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    Economia

    Jabbour e Belluzzo: A China e o “Concilio de Maastrich”

    Modelo econômico chinês desafia os dogmas neoliberais ocidentais, rejeitando os princípios de Maastricht e o Consenso de Washington para impulsionar crescimento e inovação.

    Detalhe ampliado de uma nota de 100 Yuan chinês, com imagem de Mao Zedong.
    Detalhe ampliado de uma nota de 100 Yuan chinês, com imagem de Mao Zedong. David Dennis/Flickr/CC

    Artigo recente na The Economist (“A China terá capacidade fiscal para resgatar sua economia?”) tenta pela undécima vez chamar a atenção para os “problemas” do crescimento chinês. Na verdade, em retrospectiva histórica, para os donos da verdade da finança londrina são décadas de crescimento econômico eivado de equívocos e, ao melhor estilo shakespeariano, prestes a um trágico fim. 

    Agora os críticos apontam os crescentes déficits recentes do país – a violação do “Concílio de Maastrich”  e de suas cabalas fiscais adotadas em 1992. Citam o bom mocismo chinês em cumprir essas metas à risca até recentemente, omitindo as bases reais de cálculo diante do fato do país dobrar o tamanho do PIB a cada sete anos, o que coloca a elevação do PIB em patamar muito maior que qualquer déficit possível. 

    Existem mais coisas entre o céu e a terra do que a péssima filosofia liberal pode explicar. A primeira. Os liberais nunca vão conseguir entender as consequências do processo ocorrido na China de construção de sua potente economia monetária, e pública, de produção na segunda metade de 1990 e um sistema empresarial, também público, que transformou imensos conglomerados na outra face de um profundo processo de reformas. Somente a compreensão deste processo e suas causas e consequências institucionais já pode ser suficiente para jogar o livro de contabilidade da relação entre bancos e empresas fora. É o Estado, emprestando ao próprio Estado em moeda criada pelo Estado. Isso sem contar que, institucionalmente o que se chama de setor privado na China é uma concessão pública não um produto da lei dos cercamentos.

    Trem de metrô produzido com fibra de carbono começa a operar em Qingdao, China. Foto: Li Ziheng/Xinhua

    Trem de metrô produzido com fibra de carbono começa a operar em Qingdao, China. Foto: Li Ziheng/Xinhua

    O miúdo. A título de exemplo, não foi a obediência chinesa ao “Concílio de Maastrich” que entregou condições ao país de construir 45 mil quilômetros de trens de alta velocidade em apenas 20 anos e fazer com que Xangai saísse de nenhuma estação de metrô em 1996 e se tornasse o maior hub metroviário e ferroviário do mundo hoje. Na China existem 44 cidades operando grandes malhas metroviárias, sendo 40 delas com subsídios públicos que em alguns casos (Xangai e Wuhan, por exemplo) passam das quatro vezes a manutenção operacional. Como eles conseguiram? Aprenderam com os ingleses o papel central da dívida pública para a construção da riqueza das nações.

    O livro China versus West de Ivan Tselichtchev dá a dimensão da transformação ocorrida. Nos anos 1980 a economia chinesa detinha os mesmos 1% do Brasil de participação no comércio mundial, em 2010 sua participação saltou para 10,4%, contra 8,4% dos EUA, 8,3% da Alemanha. Durante a primeira década do novo milênio a taxa de crescimento média anual da economia chinesa foi de 10,5%, contra 1,7% dos EUA e 0,9% da Alemanha. Ao final da década, a China respondia por 42% da produção mundial de televisores a cores, 67% dos produtos de vídeo, 53% dos telefones móveis, 97% dos PCs, e 62% das câmeras digitais. 

    Continuando. 

    Sorry (parte 1), o choro ocidental não vai parar. Sugestivo o exemplo da alardeada “bomba fiscal” prestes a explodir encerrado no altíssimo nível de endividamento local. É difícil compreender que o endividamento local não é uma contradição do “modelo”, mas um atributo da dinâmica de desenvolvimento chinês e que, ciclicamente, o governo central absorve as dívidas dos entes locais, abrindo espaço para mais “dívida”. Dito e feito. No começo de novembro de 2024 foi anunciado um grande pacote fiscal de US$ 1,4 trilhão tanto para aplacar as dívidas locais quanto para recomprar a concessão de terras às incorporadoras atingidas pela crise imobiliária. O exemplo acima foi apenas um de outros 14 pacotes fiscais anunciados entre setembro de 2024 e dezembro de 2025. 

     As autoridades chinesas entendem que as novas instituições financeiras – fintechs e “bancos sombra” devem jogar guiadas pelo mesmo conjunto de regras que disciplinam os bancos comerciais e demais empresas financeiras tradicionais. Em seu relatório de 2021, o People’s Bank of China escreveu: “Grandes empresas de tecnologia já se tornaram importantes para o funcionamento do sistema financeiro, e serão reguladas da mesma forma.” Uma vez estabelecidos os princípios gerais, será promulgado a regulação mais detalhada das novas formas de atividade financeira. 

    “Provavelmente não vai demorar muito até que a gestão da riqueza on-line se torne sujeita a uma regulação mais abrangente, assim como, diga-se, toda a gestão da riqueza está sendo padronizada.” 

     Os sistemas monetários financeiros são cruciais para o funcionamento não apenas das economias capitalistas, mas também para o socialismo da China. Para o bem ou para o mal, são organismos de coordenação (planejamento?) dessas economias, irremediavelmente monetárias. Os sistemas monetários são centralizados. Sua natureza pública pretende oferecer terreno seguro para a multiplicação de agências e agentes incumbidos da emissão e gestão de ativos privados heterogêneos, heterogêneos, sim, em sua homogeneidade  monetária.

    A China é socialista? Confira vídeo de Elias Jabbour na TV Grabois 

    A convivência entre a dimensão privada e proprietária da riqueza monetária e a força centralizadora dos gestores da moeda – essa instituição social- é uma sucessão de encontros e desencontros entre “o mesmo e o seu outro”, inexoravelmente interdependentes. Quando a coisa anda às maravilhas, o universo da acumulação e precificação da riqueza monetário-financeira estimula a criativa multiplicação e diferenciação dos ativos. Quando o troço aperta, emerge a dura feição centralizadora.   

    A iniciativa privada sente-se resguardada contra os choques de incerteza e pode se empenhar na acumulação de capital, mediante investimentos em ativos tecnológicos, produtivos e comerciais. A “ampliação do papel do mercado e o reforço às empresas estatais” são um oximoro para inteligências binárias, cujos neurônios batem no tique taque do “Estado ou mercado”.  

    O projeto Made in China 2025 desobedece às batidas binárias. Está empenhado em assegurar políticas de apoio financeiro para impulsionar avanços tecnológicos em áreas estratégicas. Esse projeto estimula a associação entre os fundos de investimento públicos (Government Guidance Funds – GGFs) e fundos privados de venture capital e private equity.   

    Sorry (parte 2). Políticas monetárias e fiscais expansivas também se impõem diante da corrida chinesa pela autonomia nas chamadas infraestruturas dos semicondutores e na Inteligência Artificial. Se Biden e, agora, Trump, lançaram mão de trilhões de dólares para jogar à frente a fronteira tecnológica nestes setores, a China faz o mesmo. Ciência, tecnologia e inovação custam trilhões de dólares a fundo perdido. Somente entre 2025 e 2030 a previsão é de investimentos da ordem de US$ 1,4 trilhão na China somente em Inteligência Artificial. Bom lembrar que em 2023, o crescimento dos investimentos em energia limpa foi 40% maior que o verificado em 2022, alcançando US$ 890 bilhões. 

    Leia também: Trumpismo faz corrida pelo controle global

    Se, antes de Adam Smith, a fisiocracia não entregava instrumentos para entender o funcionamento de uma fábrica de alfinetes, não serão as superstições baseadas nos princípios do “equilibro geral” que vão explicar o novo que vem da China. O socialismo chinês é uma metamorfose ambulante onde instituições são criadas sem que as antigas sejam necessariamente destruídas. 

    O Aufhebung (Superação e Conservação)  hegeliano orienta, desde as reformas de Dengxiaoping, o projeto de desenvolvimento da China. É um processo permanente de articulação institucional que torna inaplicáveis as dicotomias entre Estado x privado e planejamento x mercado. Tais oposições não fazem sentido na China. 

    Tanto o mercado quanto o privado foram absorvidos sob a forma de novas formas históricas que elevam as capacidades dos planejadores chineses. Alocados tanto na Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma (NDRC) quanto na Comissão de Supervisão e Administração dos Ativos do Estado do Conselho de Estado (SASAC), os planejadores chineses escapam às limitações impostas pelos princípios  da economia convencional de mercado, assolada pelos supostos da racionalidade individual dos proprietários privados. 

    O desenvolvimento econômico chinês é um caso explícito de simbiose entre o Estado e a iniciativa privada. Combina o máximo de competição – a utilização do mercado como instrumento de desenvolvimento – e o máximo de controle. Os chineses controlam as instituições centrais da economia competitiva moderna. Os bancos públicos e as empresas públicas dirigem e facilitam o investimento produtivo e em infraestrutura. Essa flexibilidade institucional foi decisiva para o avanço da economia chinesa. 

    Auxiliados por inovações tecnológicas disruptivas como o Big Data e a Inteligência Artificial, a planificação na China atinge possibilidades que a inteligência humana ainda carece de acúmulo para explicar de forma precisa. 

    O avanço do Partido Comunista sobre as bigtechs nos impõe uma discussão séria sobre as relações entre as contabilidades social (macroeconomia) e a da firma (microeconomia). A fusão das duas contabilidades (e o fim da separação entre macro e microeconomia), exemplificada no fato de metade dos bilionários e milionários chineses terem saído do país nos últimos cinco anos (afinal nem tudo que é bom para o empresário, é bom para a sociedade) nos entrega explicação para a elevação das capacidades do Estado chinês em operar imensas transformações que vão além das picuinhas liberais. 

    Os chineses não acreditam na eficiência estática e, muito menos, na suposta dinâmica da mão-invisível. Em sua concepção, as verdadeiras leis do mercado se exprimem através das normas – muitas vezes  ignoradas nas análises liberais –  que regem efetivamente o fascinante jogo da competitividade global. Isso, diga-se, é motivo de escândalo para os intelectuais e políticos progressistas ocidentais. 

    O “modelo” chinês é a negação de Maastrich e a rejeição do Consenso de Washington. E está somente em sua infância.

    “O raciocínio chinês é circular e não linear; é informado pela lógica, mas também ativamente moldado pelo contexto e por um complexo sistema de relações sociais”. (Keyu Jin)

     

    *Texto publicado originalmente na Carta Capital em 23/01/2025.

     

    Elias Jabbour é presidente do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP) e professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).Foi consultor do Banco dos Brics (NDB). Vencedor do Special Book Award of China 2022.

    Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)