos seus acionistas, quer seja dos hospitais privados, seja dos seguros privados, como comprovam os seus lucros obscenos. Por isso, na realidade, a saúde pública e o capitalismo são antagônicos, ao representar contradições em termos quanto à sua natureza e à sua ética. Tais características nefastas denegam e obstam os nobres objetivos constitucionais brasileiros.

É de conhecimento notório que a insana busca do lucro leva frequentemente ao manejo fraudulento das instituições privadas de seguro de saúde. No capitalismo, é recorrente a prática de antecipar receitas e retardar despesas com o objetivo de fortalecer o fluxo de caixa, principalmente em economias com juros altíssimos, como é o nosso caso. Este procedimento faz com que a autorização para a prestação de serviços seja diferida, sob diversos pretextos, em benefício dos lucros e em detrimento dos pacientes. Até mesmo o retardamento para o fornecimento de medicamentos tem se tornado comum. Tais ações podem configurar crimes contra a economia popular, dentre outros ainda mais graves.

Da mesma forma, o sistema de seguros saúde tem se negado a atender diversas patologias ou condições definidas como doença, também aqui sob especiosos pretextos ou ainda manobras funcionais diversas que inviabilizam os tratamentos recomendados cientificamente. Dentre nós, resta emblemático o caso do autismo, condição que, segundo os cientistas do principal centro de estudos sobre a condição, do Center for Disease Control (CDC) dos Estados Unidos da América (EUA), atinge 1:36 crianças e 1:45 adultos, cerca de 2% da população, ou um universo de 4 milhões de pessoas no Brasil, segundo interpretação do Instituto Lahmiei-Autismo, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Aproximadamente 26% da população do País tem cobertura de seguros de saúde, ou sejam 51 milhões de pessoas.

O Código Internacional de Doenças (CID), que faz parte do Direito internacional, define o Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) como um distúrbio neurológico. Não obstante, os seguros saúde no Brasil têm sistematicamente negado a cobertura com relação ao tratamento científico mais recomendado para a condição, qual seja a Análise do Comportamento Aplicada, também conhecida por ABA, o que leva as famílias envolvidas ao desespero e, muitas vezes, às barras dos tribunais, na busca da Justiça. Tipicamente, as entidades capitalistas falsamente denominam tais ações de aventuras judiciais, tentativas de legalizar fraudes ou de judicialização excessiva e pedem ainda a redução dos conflitos resultantes no inadimplemento de suas obrigações, sem que atentem à sua causa.

No propósito de cooptar a opinião pública nacional às suas práticas ilegais, imorais e antiéticas, sem nos atermos às eventuais tipificações criminais, as empresas de seguros saúde têm promovido uma ampla campanha de opinião pública. Neste sentido, a Associação Brasileira de Planos de Saúde (ABRAMGE), comprou quatro páginas do jornal O Estado de S. Paulo, em 1 de dezembro de 2024, com o título “Judicialização predatória afeta o equilíbrio do setor de saúde”. A matéria paga ainda informa que 3 ministros do Supremo Tribunal Federal teriam “pedido a redução de conflitos e a busca por parcerias” (sic).

O referido material propagandístico ainda informa que, entre janeiro e outubro de 2024, mais de 550 mil novos casos judiciais envolvendo temas de saúde pública e suplementar foram distribuídos na Justiça brasileira, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Tal “extrema e indevida” judicialização da saúde no Brasil sobrecarregaria o Poder Judiciário, traria insegurança jurídica e desequilibraria um dos setores “mais importantes” do País. Segundo a peça promocional, os ministros presentes teriam se manifestado no 28º Congresso da ABRANGE no sentido de demandar a redução da judicialização. De acordo com citação atribuída ao presidente do STF, magistrado Luís Roberto Barroso, “os juízes não são treinados para fazerem análises sistêmicas do impacto das decisões” e para o juiz Dias Toffoli “a saúde suplementar também é pública e temos que pensar juntos”.

O juiz Barroso ainda teria, sempre de acordo com o texto propagandístico, afirmado que “litigar é barato para quem litiga, mas é caro para a sociedade”. A assertiva atribuída ao magistrado desconsideraria o ônus, por exemplo, para uma mãe trabalhadora, sem parceiro, com um(a) filho(a) autista, de contratar um advogado, optar por iniciar uma relação processual; buscar provas num assunto arcano; e ainda lidar com a insensibilidade e morosidade do Poder Judiciário brasileiro. Tudo isso enquanto a(o) filha(o) autista fica definhando a sós (ou com atendimento insuficiente e inadequado), no chão de canto dum quarto escuro.

De mais a mais, a alegada posição do juiz  sobre o custo social do litígio levaria o observador imparcial a entender o seu desconhecimento do fato de que a sociedade civil pátria somente muito a contragosto, e movida pelo sentimento de desespero, entra no horripilante, tenebroso e frustrante inferno dantesco da judicialização no Brasil. Ao recorrer ao Judiciário face a tamanhas injustiças, parece claro que a cidadania lança um brado de resistência civil contra o abuso, ao mesmo tempo em que busca a afirmação do império da Lei. Afinal, como ensinou Edmund Burke, cada pessoa tem que decidir por si mesma o que é certo e o que é errado. Sobre a luta civil, Nelson Mandela observou que tudo parece impossível, até que seja feito, enquanto Mahatma Gandhi recomendou a não transigência com os direitos fundamentais.

Uma alternativa de caridosa explicação à alegada posição do juiz sobre o conforto em que estariam os autores das ações contra as empresas de seguros-saúde seria aquela de atribuir tal disparatada avaliação ao mais ácido cinismo, temperado por largas doses de deboche, com mancheias de arrogância e volumosos caudais de paroxismos de insensibilidade humana. Ao mesmo tempo, seria natural ao observador isento indagar o porquê de tais posições dos magistrados, contrárias a normas constitucionais e infraconstitucionais. Qual seria a sua motivação e o quê os levaria a se afastarem de tantas regras de conduta?

Mais ainda, de acordo com a ABRANGE, esta entidade estaria apta a oferecer apoio processual técnico ao Judiciário, uma disparatada e assombrosa proposta, que contraria o devido processo legal e o sistema do contraditório, por dar a uma das partes o poder de decisão judicial, o qual deveria ser, em tese, independente. Em apoio a tal colossal e espantoso dislate, o juiz Barroso, presidente do STF, teria destacado que “um juiz não pode mais decidir sem ouvir uma manifestação técnica”, para a mais profunda estupefação mesmo de um pobre de espírito.

Ora, no Brasil, assim como no âmbito do Direito comparado, a prova processual deve ser feita de maneira documental, pericial ou inspeção judicial. Ela deve ser oferecida pelas partes, dentro do processo contraditório, com o objetivo de convencimento da Corte jurisdicional, trazendo elementos sobre a matéria em disputa, ou ainda promovida por perícia de especialista independente, quando a questão não pode ser resolvida pelo juiz por falta de conhecimento técnico ou científico, conforme o Código de Processo Civil.

A tentativa da parte de uma entidade de classe, visando a subversão da ordem jurídica brasileira, constitucional e infraconstitucional, é um fato da maior gravidade, atrevimento, petulância, cinismo e insolência. Ela apenas demonstra a total falta de credibilidade do setor econômico capitalista para atender os requisitos legais atinentes à sua atividade empresarial. Por sua vez, mais do que estupefação, a descrita atitude indecorosa dos citados magistrados no participar de um congresso de entidades que fazem parte de milhares de disputas, as quais potencialmente poderiam chegar à sua jurisdição, enseja o mais veemente repúdio pela consciência forense nacional, por violar a ordem jurídica pátria. De fato, se verdadeiras as atribuições, os juízes se posicionariam na posição de suspeição, pela perda da imparcialidade. Se falsas as alegações, faz-se necessária a apuração das responsabilidades civis e criminais dos autores; se procedentes, em nome da moralidade pública impõe-se a renúncia dos magistrados.

Aonde chegamos? Para onde iremos?


Durval de Noronha Goyos Junior é jurista, escritor, historiador e lexicógrafo. Advogado qualificado no Brasil, Inglaterra e Portugal. Árbitro do GATT, da OMC, do SHIETAC, do SCIAC e do SCIA. Consultor Florida Bar e California Bar. Coautor da Enciclopédia da Paz da ONU.

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.