Até o fim de 2022, houve uma sistemática desmontagem das instituições e competências estatais. Pouco mais de seis anos bastaram para deixar um legado de desordem e desgoverno em domínios estratégicos à transição energética. A regulação dos combustíveis, de sua logística e qualidade, em razão da especificidade do objeto e importância para a descarbonização, é um “caso de escola”. Três políticas públicas distintas são revisadas: o Renovabio e o mercado de Cbios, o Programa de Monitoramento da Qualidade dos Combustíveis da ANP, PMQC, recentemente suspenso, e a quase privatização da Petrobrás, que alienou seus ativos de distribuição. Em resumo, o Renovabio encarece os combustíveis sem trazer resultado algum, o fim do PMQC compromete a qualidade e atenta ao direito do consumidor, enquanto a alienação dos ativos da estatal traz insegurança ao abastecimento nacional. Na matéria, ficará claro que não existe espaço para experimentação ou improvisação, que a ausência do Estado onera a sociedade e que sua ação deve ser sistêmica, para ser efetivamente estruturante.
O Renovabio é um ensaio de intervenção a partir de mecanismos de mercado e instrumentos financeiros duas décadas depois de Quioto, o primeiro acordo do tipo, assinado em 1997. O uso do mercado para descobrir o preço do carbono e negociar direitos a poluir foi adotado por diversos países. No Brasil, a Lei no 13.576 de 2017 criou o programa dentro da Política Nacional dos Biocombustíveis. Aprovada pelo Congresso em um mês, a Lei foi sancionada por M. Temer entre o Natal e Réveillon. A iniciativa pretendia reduzir as emissões dos gases de efeito estufa da matriz veicular em dez anos. A lógica parece simples: cada tonelada de CO2 evitada gera um certificado de descarbonização denominado Cbio. Contudo, mais de cinco depois do lançamento dos Cbios, no primeiro mercado de carbono do país, nada saiu como previsto quanto à volatilidade dos preços, ao encarecimento dos títulos e à ameaça especulativa. Até hoje, o lastro dos certificados não inspira confiança, assim como as metas do programa, submetidas a notável risco de integridade ambiental e regulatória.
Não faltam idiossincrasias na arquitetura do mercado: entre vendedores e compradores, a assimetria é total, uma vez que a oferta é eletiva e a demanda compulsória. A emissão dos certificados é direito do vendedor, que pode ou não ser exercido, enquanto os compradores são obrigados a adquiri-los e tirá-los de circulação. Não existe como evitar súbitas variações nos preços, nem teto, ou limite de validade. A atuação de capitais nos dois lados do balcão comporta óbvia ameaça de manipulação das cotações. Por fim, apesar da análise do ciclo de vida para a definição das metas, a obrigação recai somente sobre as distribuidoras, ignora produtores e refinadores, responsáveis por dois terços das emissões.
De fato, os Cbios são um instrumento de transferência forçada de renda entre produtores de biocombustíveis e distribuidoras, intermediado pela bolsa e, no qual, quem paga é o consumidor. Acrescente-se seu cunho parafiscal e que, ao Estado, que parece inteiramente capturado, a obrigação não gera custo algum. Não é o mesmo para sociedade, em especial, quando cotejado o sobrecusto aos resultados. Ao preço dos Cbios em 2023, são R$ 4 bilhões por ano e, se somados os custos de transação, R$ 200 milhões/ano, no próximo quinquênio, o Renovabio envolverá R$ 22 bilhões. Em indústria reconhecida por seus cartéis, além do impacto concentrador e inflacionário, os montantes envolvidos são expressivos e pouco se sabe o que financiam.
Igualmente de elevado custo social é a suspensão do PMQC, medida tomada em novembro de 2024. O fim do programa é um alerta sobre o eventual abuso do poder econômico e captura do regulador. Uma ameaça que paira faz tempo, desde as reformas neoliberais dos anos 1980. Por aqui, coube a Fernando Collor alienar os ativos petroquímicos, nos primeiros leilões que marcaram a privatização. FHC retomou o movimento, em novembro de 1995, quando promulgou a Emenda Constitucional no 9, que “quebrou” o monopólio da Petrobrás. Seguiu-se a Lei no 9.478, de 6 de agosto de 1997, que se constitui no marco legal do setor.
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A jusante da cadeia de valor do petróleo, o descaso do Estado é anterior à privatização. O Conselho Nacional do Petróleo, comandado por militares, definhou até ser substituído, em 1990, pelo Departamento Nacional de Combustível, que não teve melhor sorte. Assim, em 1998, quando da criação da ANP, perdera-se a memória do setor e nem cadastro de inadimplentes existia. O sistema cartorial vigente deu lugar ao vazio regulatório e ao fim do conluio formado pela Petrobrás, Ipiranga, Atlantic, Texaco, Shell e Esso. Na revenda, com a queda das barreiras ao ingresso no mercado, ocorreu a multiplicação dos postos de abastecimento. Sem controle e fiscalização, contudo, a competição descambou em guerra de preços e concorrência desenfreada. Diante da omissão do poder público, não é a eficiência, mas, o oportunismo que importa e todas as armas são validas: engenharia fiscal, descaminho, adulteração… O economista George Akerlof explicou que, assim desvirtuada, a competição gera uma “seleção adversa”: os melhores se abstêm e, no negócio, sobram apenas mercadorias “podres”. Vale a imagem da cesta de fruta: aquela estragada, irremediavelmente, contamina as demais.
A atração pelo ilícito explica-se pelos volumes envolvidos, pela rapidez no giro do estoque e pelo peso dos tributos no preço. O fluxo de caixa contínuo e elevado, a margem de lucro estreita, a facilidade na manipulação do produto e a dificuldade de detecção da não conformidade também proporcionam rápido retorno para condutas oportunistas. Se o risco da perda de credibilidade e da penalização por falhas for baixo, muito provavelmente, o vendedor não dará atenção à qualidade e buscará qualquer ocasião para obter ganho extra. A degradação da qualidade é o primeiro sinal adverso da competição desenfreada. Pressionado pela queda da margem e concorrência desleal, o empresário, que paga tributos e segue as regras, deixará o mercado.
Por trás da “desconstrução” do Estado existe uma concepção primária do mercado que expõe a sociedade a riscos extraordinários. Para o fisco, aumenta o risco de sonegação, já que um terço do preço é tributo. Para o consumidor, o que aumenta é a despesa na oficina mecânica. Em 1998, na cidade de São Paulo, em cada cinco amostras de gasolina, uma estava fora de especificação. Para a sociedade, as perdas decorrem da dificuldade em retornar à normalidade. Reordenar a concorrência e reocupar o espaço do regulador nunca é fácil. Em país de dimensão continental e entre os maiores mercados do mundo, isso exigiu toda uma década. Em 2000, no início do PMQC, entre as amostras, 15,5% se revelaram fora da especificação; ainda um em cada seis litros. Foi somente em 2009 que a qualidade atingiu padrões adequados, o percentual foi dividido por 10: apenas 1,5% das amostras não estavam conforme. A assimetria da informação, a falta de sinalização das condutas e o oportunismo, tão característico dos capitalistas, são problemas do regulador; ensina a teoria.
Na prática, dez anos foram precisos para restabelecer as condições para o funcionamento do mercado e o pleno direito do consumidor. Não se tratava de refazer a organização anterior, ou repetir fórmulas do exterior. Era preciso dar novo conteúdo à própria norma, criar arranjos institucionais originais, estabelecer novas parcerias e organizações, ter poder de atuação local a despeito da distância e apoio do que de melhor oferece a ciência e tecnologia. O saneamento ocorreu a partir do PMQC que, com novos meios e inteligência, aumentou a eficácia da atuação estatal. Para monitorar a qualidade e orientar a fiscalização de mais de 40.000 postos e centenas de distribuidoras, a ANP montou uma rede de laboratórios em universidades e institutos de pesquisa espalhados pelo País.
Além do serviço prestado, ganhou corpo o ensino e a pesquisa em domínio antes exclusivo às petroleiras. Sobre a formulação e análise dos combustíveis e lubrificantes, foram elaboradas dezenas de dissertações de mestrado e teses de doutorado, além de se criar uma infraestrutura de C&T aplicada. Singular, na administração pública, a construção de uma cultura profissional que extrapola a defesa econômica e proteção do consumidor; papel convencional do regulador. Após 2004, a introdução do biodiesel sem percalços, a franca recuperação do álcool, a redução do enxofre no Diesel e a recente expansão do álcool de milho reforçaram a qualidade, o perfil descarbonizado e o protagonismo nacional.
A suspensão do PMQC é sintoma do descaso já mencionado, da fragilidade do regulador e um atentado ao livre exercício do direito do consumidor. Sinaliza o recuo do Estado de uma função tipicamente pública, a vigilância. Acarreta uma perda de informação crítica sobre o desempenho do mercado, a qualidade do combustível. Por fim, repete a década de 1990, ao se omitir, o Estado abandona o mercado a seu próprio destino.
política de combustíveis é professor da Escola de Química da UFRJ, e autor de Capital Petróleo: A saga da indústria entre guerras, crises e ciclos e pesquisador do Grupo de Pesquisa da Fundação Maurício Grabois sobre Transformação ecológica e diversificação energética
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG