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Observatório Internacional: Moçambique na mira do imperialismo

2 de janeiro de 2025

Pesquisador do Observatório Internacional da FMG, Paris Yeros descreve a situação política em Moçambique. Foto: Acnur.

As eleições de outubro de 2024 em Moçambique seguiram o conhecido roteiro de desestabilização contra um partido com histórico anti-imperialista no poder. O roteiro parte de um clima de denúncia de fraude previamente cultivado por uma “oposição” alinhada ao imperialismo e segue para um surto de violência e assassinatos de autoria indefinida atravessando o período eleitoral, a contagem oficial de votos e por conta própria pela oposição, rejeição pela oposição do resultado oficial, rejeição da comissão eleitoral e da corte constitucional, convocação para protesto pós-eleitoral, saída espontânea nas ruas de um povo trabalhador lumpenizado, levando à depredação de propriedades e prédios públicos, e terminando com repressão policial e mais mortes. No caso de Moçambique, estima-se que já morreram em torno de 250 pessoas neste episódio eleitoral.

FRELIMO, o partido de libertação nacional no poder desde 1975, conhece bem a desestabilização. A sua luta contra o colonialismo português, que correu paralelamente ao conjunto de lutas de libertação na África Austral contra o colonialismo – em Angola, Namíbia, Zimbábue (Rodésia) e África do Sul – foi seguida de uma guerra civil devastadora para o país, contra a RENAMO, grupo guerrilheiro organizado e apoiado pelos regimes segregacionistas da Rodésia e da África do Sul, para impedir justamente que FRELIMO consolidasse soberania nas suas mãos.

A experiência da desestabilização contra movimentos de libertação está gravada na memória dos povos da região. Pois a mesma dinâmica convulsionou Angola por mais de duas décadas após a independência, por meio da guerra interna entre o MPLA, o partido de libertação que conquistou o poder em 1975, e UNITA, partido transformado em força por procuração a serviço da África do Sul e da OTAN. O mesmo teria ocorrido no Zimbábue, se ZANU, recém-chegado ao poder em 1980, não tivesse cortado pela raiz uma rebelião armada em 1983 que ameaçou a sua própria soberania, o que não poupou o país de uma experiência traumática logo na transição. E foi a mesma intransigência colonial que mergulhou a África do Sul, o epicentro do poder colonial na região, numa violência feroz contra o movimento de libertação liderado pelo CNA, até o acordo final de 1993 e as primeiras eleições no ano seguinte.

Moçambique, junto à região, fez um longo e árduo caminho para independência, cujas cicatrizes continuam abertas. Nota-se que o acordo de paz no Zimbábue foi firmado em 1987 e dura até hoje, porém o país está sob sanções e constante desestabilização devido à sua reforma agrária e ao seu enfrentamento declarado ao imperialismo. Em Moçambique, um acordo firmado em 1992 não teve adesão firme por parte da RENAMO, sofrendo recaídas à violência até o mais recente acordo em 2019. Angola teve que aguardar até 2002 por um acordo de paz. Namíbia, país ocupado pela África do Sul do apartheid, ganhou independência tardiamente em 1990, sob a liderança da SWAPO, na reta final das negociações de transição na própria África do Sul. Todos estes partidos percorreram este caminho juntos e continuam no poder até hoje, e todos enfrentam a ingerência do imperialismo especialmente em tempos de eleições. Afinal, o exercício do sufrágio universal, uma conquista dos movimentos de libertação contra o imperialismo e o colonialismo, virou hoje uma arma no arsenal do imperialismo. 

Não importa que todos os partidos de libertação nacional da região tenham caído nas garras do neoliberalismo. De fato, a própria independência da região foi condicionada à aceitação da abertura econômica, facilitada naquela conjuntura pela queda da União Soviética. O “pacto” da transição neocolonial foi um “pacto” de transição neoliberal numa fase de desgaste geral devido à guerra na região e mudança nas relações de força em escala global. Certamente, muito pode ser dito sobre a constituição interna e os compromissos ideológicos dos movimentos de libertação, cuja gramática oficial em todo caso foi o Marxismo-Leninismo. O emburguesimento acabou encontrando o seu caminho. Porém, tal análise não pode prescindir da análise do imperialismo, que mobilizou as suas forças instaladas na região para travar uma guerra geral de trinta anos, seguida de guerras civis. O seu objetivo hoje continua o mesmo: remover, um por um, os partidos de libertação que ainda têm relação orgânica com as lutas de libertação e, sobretudo, desmontar o pacto de defesa mútua estabelecido em 2003, que busca blindar a região (a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral, SADC, sigla em inglês) da ingerência militar. Esta é a realidade concreta da África Austral neste século XXI.

O caso de Moçambique tem um agravante. A sua transição neocolonial, mesmo que tenha sustentado altas taxas de crescimento econômico a partir de investimentos ocidentais em recursos naturais e energéticos, não garantiu a integração nacional, nem mesmo a integridade territorial. O retorno recorrente ao conflito armado interno nas províncias do centro e do norte manteve viva a ameaça de um imbróglio semicolonial, com intervenção externa em parte do território nacional. Como se não bastasse a atuação armada de elementos da RENAMO até 2019, eclodiu também outro conflito no norte, em 2017, na província de Cabo Delgado, ora liderado por forças fundamentalistas islâmicas inspiradas no salafismo-jihadismo. Em 2019, se aliaram oficialmente ao ISIS. Estima-se que um milhão de pessoas, quase a metade da população da província, tiveram que abandonar as suas casas e se deslocar internamente e em países vizinhos. A perda de controle sobre parte da província às forças jihadistas, especialmente a parte ligada aos volumosos investimentos da França e dos EUA na exploração de gás natural, superou a capacidade de defesa do exército moçambicano. O governo recorreu, tardiamente e relutantemente, à ajuda militar da SADC, mas também da Ruanda, sendo a primeira autofinanciada, e com recursos limitados, e a última financiada pela União Europeia.

Moçambique se junta ao quadro geral da ingerência militar imperialista cujo foco principal na região até hoje tem sido a República Democrática do Congo (RDC). As contradições continuam a se ampliar. Cabe lembrar que a RDC foi a causa imediata da construção de um acordo de defesa mútua após a tentativa de assalto ao poder em Kinshasa por Ruanda e Uganda, na segunda guerra civil da RDC a partir de 1997, com o apoio militar, financeiro e logístico dos EUA. A invasão vinda da fronteira oriental, e visando atravessar todo o país até a costa atlântica, definiu o que estava em jogo na África Austral após a sua libertação: o reestabelecimento de um estado cliente na RDC, justamente onde havia se construído na Guerra Fria um dos principais pilares da geoestratégia dos EUA e de seus parceiros europeus. A invasão foi vista como uma ameaça existencial para a região e foi respondida por uma intervenção ad hoc das forças armadas de Angola, Namíbia e Zimbábue para bloquear o avanço das tropas patrocinadas pelos EUA.

Cabe acrescentar a esta dinâmica regional que, embora Angola tivesse interesses estratégicos mais imediatos no conflito da RDC, pela fronteira compartilhada e o pelo histórico de atuação transfronteiriça de grupos armados, a força motriz ideológica naquela altura para a construção da unidade em matéria de defesa regional foi o governo do Zimbábue. A intervenção no Congo veio na esteira do abandono pelo Zimbábue dos acordos com o FMI e da re-radicalização do movimento de libertação, que culminou, em 2000, na maior reforma agrária no mundo em décadas, com a desapropriação de mais de 80% das terras do agronegócio ainda sob as mãos dos colonos rodesianos. Por mais que a região tenha mantido um patamar mais alto de soberania em questões estratégicas, a rebelião do Zimbábue ainda atingiu o pacto neoliberal e neocolonial da região. O início de sanções punitivas, econômicas e militares, contra este país tem marcado todo este período e dificultado a atuação militar posterior mais ativa do próprio Zimbábue, inclusive em Moçambique. Foi reportado na imprensa que o governo moçambicano teria manifestado preferência por um acordo bilateral com o governo do Zimbábue para combater a insurgência em Cabo Delgado. Porém, seja pelo desgaste de vinte anos de sanções, seja pelo compromisso em soluções coletivas, foi a SADC que assumiu a liderança, paralelamente à Ruanda, que por sua vez, apresenta uma nova complicação dada a sua atuação direta na RDC até hoje.            

Uma última observação é necessária para o nosso entendimento do desafio posto para Moçambique, como para tantos outros países. A saída maciça e ousada da juventude nas ruas é uma realidade onipresente, permanente e incontrolável. Em relação a Moçambique, a mobilização pós-eleitoral tem sido interpretada de duas maneiras, ambas equivocadas. Uma lamenta a “impaciência” da juventude com os processos de desenvolvimento econômico e político. Outra celebra o “protagonismo” da juventude na “luta de classes”. O que se apresenta, a rigor, não é nem impaciência, nem luta de classes. Fato é que o imperialismo contemporâneo se destaca com o enorme acumulo de reservas de trabalho que concentra hoje nos países do Sul. Uma das suas principais características é a constante pressão insurrecional, que diferentemente de épocas anteriores, falta hoje forças políticas capazes de direcioná-las. As reservas de trabalho no continente africano também concentram o grosso da juventude, que já constitui dois terços da população do continente. Portanto, não se reduz à impaciência, se com isso quer dizer impaciência com o modelo econômico vigente. Tampouco é luta de classes: nem tudo que evolve o povo trabalhador é luta de classes, obviamente. As insurreições constantes em Moçambique, desde aquelas lideradas pela RENAMO até as salafistas em Cabo Delgado, e inclusive as atuais nas áreas urbanas sob a liderança de um pastor-político que, de noite para o dia, se torna líder de uma rebelião, constituem a matéria prima do imperialismo. O desafio posto é reverter a situação pela mudança de rumo econômico, que apesar de tudo, só os partidos de libertação e os seus herdeiros ideológicos ainda conseguem fazer.

Paris Yeros é Professor da UFABC, integrante da Escola Nacional João Amazonas e do CEBRAPAZ. Pesquisador do Observatório Internacional da FMG.

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG.