“NÓS E ELES”, UMA CHAVE ANALÍTICA MISTIFICADORA – Tornou-se frequente, entre analistas políticos, certos círculos acadêmicos, partidos políticos conservadores e de direita, lamentar que as forças progressistas e de esquerda tenham introduzido na cena política, de uns anos para cá, a divisão da sociedade brasileira em dois campos: O “nós e eles”, onde cada campo manteria um conjunto de posições políticas, ideológicas e mesmo culturais, que dividem a nação e não nos permitem encontrar um ponto de equilíbrio na gestão do Estado que reflita o pensamento da maioria da sociedade. Ponto de equilíbrio esse, que significa, a conciliação e convivência harmoniosa entre os vários grupos de interesses que existem na sociedade, e que é uma característica “profunda” da alma brasileira. Tal avaliação procura esconder a existência de contradições políticas, econômicas e sociais, objetivamente antagônicas, entre os vários grupos sociais que existem no país.
Essa polarização da sociedade, entre o “nós e eles”, seria o responsável pelos impasses políticos e econômicos que não nos permitem fazer avançar o país no rumo de um futuro glorioso. Ou seja, necessitamos de um governo, de uma gestão do Estado, de uma condução da política econômica, da condução de uma política cultural, da condução de uma política de segurança pública etc. que tenham como fio orientador um velho aforisma romano: virtus in medium est.
De acordo com esses analistas, necessitamos de um centro político que elimine os extremos hoje predominantes na cena política, que são a disputa entre os lulistas e bolsonaristas. O que significa na prática, por exemplo, conceder anistia aos golpistas do 8 de janeiro de 2023, ter em 2026 um candidato à Presidência que fuja à polarização Lula x Bolsonaro, e por aí vai.
Acontece que essa divisão entre o “nós e eles”, antes de ser uma “invenção da esquerda” para realizar a sua luta política e aglutinar seus seguidores, é um fenômeno objetivo que ocorre em todas as sociedades divididas em classes, desde tempos imemoriais, e que, sob a hegemonia do modo de produção capitalista sob o qual vivemos há mais de trezentos anos, apresenta-se com uma nitidez que impede as classes dominantes de ocultarem seu sistema de exploração sobre as classes trabalhadoras com mistificações ideológicas dos mais variados tipos.
Diante desse quadro, de polarização objetiva da luta política, os teóricos, analistas e demais políticos conservadores e de direita argumentam que isso os forçaria a terem uma atitude de reação à ação dos “esquerdistas”, o que levaria à divisão da sociedade brasileira entre polos antagônicos.
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Porém essa polarização e disputa política, entre os conservadores e os progressistas, de todos os matizes, não são fruto exclusivo, e muito menos essencial, da ação política das forças partidárias e sociais que disputam o poder de Estado com o fito de implementar seus programas político-econômicos-sociais. Essa dicotomia é o modo simplificado, e mesmo reducionista, com que a crônica política das classes dominantes do país procura ocultar a profunda divisão de classes em nossa sociedade e o acirramento da luta entre essas classes – principalmente entre as detentoras dos meios de produzir riqueza, seja industrial, seja financeira – e o outro polo da sociedade, que é composto por aqueles setores sociais que produzem essa riqueza, ou seja os operários urbanos e rurais, os trabalhadores do setor de serviços, as camadas médias do funcionalismo público e dos pequenos trabalhadores individuais e terceirizados.
Esse acirramento da luta de classes tem como base essencial o aumento da exploração capitalista, sobre as massas trabalhadoras, que, na atual fase de financeirização da economia, tem elevado essa exploração a níveis excepcionais, e que se manifesta de variadas formas e tem reflexos em vários níveis da atuação do exercício da política e do poder político, em nosso país, e não só nele.
Um aspecto que merece destaque é que, nesses tempos de predominância do capital financeiro, este exige que, para atingir seu pleno desenvolvimento, exista uma plena liberdade de circulação dos capitais, para a qual se faz necessário que, nos países periféricos do sistema, sejam eliminadas políticas macroeconômicas que procurem resguardar a soberania econômica desses países, e que suas políticas econômicas sejam de natureza livre cambista. Ou seja, sem que haja proteção aos interesses nacionais. E isso entre nós fica explícito, na atualidade, com a política macroeconômica do arcabouço fiscal, da liberdade cambial, e com destaque para a autonomia do Banco Central.
Existe também na base da polarização política atual em nosso país, além de fatores econômicos, uma importante componente política: a emergência ativa dos setores conservadores e de direita da sociedade. Setores esses que, desde o fim da ditadura militar em 1985, atuaram em estado de latência, mas, desde o ciclo dos governos Lula e Dilma, rearticularam-se com o objetivo de interromper um tênue programa de: redistribuição de renda; afirmação soberana do país no mundo; uma busca de restabelecimento da verdade histórica sobre as arbitrariedades perpetradas pelos militares durante a longa ditadura de 1964-1985; constituição de uma base industrial na qual, com forte apoio estatal, um capital nacional, mesmo associado a setores do capital estrangeiro, pudesse se firmar e alavancar um processo de desenvolvimento econômico que nos permitisse ser uma nação plenamente desenvolvida; apoio e estímulo estatal, ao fortalecimento de setores de pequenas e médias empresas, com destaque para a constituição de um forte setor de agricultura familiar que beneficiasse camponeses empobrecidos e sem perspectivas de crescimento. De criação de mecanismo de participação popular no governo, como as Conferências Nacionais, de caráter consultivo, dos vários setores da sociedade, como saúde, educação, esporte etc.
E a emergência dessa direita latente a que nos referimos acima atingiu seu ápice na luta desencadeada a partir de 2013, contra o governo Dilma, que levou ao seu impeachment em 2016, e trouxe à plena luz do sol da atividade política, no seio dessa direita conservadora tradicional, um setor de extrema-direita, com forte presença entre os militares, e de cunho protofascista, que chegou ao governo central da República com o governo Bolsonaro, e, apesar, de derrotada pela coalizão de amplas forças democráticas, progressistas e de esquerda e mesmo setores conservadores nas eleições presidenciais de 2022, que elegeram Lula presidente, continua presente na cena política jogando forte papel.
Um outro aspecto que merece análise é que essa atuação da direita e da extrema-direita é um fenômeno de raízes mais profundas, que se espraiam por várias outras partes do mundo. Conquistaram a chefia de governos de países considerados tradicionalmente civilizados, como Itália, Hungria, Polônia, Ucrânia, Argentina e, com a eleição, e, em breve, com a posse de Trump, como presidente dos EUA adquirem mais força. Além de terem forte desempenho eleitoral em países como França, Alemanha, Portugal e Espanha. Configura-se, dessa maneira, a existência de um campo conservador e reacionário, em escala mundial, que não pode ser ignorado.
Esse fenômeno, o fortalecimento da direita no mundo, é também, a meu juízo, uma manifestação do acirramento da luta de classes no cenário internacional, que tem o potencial de ampliar guerras em curso como: a entre a Rússia e a Ucrânia; a que se desenvolve no levante, Faixa de Gaza, Líbano e Síria, onde Israel, com irrestrito apoio dos EUA e da OTAN, desenvolve um verdadeiro genocídio contra o povo palestino.
Como contrapartida, nesse cenário de avanço anticivilizacional, no campo capitalista, liderado pelos EUA e a OTAN, surgem resistências.
Essa resistência ao avanço da direita e da extrema-direita, em escala mundial, desenvolve-se de forma multilateral e complexa, pois a perda, por parte dos EUA, do controle hegemônico do poder mundial e o surgimento de novos centros de poder – que estão a caracterizar uma transição de uma ordem mundial unipolar, com os EUA à frente, para uma ordem mundial multipolar – ensejam um acirramento das disputas geopolíticas que tornam a situação internacional, do ponto de vista político, econômico, e mesmo militar, muito instável.
Nesse cenário, merece destaque, entre outros, o papel que vem jogando a República Popular da China – que constrói uma experiência de condução e construção de um Estado de novo tipo, classificada como a construção do socialismo com características chinesas – como uma potência econômica, política e militar, que objetivamente é um polo aglutinador dessa resistência.
E, voltando à cena nacional, a existência em nossa sociedade atual de uma disputa política – entre um campo progressista, onde se situam as forças democráticas e de esquerda, e um campo de forças conservadoras e reacionárias, constituído pela direita tradicional e pela extrema-direita –, é o que caracteriza a luta entre o “nós e eles”. Materializada na disputa entre bolsonaristas & lulistas. A isso considero um ponto positivo na atual evolução política de nossa sociedade.
Mas essa situação é prenhe de desafios para o campo progressista e de esquerda, pois as forças reacionárias de direita e extrema-direita, tanto em nosso país como em escala mundial, vivem um período de ascenso, enquanto o nosso campo passa por um longo período de defensiva estratégica, e mesmo tática – entre nós mitigado pela existência do governo Lula – que exige para a sua superação um abnegado, longo e continuado trabalho de: atualização de aspectos de nossa base teórica; formulação programática que comtemple os desafios de construirmos um Brasil soberano, independente, desenvolvido e socialmente mais justo; ação política condizente com os tempos atuais, onde estão em curso profundas mudanças nas forças produtivas da sociedade que impactam fortemente na consciência e vontade política de amplas massas do povo; e fortalecimento da ação organizada do campo progressista, em Partidos Políticos capazes de serem porta vozes desses setores progressistas, dentre os quais destaco o Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
Ronald Freitas é membro do Comitê Central do PCdoB e membro do Grupo de Pesquisa sobre Estado e Instituições da FMG.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.