Carlos Danielli: da vida de resistência ao assassinato no DOI-Codi
Jornalista e dirigente do PCdoB, morreu sob tortura, pessoalmente comandada por Brilhante Ustra, em 31 de dezembro de 1972. Ao lado de João Amazonas e Maurício Grabois, teve papel essencial na reorganização do partido e na guerrilha do Araguaia.
A divulgação do caso da correção da Certidão de Óbito de Carlos Nicolau Danielli no Jornal Nacional, da TV Globo, em 7 de janeiro, como exemplo de outros mortos pela ditadura militar, informando corretamente que foram vítimas da violência cometida pelo Estado, traz à memória um dos crimes políticos mais tenebrosos da história do Brasil.
Natural de Niterói, Rio de Janeiro, Danielli, secretário de Organização do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), havia se mudado para São Paulo no processo de preparação da Guerrilha do Guerrilha.
Ele era um dos responsáveis pelo encaminhamento dos militantes do Partido mais visados pela ditadura para a Sul do Pará, onde estavam os também dirigentes do PCdoB João Amazonas e Maurício Grabois, que se revezavam em viagens para São Paulo. Danielli era também responsável pela redação, impressão e distribuição do jornal do Partido, A Classe Operária, operação que se dava com os militantes comunistas Maria Amélia de Almeida Teles (Amelinha) e César Augusto Teles.
Além da preparação da guerra popular como caminho da luta armada contra a ditadura, Danielli era peça-chave no processo de incorporação da Ação Popular (AP) ao PCdoB. Ele e o também integrante do Comitê Central, Pedro Pomar, estabeleceram os primeiros contatos com a direção da AP para tratar da incorporação. Na evolução do processo, a AP se se transformou na Ação Popular Marxista-Leninista (APML). Um de seus principais dirigentes, Duarte Pacheco Pereira, passou a ser o interlocutor da organização com Danielli.
O prosseguimento dos entendimentos se deu com a intensificação da repressão. A ditadura apertava o cerco sobre a resistência e o PCdoB aumentou o envio de militantes para o Araguaia, local distante dos grandes centros. Danielli era peça-chave também nessa operação. Com o ataque da ditadura no Araguaia, iniciado em 12 de abril de 1972, a Guerrilha ficou isolada da Comissão de Organização, sem comunicação e com suprimentos reduzidos. Grabois conseguiu enviar correspondência para Danielli pela guerrilheira Criméia Alice Schmidt de Almeida, irmã de Amelinha, que precisou deixar a região por estar grávida, numa operação de alto risco. O PCdoB estava sob severa vigilância em todo o país.
A vida e a militância de Danielli
Danielli, apesar de relativamente jovem – estava com quarenta e três anos de idade –, era um dirigente experiente. Estava no Partido desde a adolescência, influenciado por seu pai, Paschoal, que foi dirigente comunista no Rio de Janeiro, liderança sindical de destaque e deputado estadual constituinte eleito em 1947.Danielli se integrou à União da Juventude Comunista (UJC), participou da delegação que fez um curso intensivo de marxismo-leninismo na URSS em 1952/53 e, no IV Congresso do Partido, em 1954, foi eleito membro do Comitê Central, aos vinte e cinco anos de idade.
No surto revisionista que se instalou no movimento comunista a partir do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), no começo de 1956, ele e Amazonas foram os primeiros a se manifestarem em defesa do Partido. Danielli também foi ver de perto a experiência da Revolução Cubana, vitoriosa em 1º de janeiro de 1959, o caminho da luta armada que conduziu os guerrilheiros liderados por Fidel Castro da Sierra Maestra a Havana. Ele voltaria a Cuba, desta vez acompanhado de Ângelo Arroyo, mas não consta que deixaram algum registro escrito do que viram – ao contrário de Pomar, que fez um relato minucioso de sua estada de duas semanas e meia em Cuba, em uma série de artigos no jornal comunista Novos Rumos.
Danielli, considerado próximo de Grabois, se destacou também no debate do V Congresso do Partido, em 1960, que evoluiria para a sua reorganização, em 1962, após a criação, pelos revisionistas, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1961. Jacob Gorender, um dos ideólogos do novo PCB, escreveu na Tribuna de Debates do V Congresso: “Seria injusto falar do discípulo (Danielli) e silenciar sobre o mestre. Chegamos, pois, ao camarada Maurício Grabois.”
Ele havia se profissionalizado jornalista e foi um dos organizadores do Congresso Nacional dos Jornalistas, realizado em setembro de 1961, na cidade de Nova Friburgo. Com sua posição firme contra o revisionismo, seria um dos “expulsos” do novo PCB, ao qual nunca pertenceu, no processo de reorganização do Partido. Uma nota no jornal Novos Rumos, em janeiro de 1962, informou que ele foi “expulso das fileiras do movimento comunista por exercer atividades fracionistas”. Antes, havia sido enviado para o estado do Espírito Santos, afastado pela direção revisionista, onde trabalhou como jornalista no jornal local do Partido.
Depois do golpe militar de 1964, Grabois, Amazonas e Danielli providenciaram a mudança de suas famílias para a cidade de São Paulo. Danielli montou um “aparelho” de imprensa na capital paulista – inicialmente na Rua Lisete, Jardim Miriam, zona Sul, e, posteriormente, na Rua Maria Bittencourt Petit, Cidade Ademar, também na zona Sul – para a impressão d’A Classe Operária, trabalho que conciliava com a direção da Comissão de Organização, da qual também faziam parte, pela Comissão Executiva do Partido, Dynéas Aguiar e Pomar, em São Paulo, e Lincoln Oest e Luiz Guilhardini, no Rio de Janeiro.
Caminho da luta armada
A direção do PCdoB chegou à conclusão de que para discutir profundamente a forma de enfrentar a ditadura militar seria necessário convocar uma Conferência – a VI, realizada em julho de 1966 em São Paulo. Foram discutidas a situação política e a atividade partidária, modificações estatutárias e a recomposição do Comitê Central.
Além das questões organizativas – principalmente a segurança –, a Conferência debateu e aprovou a linha política, contida no documento União dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neocolonialista. “Perigo sem precedente paira sobre o Brasil, sujeito a viver longo tempo sob o regime ditatorial, a ter seu desenvolvimento interrompido e a perder suas características de nação independente”, diz o documento. “Em tal circunstância, nenhum problema pode sobrepor-se ao objetivo de salvar o país desse perigo.”
O PCdoB apontou a guerrilha como uma das principais formas de luta contra a ditadura. “A ideia de que é indispensável empunhar armas para libertar o país do atraso e da opressão vem ganhando força”, diz o documento. “A luta revolucionária em nosso país assumirá a forma de guerra popular”, definiu a Conferência. “As forças armadas populares, inicialmente débeis, crescem e tornam-se fortes e superiores às do adversário. (…) Sendo parte integrante do povo, têm nele a fonte de sua invencibilidade.”
A ideia contida no documento era de realizar um intenso trabalho político e de organização popular, criando pequenos núcleos de combatentes, “no amplo emprego da tática de guerrilha e na criação de bases de apoio no campo”. “Em toda parte, em especial no campo, é preciso discutir os problemas da luta armada e, guardadas as normas de trabalho conspirativo, tomar medidas visando à sua preparação prática”, diz o texto.
O PCdoB saiu a campo para verificar os melhores lugares para começar a implantação da guerra popular. Foram criados três grupos de trabalho – um dirigido por Grabois e Amazonas, outro por Pomar e um terceiro por Danielli. O grupo de Pomar se fixaria na região do Vale do Ribeira, em São Paulo. Danielli e seus companheiros foram para o Oeste da Bahia e visitaram alguns pontos no Ceará, Piauí e Maranhão. Grabois e Amazonas foram para a região do Araguaia.
Prisão, tortura e morte
Danielli foi preso, em 28 de dezembro de 1972. A emboscada da repressão começou no estado do Espírito Santo, com a prisão de um dirigente local do PCdoB, e terminou na Rua Loefgreen, zona Sul de São Paulo, onde ele, com a correspondência enviada por Grabois, teria um encontro com Lincoln Oest para informá-lo sobre a situação no Araguaia.
Lincoln havia sido detido e assassinado no Rio de Janeiro no dia 20 de dezembro de 1972. Foi o primeiro a cair. O contato do preso no Espírito Santos com a direção era por meio de Lincoln. Sob brutais torturas, ele entregou o “ponto” no Rio de Janeiro. A cilada havia produzido o primeiro grande resultado. Lincoln pagou com a vida a decisão de nada revelar, mas o mesmo não ocorreu com o motorista encarregado de conduzi-lo ao “ponto”. Sob torturas, ele revelou o encontro previamente marcado com Danielli e foi levado para a capital paulista como isca.
Quando Danielli chegou ao local, não avistou Lincoln, mas, atraído pela isca, resolveu se aproximar. Deu de cara com armas sobre a sua cabeça. Os agentes da repressão comunicaram a seus superiores, por rádio, que estavam com um “peixe graúdo”. Danielli seria encaminhado ao inferno, como diziam os torturadores às suas vítimas, às vezes identificando-se como Lúcifer.
Arrastado pelo pátio cimentado, protegido da vista dos passantes pelo largo prédio de dois andares da 36ª Delegacia de Polícia, no número 921 da Rua Tutoia, no bairro do Paraíso, seria submetido à brutalidade dos bandos que atuavam no local. As instalações pertenciam ao Exército Brasileiro e abrigavam o DOI-Codi, o Destacamento de Operações e Informações do Centro de Operações de Defesa Interna, uma sofisticada máquina de torturar e matar que nasceu da Operação Bandeirantes (Oban), surgida em julho de 1969.
Sua certidão de nascimento é uma “Diretriz presidencial”, de setembro de 1970, assinada pelo ditador Emílio Garrastazu Médici, determinando que todos os comandos do Exército adotassem aquele sistema. Com essa medida, o regime oficializou e expandiu no país a experiência de unificar as ações repressivas da Oban. Em São Paulo, o DOI-Codi, comandado pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, atuava em conjunto com um bando de policiais civis sob a liderança do delegado do Departamento de Ordem Política e Social, Sérgio Paranhos Fleury, que também promovia uma monstruosa escalada criminosa.
Era a “Casa da vovó”, conforme definiam os torturadores, onde se sentiam à vontade para torturar e matar. Já no início do “interrogatório”, Danielli afirmou: “É disso que vocês querem saber (a Guerrilha do Araguaia)? Pois é comigo mesmo. Só que eu não vou dizer. Só faço o meu testamento político.” Morreu, torturado pessoalmente por Ustra, em 31 de dezembro de 1972.
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No começo de 1973, Luís Guilhardini também foi preso, torturado e assassinado no Rio de Janeiro. Em março do mesmo ano, Lincoln Bicalho Roque, jovem membro do Comitê Central do Partido e principal dirigente da União da Juventude Patriótica (UJP) – organização importante no envio de jovens visados pela ditadura para o Araguaia –, seria igualmente assassinado na capital carioca.
Incorporação da APML
As mortes dos dirigentes do PCdoB mudaram o rumo da APML. Em nota, sua direção chamou os assassinatos de covardes, um ato que causava indignação e repulsa. O governo do ditador Médici, segundo o documento, desenvolvera a um nível sem precedentes na história da pátria o terrorismo contra o povo e os sacrifícios da soberania nacional.
Ao mesmo tempo, disse a APML, uma frente antifascista começava a se levantar, como demonstrava a resistência no Araguaia, tocando fundo o coração do povo, renovando-lhe as esperanças e apontando-lhe o caminho da libertação. A ditadura sentia que o futuro não lhe sorria e apavorava-se, dizia a nota. “Compreendendo que o Partido da classe operária era o seu mais tenaz e consequente opositor, os generais fascistas concentravam sua linha de fogo contra o PCdoB”, afirmou.
De acordo com a APML, os frios assassinatos de Carlos Danielli, Lincoln Oest, Luís Guilhardini e Lincoln Bicalho Roque faziam parte do plano sinistro do regime terrorista de privar o povo brasileiro da sua vanguarda lúcida e experimentada. Quando a ira dos generais fascistas se voltava contra o PCdoB, prosseguiu a nota, a APML apresentava ao Partido o apoio combatente, completo e irrestrito.
A nota apresentou sentida solidariedade pela perda “dos bravos combatentes tombados na luta”. “Conhecíamos bem a Carlos Danielli, que conosco se relacionou em termos partidários. Fez-se um grande amigo da Ação Popular e muito nos ajudaram seus conselhos. Também conhecíamos a Luís Guilhardini que, da mesma forma, se tornara nosso amigo e nos ajudara. Rendemos especial homenagem a estes dois saudosos camaradas.”
A APML manifestou a confiança de que “o experimentado Comitê Central do PCdoB” saberia retemperar-se “e continuar a trajetória luminosa de seus cinquenta anos de luta”. “Se a barbárie intimida os covardes, enche de mais resolução os autênticos revolucionários. A sanha terrorista desencadeada pela ditadura Médici contra o PC do Brasil e o sangue derramado por quatro de seus destacados dirigentes tornam mais imbatível a nossa firme convicção de que a todos os marxistas-leninistas do Brasil cabe buscar fortalecer, prontamente, o PC do Brasil. Conduzir a Ação Popular a este objetivo tornou-se, para nós, mais justo e urgente”, finalizou o documento.
Aqueles crimes da ditadura aceleraram os entendimentos sobre a incorporação ao PCdoB. Na compreensão da maioria, não fazia mais sentido realizar o Congresso para resolver pendências superadas pela urgência de reforço à resistência à ditadura. Em 17 de maio de 1973, o Birô Político do Comitê Central da APML divulgou sua última circular, com o título Incorporemo-nos ao PC do Brasil.
Osvaldo Bertolino é jornalista, escritor e historiador, escreveu a biografia Testamento de luta – a vida de Carlos Danielli
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.