Boas vindas ao Portal Grabois, conheça nossa marca
Boas vindas ao Portal Grabois, conheça nossa marca
O que você está procurando?

Olívia Santana defende a urgência de um ousado projeto nacional antirracista 

7 de janeiro de 2025

Deputada estadual do PCdoB, Olívia Santana defende que o presidente Lula assuma posição de liderança global na luta contra o racismo, “fazendo valer uma agenda nacional de promoção da igualdade, em todas as áreas do seu governo”.

Cresce a luta antirracista no Brasil. Cada vez mais as pessoas que sofrem ataques racistas reagem e buscam, legalmente, a restauração dos seus direitos e dignidade atingidos. As redes sociais viraram uma grande caixa-de-ressonância das inúmeras situações de discriminação, crimes de injúria racial captadas, muitas vezes, por câmeras de celular. Embora sejam inexoravelmente ambivalentes, pois o ambiente digital também é o lugar onde navegam as redes do ódio e suas múltiplas formas de ataques aos direitos humanos, as redes sociais têm sido também um território importante de ativismo digital antirracista e de outras lutas. É imperativo, portanto, a regulamentação delas e a responsabilização das empresas com o combate à ciber-violência, para que a dimensão democrática dos usos das mídias sociais prevaleça sobre o risco da barbárie cibernética.

O racismo é resiliente e se revela um dos maiores problemas da estrutura social brasileira, embora secundarizado em todos os níveis do poder e comando da nação. Além de algemadas à condição de cidadãos de quinta categoria, as pessoas negras vivenciam sistematicamente situações que vão de violência simbólica, verbal até a violência racista letal, incluindo, mas não só, aquelas produzidas, institucionalmente, por forças que deveriam proteger a cidadania, zelar pela paz, deter a proliferação da violência, independente de cor, raça e religião, mas que se convertem, frequentemente, em forças que têm o negro como alvo a ser eliminado, ao arrepio da lei. Estima-se que a polícia brasileira mata quase três vezes mais que as policias de 15 países do G20 juntas. E, para surpresa de ninguém, o alvo é, quase sempre, pessoas negras. Recentemente, um homem negro foi pego roubando sabão num supermercado, na zona sul de São Paulo. Ele foi executado com 11 tiros pelas costas, por um policial que o julgou, condenou e aplicou-lhe uma pena de morte, inexistente no Código penal brasileiro. Tal fato é assombrosamente comum de acontecer neste país com pessoas não brancas, com altíssimo grau de impunidade. E é através da luta antirracista, de caráter estratégico, que se pode cumprir a tarefa de deslindar a engrenagem sórdida e sistêmica do racismo estrutural, que impacta o psicológico das individualidades e coletividades, descamba em prejuízos no plano político, econômico, cultural e de toda ordem, deixando um rastro de precarização e destruição de vidas negras e também indígenas.

Apesar de tal cenário, há ainda uma grande dificuldade de compreensão do papel civilizatório do antirracismo como instrumento de transformação da sociedade brasileira. Frequentemente, o movimento negro é taxado de identitarista, como se o conjunto das lutas antirracista estivesse fadado a defender supostos interesses minoritários, em detrimento dos “interesses maiores” da classe trabalhadora ou do conjunto do povo oprimido. A população negra brasileira, constituída de pretos e pardos, é matematicamente a maioria demográfica. Mas, a ideia de “minorias sociais” é sobejamente usada para enquadrar este público, e também as mulheres, numa política de marginalização e exclusão social. O outro, a quem o estado vai tratar como exceção, com um punhado de políticas que não são capazes de produzir alterações estruturais na realidade vivida e que tolera o desequilíbrio socioeconômico e político que se mantem firme. O racismo alcança todos os aspectos da vida em sociedade, precarizando laços de civilidade humana, de exclusão e forjando realidades distintas para negros e brancos, mediadas por privilégios e subalternidades. Recentemente repercutiu em todo o país uma fala racista da modelo e apresentadora Ana Paula Minerato, em um diálogo com seu então namorado, se referindo à cantora Ananda, do grupo Melanina Carioca. Diz Minerato: “A empregada… A do cabelo duro. Você gosta de mina do cabelo duro, Capê? Porque isso aí é neguinha, né? Alguém ali, o pai ou a mãe veio da África…Nossa, mas ela é feia né?”. A modelo, que acabou perdendo o emprego numa emissora de TV e também perdeu o título de musa da escola de samba Gaviões da Fiel, mascarava o seu preconceito quando lhe era conveniente usufruir da cultura negra na vida pública de celebridade, mas o explicitou cruamente, sem disfarce, no ambiente privado. Minerato renega e deprecia as características africanas que aparecem como marcas na imagem de Ananda. Ter o tom de pele mais clara que a de pessoas de pele preta, não impediu que a cantora sofresse ofensas racistas pelo conjunto dos seus traços, que sinalizam a sua ascendência africana. Esta, na tradução do olhar preconceituoso, lhe confere um lugar de inferioridade na escala social de um país onde o racismo dá as cartas. A investida de Ana Paula Minerato expõe um misto de inveja colonial, pela notabilidade do padrão de beleza de Ananda, e o seu identitarismo branco, narcisista, imposto secularmente como único padrão de beleza possível, que rejeita a tudo que dele difere, o que não é espelho.

A tentativa de rebaixar a mulher negra, segue a lógica hegemônica da branquitude, que justifica todo o complexo de superioridade racial, que acumula privilégios, muitas vezes traduzidos na forma discursiva e prática de meritocracia. Como define Lourenço Cardoso, a branquitude é “um lugar de privilégios simbólicos, subjetivos, objetivo, isto é, materiais palpáveis que colaboram para construção social e reprodução do preconceito racial e racismo” (p. 611). É a luta antirracista que, dentre tantas outras frentes, confronta e desconstrói no plano simbólico mitos de beleza e fealdade. O racismo viola a imagem e o corpo das pessoas negras, atravessando todas as dimensões da vida. Portanto, há, e não poderia ser diferente, um importante componente identitário na pauta do movimento social negro. Porém, o reducionismo presente no rótulo “identitarista”, aplicado levianamente por alguns, de maneira generalista a uma pauta tão estratégica, deve ser refutado. Isto não significa desconhecer que, um movimento antirracista que só se concentre na questão racial, sem se dar conta das dimensões de classe e gênero, inevitavelmente descambar para uma prática antirracista limitada e incapaz de produzir emancipação plena da população negra.  Mas por que a identidade é um fator indispensável à luta negra? Porque o racismo atinge frontalmente a identidade das pessoas negras. Seja o racismo de origem (tem o pé na África, tem o pé na cozinha…), denegação dos referenciais culturais e religiosos de origem africana ou, sobretudo, o racismo de fenótipo. Quanto mais negra é a cor da pele e outras características físicas (cabelo, nariz, boca) e culturais relacionadas com a ancestralidade africana, o racismo de fenótipo incide com mais força sobre aquela ou aquele sujeito. Assim, como não fazer militância pela valorização da imagem das pessoas afro-brasileiras e dos povos africanos, dos quais somos descendentes? Nos séculos em que durou a escravidão, no antagonismo entre as classes dos trabalhadores e trabalhadoras escravizados/escravizadas e seus senhores proprietários, a negação da identidade de diferentes povos africanos, o açoite e outros cruéis castigos físicos, psicológicos e sexuais foram vastamente usados como mecanismos ultraviolentos de uso, exploração e controle dos corpos de milhões de seres humanos, sejam os trazidos da África ou os afro-brasileiros nascidos em cativeiro, em inúmeras gerações. O sistema capitalista e todo o seu universo simbólico e ideológico que atravessa as subjetividades, reduziu as populações negras aos mais rebaixados níveis de desumanização que um povo pode sofrer. E o maior legado do escravismo é o racismo estrutural que, na atualidade, mantém com assombrosa resiliência e desenvoltura as gigantescas desigualdades que se baseiam na velha e anacrônica ideia de um suposto “defeito de cor”, como bem denuncia a escritora Ana Maria Gonçalves em sua obra homônima, que subjaz no tecido social brasileiro. Não há como negar a existência do racismo estrutural apenas porque o racismo não está explicitamente cravado no ordenamento político-jurídico que rege atualmente o Brasil. Vale lembrar que os dois artigos que constituíram toda a Lei Aurea, seriam impossíveis de ter o condão de fazer desaparecer toda a estrutura opressiva e de exploração e precarização do trabalho negro da sociedade anterior. E se hoje persiste o trabalho análogo ao trabalho escravo, imagina o que aconteceu no dia seguinte à Lei Aurea com a massa de deserdados e despossuídos que saíra da escravidão formal, ainda que a Abolição tenha sido um avanço histórico.  

O racismo é parte integrante da base em que se estrutura o capitalismo, impregnado nas relações socioeconômicas, políticas, jurídicas e culturais, na subjetividade do povo e nas formas de reprodução social da vida. É fato que por essas terras brasileiras não há leis de discriminação negativa, como foram as leis Jim Crawn, nos EUA ou a legislação do regime de Apartheid na África do Sul. Ao contrário, nossa Constituição declara que todos são iguais perante a lei. Inclusive criminaliza o racismo que, posteriormente, foi regulamentada e tipificada a injúria racial como crime (Lei nº.14.532/2023). Mas, como diria o poeta, a vida é real e é de viés e o racismo é o grande modulador das relações sociais, nos expondo, em negrito, que devemos adotar com mais firmeza o conceito marxista daquilo que é estrutural, na análise das relações racistas que seguem vivas no dia a dia da sociedade brasileira. O racismo não está na lei, mas, na maioria das vezes, está, por exemplo, na cabeça do juiz que a interpreta, corroborando com o encarceramento em massa de pessoas negras, maioria de jovens negros, e, não raro, relativizando, reduzindo penas, dando mais uma chance a criminosos brancos. Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança, mais de 40% dos presos estão na faixa etária entre 18 e 29 anos. E para os mais incautos sobre o impacto do racismo na estruturação das classes sociais, observem os dados estatísticos: a classe dominante brasileira é, curiosamente, quase toda branca, enquanto a classe trabalhadora é fundamentalmente composta de uma imensa presença de pretos, pardos, indígenas e demais não brancos, embora exista também uma minoria de brancos entre os pobres. Senão, vejamos os dados do estudo “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil” realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que expõe as aberrações socioeconômicas fundadas no racismo estrutural. Quase toda a riqueza do país é apropriada pelos mais brancos, seja do agronegócio, do setor financeiro, nos conglomerados de comunicação ou de qualquer outro ramo empresarial. O estudo nos expõe dados que refutam qualquer tentativa de abordagem da discriminação racial como uma questão moral, que possa ser resolvida no plano das relações individuais. É de causar espanto, ou pelo menos deveria, que nos 10% da população com maior rendimento per capita, os brancos representem 70,6%, enquanto os autodeclarados pretos e pardos sejam apenas 27,7%. E há o mais seleto reino da brancura com 69 multibilionários brasileiros, onde nenhum negro/negra habita. O inverso ocorre entre os mais pobres. Nestes, entre os 10% mais empobrecidos, 75,2% são pretos e pardos (negros), e apenas 23,7%, são brancos. Este cenário, por si só, expõe um racismo sistêmico, permanentemente atualizado na dinâmica de exploração capitalista, que faz do contingente negro o maior exército de reserva que se tem notícia. O racismo produz um quadro trágico de negação de aviltamento de direitos, precarização financeira, desterramento, massacres naturalizados e uma legião de deserdados que nada têm a perder, a não ser suas algemas, como disse Marx aos trabalhadores. Não é ao acaso. É projeto.

A luta antirracista é uma crítica contundente ao racismo estrutural, e vem obtendo avanços, embora muito aquém da necessidade. A conquista do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010), da Lei de cotas para negros e indígenas nas universidades ( Lei 12.711/2012; Lei 14.723/2023), nos concursos públicos (Lei12.990/14) e, a mais recente, política de incentivo à eleição de candidaturas negras, que contabiliza em dobro os votos dados a candidatos negros e a mulheres, na distribuição dos recursos do Fundo Eleitoral, são algumas políticas públicas concretas de cunho antirracista que, se fossem aplicadas plenamente poderiam reduzir distâncias entre negros e não negros, no longo caminho rumo à igualdade. Mas o contexto das políticas de austeridade imposta pelos guardiões do capitalismo drena bilhões de recursos públicos para os banqueiros e demais ilhados no seleto mundo de riqueza e opulência da grande burguesia, em detrimento do bem comum, da maioria do povo que vive chafurdando no brejo da pobreza, num permanente tempo de vacas magras. 

Para um país que reconhece e proclama a miscigenação e a sua diversidade étnica, a fotografia dos cargos de comando é um vexame, demonstrando o quanto temos que lutar por efetivas oportunidades de acesso substancial para negras, negros e indígenas a cargos de comando. No Brasil, os cargos gerenciais em empresas são, predominantemente, ocupados por brancos, um domínio que chega a 68,6%. Na área pública as distorções também são gritantes! O poder judiciário é 80,3% (dados do CNJ) composto de pessoas brancas. Só houve um negro na história do STF, e atualmente, não há nenhum. Na política, uma banca de heteroidentificação instituída pelo portal UOL para checar se as cotas foram ou não respeitadas pelos partidos na disputa eleitoral, de 2022, concluiu que, dos 32% dos deputados estaduais, federais e senadores eleitos somados, que se autodeclararam negros, apenas 16,4% desse total de fato eram fenotipicamente pretos e pardos, o resto eram falsas declarações, a exemplo de Arthur Lira, presidente da Câmara Federal. Como ele, dezenas de parlamentares socializados como brancos, que jamais experimentaram o racismo em suas trajetórias, se autodeclararam pardos com o único propósito de abocanhar uma fatia mais robusta do Fundo Eleitoral.

Decididamente as políticas de promoção da igualdade racial precisam ser projeto de Estado, implantadas e rigorosamente fiscalizadas, associadas a uma política de reeducação e conscientização sobre o propósito civilizatório de corrigirmos as desigualdades produzidas pelo racismo. E, mais que isso, para nos libertarmos desta sociedade construída pela lógica racista e capitalista, é preciso ter um projeto que vá muito além da reivindicação de políticas públicas. A luta antirracista é indissociável da luta de classes, portanto requer a construção de um projeto socialista, moderno, atualizado, criativo, que seja verdadeiramente capaz de ir ao encontro das necessidades estruturais do povo brasileiro, incorporando o melhor da nossa brasilidade e eliminando o que secularmente nos divide e nos impede de termos uma vivência nacional radicalmente democrática e avançada. O ano de 2025 será o ano da segunda Década Internacional de Afrodescendentes, proclamada pela ONU, que seguirá até 2034, e, entre seus objetivos, preconiza: promover os direitos humanos e liberdades fundamentais dos afrodescendentes; combater o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e outras formas de intolerância; adotar e reforçar os quadros jurídicos nacionais e regionais no combate ao racismo. O tema desta década será “ Pessoas Afrodescendentes: Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento”. O Brasil, sob a liderança do nosso presidente Lula, deve assumir posição de liderança global, fazendo valer uma agenda nacional de promoção da igualdade, em todas as áreas do seu governo. É como disse o poeta, quem sabe faz a hora não espera acontecer.

Olívia Santana é deputada estadual da Bahia (PCdoB).

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG.