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    Socialismo

    Entenda o que realmente Marx pensa sobre religião

    A religião é o ópio do povo? Frase raramente é contextualizada como foi escrita pelo pensador. Neste artigo, Carlos Lopes explora a relação histórica entre marxismo e cristianismo.

    Marxismo e cristianismo – Não há frase de Marx mais citada por todos os canalhas e fariseus, desde que a introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel foi publicada, em fevereiro de 1844, nos Anais Franco-Alemães, do que “a religião é o ópio do povo”.

    Naturalmente, nunca, ou quase nunca, é referido o contexto em que isso foi escrito – muito menos é reproduzida a citação literal:

    A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo”.

    E, logo, no parágrafo seguinte:

    A verdadeira felicidade do povo implica que a religião seja suprimida, enquanto felicidade ilusória do povo. A exigência de abandonar as ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões. Por conseguinte, a crítica da religião é o germe da crítica do vale de lágrimas que a religião envolve numa auréola de santidade”.

    Marx não está, evidentemente, falando de toda e qualquer religião, em toda e qualquer situação histórica, mas daquela que era (e ainda é) predominante em sua época: o mundo das ilusões, a transformação conformista de um vale de lágrimas numa santificada, falsa – e ofuscante – clareza solar.

    Leia também: Religião e política no Brasil e hoje, Mayra Goulart e Paulo Gracino

    Engels e os paralelos com o cristianismo primitivo

    Por isso, quando, em 1895, Friedrich Engels, escrevendo na Neue Zeit, aproximou, histórica e teoricamente, o movimento socialista – isto é, o comunismo – do cristianismo primitivo, não estava, em absoluto, em contradição com o seu velho (e, na época, já falecido) companheiro.

    Mas é característico do admirável rigor de Engels que ele não tenha feito essa aproximação em relação ao cristianismo em geral, mas ao cristianismo primitivo.

    Pois o que se chamava de cristianismo em 1895 era o catolicismo do Syllabus Errorum, decretado pelo papa Pio IX (o cardeal italiano Giovanni Maria Mastai-Ferretti) em 1864, provavelmente o alfarrábio mais reacionário já emitido por uma autoridade da Igreja (no Brasil, Rui Barbosa se opôs a essa onda ultramontana, principalmente através da edição e tradução de “O Papa e o Concílio”, do alemão Janus).

    Mas qual a proximidade que Engels via entre o comunismo e o cristianismo primitivo, em seu ensaio de 1895?

    Escrevia ele:

    “… o cristianismo era, na origem, o movimento dos oprimidos: apareceu primeiro como a religião dos escravos e dos libertos, dos pobres e dos homens privados de direitos, dos povos subjugados ou dispersos por Roma. Os dois, o cristianismo como o socialismo operário, pregam uma libertação próxima da servidão e da miséria” (cf. Engels, Contribuição para a história do cristianismo primitivo).

    Mas havia, também, uma decisiva diferença: “… o cristianismo transpõe essa libertação para o Além, numa vida depois da morte, no céu; o socialismo coloca-a no mundo, numa transformação da sociedade” (idem).

    Apesar disso, “os dois são perseguidos e encurralados, os seus aderentes são proscritos e submetidos a leis de exceção, uns como inimigos do gênero humano, os outros como inimigos do governo, da religião, da família, da ordem social. E, apesar de todas as perseguições, e mesmo diretamente servidos por elas, um e outro abrem caminho vitoriosamente. Três séculos depois do seu nascimento, o cristianismo é reconhecido como a religião do Estado e do Império romano: em menos de sessenta anos, o socialismo conquistou uma posição tal que o seu triunfo definitivo está absolutamente assegurado” (idem).

    Como observa Engels, o único socialismo possível, na época da decadência do Império Romano, era “no Além, no céu, na vida eterna depois da morte”. E até mesmo muitos séculos depois, na Idade Média, os levantes camponeses não dispensavam uma vestimenta religiosa. São, na expressão de Engels, “restaurações do cristianismo primitivo”, diante da degenerescência (e reacionarismo, acrescentamos nós) da religião católica oficial.

    Essa ligação com o cristianismo primitivo, aliás, reaparece no movimento comunista pré-marxista, de 1830 em diante.

    Até mesmo nas debilidades, Engels vê proximidades entre o comunismo e o cristianismo primitivo. Por exemplo, na ingenuidade com que certos charlatães eram recebidos pelos cristãos e pelos comunistas.

    Não nos deteremos nessa questão, demasiado embaraçosa para nós, embora, devido à sua peculiaridade e ao seu pitoresco, seja interessante observar, como diz Engels, que “em todos os países aflui para o partido operário toda a gente que já nada tem a esperar do mundo oficial, ou que nele se queimou — tal como os adversários da vacinação, os vegetarianos, os antivivisseccionistas, os partidários da medicina dos simples, os pregadores das congregações dissidentes a quem as ovelhas fugiram, os autores de novas teorias acerca da origem do mundo, os inventores falhados ou infelizes, as vítimas de reais ou imaginárias irregularidades a quem a burocracia chama ‘refilões inúteis’, os honestos imbecis e os desonestos impostores”. Segundo ele, “o mesmo acontecia com o cristianismo”.

    É verdade que isso poderia ser exato no fim – ou no meio – do século XIX. Hoje, que a decadência da “sociedade oficial” (isto é, capitalista) chegou a um ponto extremo, essa escória intelectual e social é mais atraída pelo fascismo do que pelo comunismo.

    Mas isso se deve, exatamente, a que essa tralha, tanto na época do cristianismo primitivo quanto na época do comunismo primitivo, “não passavam de moscas efêmeras”.

    Tudo isso, no entanto, é teórico – no máximo, tem caráter histórico, mas não concreto nem atual. Refere-se ao passado, não ao presente. Ou seja, não se refere a uma sociedade socialista atual e concreta.

    Entretanto, temos o testemunho ocular da proximidade entre o cristianismo e o socialismo real, concreto e atual.

    Economia soviética sob a ótica cristã

    Em 1939, o Reverendo Hewlett Johnson, nada menos que o Deão de Canterbury, maior autoridade da Igreja Anglicana, após uma viagem à União Soviética, publicou, na Inglaterra, The Socialist Sixth of the World, que teve uma edição norte-americana, dois anos depois, com o título The Soviet Power, da qual foi traduzida a edição brasileira, O Poder Soviético.

    Nela, dizia Hewlett Johnson:

    “… o comunismo em seu aspecto positivo não é fundamentalmente um inimigo da religião, pelo menos da religião cristã. Em última análise, a menos que eu esteja seriamente enganado, demonstrará ser um verdadeiro amigo em pelo menos um aspecto essencial. Ele fornece à sociedade uma nova base moral, e está em processo de alcançar no nível ‘deste mundo’ as mesmas cousas que nós, os cristãos, professamos frequentemente com nossos lábios, porém negamos em nossas vidas. Ele desferiu o golpe de morte à ordem imoral com a qual tacitamente aquiescemos” (v. Hewlett Johnson, O Poder Soviético, trad. de David J. de Castro, 2ª edição brasileira, Editorial Calvino, 1943, p. 407).

    É interessante como, sob essa ótica, Johnson via o nazismo, no poder na Alemanha desde 1933, naquela época:

    “… Herr Hitler era bastante esperto para perceber que o judaísmo e o cristianismo fornecem o melhor caminho para o socialismo e o comunismo: daí, segundo o seu ponto de vista, deverem ser destruídos; segundo o meu, deverem ser cordialmente recebidos” (idem, p. 41).

    Hoje, com os massacres sionistas na Palestina e no Oriente Médio em geral, é bastante difícil para nós considerarmos o judaísmo desse mesmo modo. Mas judaísmo não é um sinônimo de sionismo – além disso,  Johnson escreveu essas palavras no início da campanha antissemita dos nazistas.

    Mas, voltemos um pouco, até a citação inicial: como o Reverendo Hewlett Johnson via esse golpe de morte à ordem imoral? Ou, mais precisamente, o que é esse golpe de morte à ordem imoral?

    Depois de descrever extensamente as mazelas do capitalismo, ele, que fora empresário, trabalhador e engenheiro, antes de ser religioso, na Inglaterra, considera:

    “Felizmente há uma alternativa.

    “Os meios de produção podem pertencer à comunidade e serem utilizados não para satisfazerem à ambição privada, mas sim às necessidades públicas, sendo as necessidades dos consumidores o fator decisivo. A produção pode ser regida por meio dum plano unificado e o povo deve de resolver o que necessita produzir para satisfazer suas exigências. A nação poderia fazer o seu orçamento como o faz a competente dona de casa: calculando o que deveria gastar na despesa, na alimentação, no domicílio, na vestimenta, na educação, na manutenção da saúde, nas reservas e provisões para o futuro.

    “A inflação, a depressão e a desocupação desapareceriam. Todos os inventos seriam aproveitados e animados. Os artigos de primeira necessidade poderiam ser multiplicados e a educação desenvolvida. O descanso estimularia o trabalho criador. Todos viveriam uma vida civilizada.

    “Se a utilidade pública substituísse o lucro e a planificação ao capricho individual, a produção seria simultaneamente científica e moral, uma vez que teria como base o bem estar geral. Esta época sombria e trágica por serem os meios de produção propriedade privada, com todos os seus efeitos prejudiciais sobre a ciência e a indústria, com a sua luta imoral em busca do lucro, e com a sua inevitável consequência de riqueza e pobreza, de distinções de classe e de luta de classes, deve desaparecer. A ciência, a civilização e o cristianismo, juntamente, estão impondo essa reforma” (op. cit., p. 59).

    Esta é a base do “golpe mortal” à ordem imoral do mundo capitalista: a substituição da propriedade privada dos meios de produção pela propriedade da comunidade, da coletividade, pela propriedade pública, sobre esses mesmos meios de produção.

    A propriedade pública e a substituição da ganância privada pela necessidade pública como regente da economia são a base da moralidade cristã – e comunista.

    Assim, sob essa ótica, o religioso viu a economia e a vida soviética de antes da IIª Guerra Mundial:

    “Na União Soviética todas as fábricas, minas, estradas de ferro e companhias de navegação, bem como a terra e as organizações comerciais, constituem propriedade do povo em seu conjunto. A vida econômica e social do país é planificada de acordo com o interesse público. A mais completa igualdade torna os cidadãos capazes, independentemente de raças ou nacionalidades, de participarem no governo do Estado conforme as suas habilidades. A completa igualdade dos sexos é uma lei fundamental: ‘a trabalho igual igual salário’. Oportunidade de educação igual é fornecida universalmente. A idade de deixar a escola está para ser elevada a 17 anos e os estudantes universitários recebem subsídios. A todos é fornecido trabalho; não há desemprego; terminaram as crises econômicas; os preços baixam rapidamente e os salários sobem. A jornada máxima de trabalho é de oito horas, a média de menos de sete. Todos os trabalhadores têm férias pagas de, pelo menos, duas semanas por ano. Assistência médica gratuita é fornecida a todos; os trabalhadores recebem os salários quando doentes, tal como estivessem trabalhando. As mulheres recebem uma prolongada licença, com salário pago, antes e depois do parto. Nenhum cidadão lucra com a fabricação de armas” (op. cit., p. 93).

    Numa época em que, entre nós, há uma confusão infernal sobre assuntos monetários, vale a pena transcrever as observações de Hewlett Johnson sobre o rublo na época de Stalin:

    “O ouro é, pois, usado como moeda somente para compras no exterior. Não constitui a base da moeda dentro da União. A União Soviética dispõe de uma moeda controlada e independente dos câmbios do exterior. As flutuações no montante total da circulação monetária não influem de forma perceptível nos preços dos artigos de consumo ou dos serviços; os preços desses artigos são fixos, assim como o do gás, ou da água são fixos na Inglaterra, e não podem variar com as modificações da quantia em circulação. Tal como a quantidade de estampilhas e selos existentes não afeta as taxas postais ou o número de cartas enviadas, o total do dinheiro em circulação não influi nos preços das mercadorias” (op. cit., p. 209).

    O Deão de Canterbury estende-se sobre o aumento do padrão de vida, ocasionado pela baixa nos preços dos artigos de consumo, pelos aumentos dos salários e pelo aumento dos serviços sociais à população.

    Também descreve extensamente a planificação econômica e a democracia política soviética. Por fim, traça um perfil do líder soviético, que não conheceu pessoalmente – e, devemos ressaltar que o autor deste perfil é um religioso, com passado definidamente capitalista:

    Stalin não é um déspota oriental. Sua nova Constituição o demonstra. Sua presteza em abandonar o poder o mostra. Sua recusa de aumentar o poder que ele já possui o demonstra. Sua vontade em guiar seu povo pelos caminhos novos da democracia, com que esse povo não estava familiarizado, o prova. O caminho mais fácil teria sido o de aumentar seu próprio poder e desenvolver um domínio autocrático. Seu gênio é revelado nas sentenças curtas, simples, que adornam a Lei Básica da URSS, onde, numa linguagem clara, limpa, está fixada a carta dos novos direitos do homem na Sociedade Socialista. Eis aí um documento que se coloca entre os maiores documentos humanos pelo amor à humanidade e pela reverência e dignidade humana que revela. Ler esse esplêndido documento, compará-lo com seus predecessores, acompanhar o crescimento, a florescência e a frutificação do que se iniciou há anos atrás com uma planta jovem e muito tenra, proporciona novo encorajamento a todos os democratas de todos os países, incitando-os novamente à luta, contra qualquer oposição, frente, se necessário for, à mais brutal opressão, por essa nova e mais rica liberdade, que todos os grandes espíritos do mundo têm procurado e desejado” (Reverendo Hewlett Johnson, O Poder Soviético, trad. de David J. de Castro, 2ª edição brasileira, Editorial Calvino, 1943, p.p. 401-402).

    Carlos Lopes é redator-chefe do jornal Hora do Povo, vice-presidente nacional do PCdoB e membro do Grupo de Pesquisa sobre Problemas e desafios contemporâneos da teoria marxista.

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.

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