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Marxismo: Marx, Vieira Pinto e o direito

6 de janeiro de 2025

Enoque Feitosa apresenta uma síntese de sua tese de titularidade aprovada por unanimidade no Curso de Direito da UFPB. Foto: arquivo de Vieira Pinto.

O DIREITO E A TENSÃO ENTRE O QUE É E O QUE DEVE SER – Um exame descritivo acerca de um horizonte político prescritivo (a partir de Marx e Vieira Pinto)

O presente artigo – síntese da tese com a qual fomos aprovados para ascensão a classe de Professor Titular do Curso de Direito na UFPB – trata da tensão entre como se apresenta o direito efetivamente e o que nele se constitui como “dever-ser”, não se constituindo, diga-se desde já e em sentido técnico, tal “dever-ser” aquilo que uma dada sociedade espera que o “bom direito” seja, mas sim e tão somente a previsão do que, legalmente, deva acontecer caso alguém transgrida uma regra jurídica.

Tem, portanto, como objetivo realizar uma análise descritiva do direito (ou seja, como ele é, em nossa realidade) mas o faz apontado – e como etapa diferenciada da descrição – para um horizonte que discute o seu papel na realidade brasileira, sendo uma síntese das pesquisas desenvolvidas pelo docente em sua trajetória de professor assistente, iniciada em 2009 até a presente titularidade.

Decorre, do recorte acima, o problema que a tese buscou responder, qual seja, como é operada a distinção – no interior do âmbito jurídico entre forma e conteúdo – com o acento nesse modo específico de regulação social, o direito, e em sua conformação moderna, na sua exteriorização enquanto estrutura específica de controle que equilibra coerção e consentimento.

Fez-se, para tanto, uma abordagem focada na resposta ao problema ‘o que é’ ou ‘o que caracteriza essencialmente o direito’, tratando-o – reitere-se – não a partir do que se gostaria que ele fosse, mas sim como ele efetivamente se apresenta, em prol, portanto, de uma atitude científica descritiva, de viés realista e materialista-histórico.

Como fio condutor, destacou-se a consideração da melhor adequação de um exame dialético para compreender o âmbito jurídico e percebê-lo enquanto nada mais que um discurso de justificação do existente vez que sua crítica não é tarefa de uma teoria do direito e sim das teorias sobre o mesmo. E, em razão disso, é que se faz uso da distinção entre os valores, sua valoração (ou hierarquização) e as escolhas sobre sua validação (ou positivação) em um dado agrupamento societário.

Como referencial teórico para tal exame se faz uso de parte das obra de Marx e de Engels, notadamente aquelas nas quais a forma jurídica é examinada e, concomitantemente, um autor nacional, o filósofo que pensou o nacional-desenvolvimentismo, demógrafo e médico ligado ao ISEB na segunda metade do século passado, Álvaro Borges Vieira Pinto.

O nosso objetivo, na tese em questão, se limitou a evidenciar como essa abordagem descritiva do direito e esses referenciais teóricos são dotados de maior aptidão em entender a forma jurídica através do exame da sua natureza e nela a tensão entre ‘o que é’ e ‘o que deve ser’, o que – corretamente – diferencia o descrever um fato da prescrição de regras que normatizam esse mesmo fato.

Com  isso, visa-se mostrar as implicações dessa distinção no exame do direito como instrumento normativo que reflete e expressa, por meio de normas, o estágio e o desenvolvimento (ou retrocessos), em nosso caso, na questão nacional como aspecto da luta de classes em nosso país. 

Nesse exame da forma jurídica, nos valemos, desde o início, de um recorte: o da teoria e o da filosofia do (e sobre o) direito. E, para tanto, fez-se uma abordagem a partir de duas questões decisivas: a primeira, diz respeito a tensão, no direito, entre formalismo e concretização e que se desdobra na segunda, através da dicotomia entre descrever o direito – atividade essa tipicamente da ciência do direito e que se coloca em um campo oposto ao prescrever como esse mesmo direito deveria ser, algo que constitui-se num projeto de viés ético-político, visto que – como lembra Engels – não se faz ciência com posições a priori.

Tal pretensão implicou em perquirir como nossos pensadores se colocaram acerca da tentativa a qual, a um ponto de vista lógico é absolutamente impossível: pretender extrair como decorrência lógica de um ser (um fato), uma norma (um dever) e como tal confusão tem implicações na forma pela qual se confunde e gera erros de análise sobre certas dimensões do direito, da ética e da política.

Assim., nossa tese examinou a oposição – reitere-se: no âmbito da filosofia e da teoria do direito – entre uma abordagem que trate da forma jurídica como ela efetivamente se apresenta, imbricando fatos, valores e normas, daquela outra abordagem, de perfil moral e que trata de como uma forma jurídica ideal deveria/poderia ser.

Nossa hipótese, em resposta ao problema posto, é que há que se ter em conta a diferenciação entre descrever um fato para, posteriormente, valorá-lo juridicamente, sem confundir as duas instâncias –  e que quando se desrespeita tal separação incorre no que a teoria e a filosofia veio a chamar de “falácia naturalista”.

Com esse iter pretendemos mostrar, como mais eficaz para uma adequada teorização sobre o direito efetivamente existente num agrupamento societário (isto é, aquele que chamamos de direito posto, positivo, no sentido do que efetivamente existe numa sociedade – positum – e que nela é aplicado, vigente) que se deva tratá-lo como ele é, de modo independente de nossas preferências (políticas, filosóficas, morais, éticas etc.), e não como idealmente deveria ser.

E seja de destacar-se que isso não elimina o reconhecimento de que, em termos da filosofia, nada impede que a forma jurídica tenha a possibilidade de ser abordada sob um viés prescritivo – ou seja, de direito a ser criado – ainda que o preço dessa opção seja o de abandonar o objeto e renunciar ao exame da essência do direito que existe num dado momento e numa dada sociedade, com o que aqui se reconhece enfaticamente que este tipo de exame só se pode fazer em abordagens descritivas.

O que é de destacar, ao menos do ponto de vista de uma cultura jurídica que se pretenda marxista, é que o pensar o direito de forma descritiva resulta em tratá-lo pelo viés de uma “perspectiva interna”, ou seja, típica daqueles que são juristas e distinguindo-a de uma perspectiva externa, a qual pode – a depender da abordagem – ser típica de sociólogos, psicólogos, filósofos, politicólogos etc., quando essees olham a forma jurídica “de fora” – e sem considerar suas condicionantes técnicas e funcionamento específico.

Por isso, ao exame desses problemas, não optamos por uma abordagem típica da filosofia do direito dos “puros filósofos”, e sim aquela outra, a filosofia do direito dos juristas, nos termos em que foram compreendidas, entre outros, por autores como Michel Troper e Norberto Bobbio. Para o primeiro, pelo fato de termos a própria experiência jurídica como ponto de partida no exame do que é o direito, e para Bobbio, porque as soluções para os problemas gerais do direito não devem ser buscadas apenas nas obras filosóficas e sim, também, a partir do coração da aludida experiência jurídica.

Em decorrência disso, o reconhecimento – na abordagem que aqui se faz – como premissa teórica, do uso de um método amplamente explorado em outras pesquisas que fizemos (na nossa dissertação de mestrado, nas teses dos doutorados em direito e em filosofia) e testado em trabalhos mais recentes, qual seja, o método dialético – este entendido tal como concebido por Hegel e apropriado em Marx e plenamente aplicável ao direito e que parte de um dado recorte da realidade (portanto, da observação de um objeto) buscando as raízes do problema visando esclarecê-lo e pelo qual se caracteriza a forma jurídica pela afirmação de ela nada mais é do que um discurso de justificação do existente.

Portanto, o terreno do conflito acerca dos pressupostos e características do direito é outro e só pode ser explicado ao buscar que se desvele não apenas a natureza e a essência do jurídico, mas sim compreender centralmente o que é (em sentido ontológico) a formação social que justifica e necessita da forma jurídica e, por esse viés, compreender o motivo pelo qual esse modo específico de regulação social, o direito em sua conformação moderna, prioriza aquele primeiro elemento, isto é, a sua exteriorização expressa em leis que regulam conflitos e os procedimentos formais de aplicá-las.

Por isso mesmo a nossa pesquisa, desde o início de nossa formação acadêmica, fez uso centralmente da abordagem materialista/realista e dialética, precisamente aquela que Marx e Engels fizeram a partir de Hegel, valendo-se do célebre topos da operação da inversão e pela qual o desenvolvimento do real não seria, como imaginara Hegel, reflexo das ideias, mas sim o oposto, ou seja, as ideias como reflexo do real, isto é, o desenvolvimento dialético que se revela na natureza, na história e na sociedade.

Para Engels, a concepção tradicional pela qual a ideia cria o real nada mais seria do que uma inversão ideológica a qual se fazia necessário eliminar, vez que com ela se regride das concepções materialistas e se volta a ver a criação do real através dos conceitos mentais ao invés de considerar estes como imagens de tal ou qual dado real.

Quanto ao que se queria responder com a tese, ou seja seu problema, focou-se na resposta a indagação acerca do que é ou o que caracteriza essencialmente o direito, não como o que se gostaria que ele fosse, idealmente,  e sim como ele efetivamente é, em prol, portanto, de uma atitude científica descritiva, a qual não tem como objeto e nem se preocupa (por que não é sua tarefa teórica ou filosófica) como um suposto ou pressuposto “bom direito” deveria ser e, ao contrário, busca examinar e compreender como o direito efetivamente é – perspectiva esta usada por nós e que abrange tradições distintas, que vão de Hume, no “Tratado da natureza humana”, até o Engels que enceta severa crítica ao chamado “socialismo jurídico” e que analisa o surgimento dos juristas ex professo e da chamada ciência jurídica no escrito sobre a questão da moradia.

Assim e num primeiro momento, a tese se limitou a examinar a essência do direito e suas contradições imanentes, isto é, as suas contradições concretas, abordando a tensão entre formalismo e concretização vis a vis com a questão dos valores, para tanto considerando a ontologia ou teoria do ser/essência uma ferramenta filosófica adequada para tratar da indagação acerca de se há uma validade universal desses aludidos valores jurídicos ou se os mesmos são culturais/contingenciais.

Enfim, tratou-se de saber se a luta pela positivação de valores através do direito (por exemplo, propriedade privada versus sua função social) expressam a tensão entre os mesmos e da luta política em qualquer agrupamento humano, as vezes disfarçadas com deformações ideológicas como se houvesse uma suposta validade universal dos mesmos, como se os mesmos não fossem ponderados enquanto expressões concretas da luta de classes, o que se manifesta na sua hierarquização e validação empírica numa dada ordem jurídica.

Num segundo momento a tese tratou da tensão dicotômica entre as funções de descrever o que é a forma jurídica e prescrever como – em um sentido ideal – ela deveria ser, o que conduz ao problema lógico acerca da impossibilidade da passagem do que é para o que deve ser e como o direito enfrenta o problema da aludida falácia, visto ser logicamente impossível contorná-la, reiterando-se a impossibilidade de se extrair de um fato um dever – algo completamente diverso da constatação pela qual um fato poder gerar consequências.

Num momento seguinte, a abordagem cuidou de examinar as convergências entre dois filósofos que tiveram preocupações não apenas práticas, mas também teóricas com o direito – referimo-nos a Marx e Espinosa – os quais são confrontados ambos com uma perspectiva acerca da aludida impossibilidade de transposição entre ‘o que é’ e ‘o que deve ser’, mostrando que nos dois eram evidentes e corretas tal separação entre descrever e prescrever: Espinosa descreve o agir humano em sua “Ética a moda dos geômetras”, ao passo que no “Tratado Teológico-Político”, ele prescreve como deveria ser uma sociedade racional.

Já Marx, no “Manifesto Comunista”, teoriza de forma descritiva acerca da natureza da sociedade de classes para, em seguida e em momento distinto, prescrever como uma boa sociedade (a comunista) deve ser, mesmo empreendimento que ele realiza no livro ‘O capital’ ao descrever sobre as relações econômicas em uma dada forma de sociabilidade – a burguesa.

Por fim, na etapa conclusiva de nossa pesquisa, forjamos um capítulo que representa uma tentativa, quase um modo de antecipar (e condensar) o sentido de nossa teorização, ao tratar do rebatimento das questões abordadas nos três capítulos precedentes, explorando sua expressão por meio de uma das vertentes mais relevantes de nosso pensamento nacional no tormentoso século XX, qual seja, refletir acerca de um pensador brasileiro preocupado em examinar  os problemas brasileiros tanto a partir de um horizonte político-normativo (ou seja, como dever-ser) e, ao mesmo tempo, como descrição de uma realidade alienada.

Tal empreendimento foi feito por meio de um aspecto da obra do médico, demógrafo e filósofo isebiano Álvaro Borges Vieira Pinto e do modo como ele refletiu sobre a questão nacional no Brasil (na densa obra “Consciência e realidade nacional’) , desdobrando tal olhar pelas lentes da reflexão sobre justiça e direito, fazendo uso da metáfora sobre o “vale de lágrimas” da realidade da dependência, na obra “A sociologia dos países subdesenvolvidos”.

Isso por que não pode se contentar aqueles juristas com formação marxista em se limitarem a lamentar das misérias da sociedade que engendrou o direito burguês (até porque todo direito não é direito burguês), mas sim, entender as vias da construção de um direito que corresponda as novas formas societárias e que se expressem em outros modos de existência.

Tais modos de existência precisarão – e construirão – suas formas jurídicas correspondentes até o horizonte em que essa forma de controle social (o direito) não se faça mais necessário. Ou seja, a cultura marxista acerca do direito tem o dever de não se limitar a afirmação autosustentada – e inconsistente – pela qual todo (o destaque é meu) direito é direito burguês, erro teórico, filosófico, político e ideológico – finalizamos – que entrega a luta pela justiça ao horizonte da ideologia burguesa’.

Enoque Feitosa é Professor titular no Curso de Direito da UFPB, onde leciona desde 2008. É Graduado em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (FDR-UFPE), com Mestrado e Doutorado em Direito pela mesma instituição. Doutor em Filosofia pela UFPB. Fez Pós-doutorado em Teoria e Filosofia do Direito no PPGD-UFSC. Advogado licenciado em razão do regime de trabalho de dedicação exclusiva a docência e pesquisa. Professor visitante na Universidade Nacional Eduardo Monedlane (Moçambique). Foi Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPB e atualmente é vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia/UFPB. Coordena o Grupo de Pesquisa CNPq, no âmbito da UFPB sobre Marxismo, Filosofia e Teoria do Direito, envolvendo docentes e discentes da Graduação e Pós-Graduação em Direito e em Filosofia. Foi dirigente do MR8 do final dos anos setenta até a fundação do PPL e é vice-presidente do PcdoB/PB desde a incorporação do ‘Pátria Livre’ a esta agremiação. Foi presidente da secção local da Fundação Maurício Grabois até 2023. O presente artigo é síntese de sua tese de titularidade aprovada por unanimidade pela Banca Examinadora e com nota máxima.

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG.