São Paulo, 471 anos – Esta cidade nasceu pelas mãos dos jesuítas em torno de uma escola, no Páteo do Colégio, e não de um quartel ou fortificação. É a cidade para a qual convergiram milhões de imigrantes de quase todas as partes do mundo, que criaram um amálgama multicultural incrível nos costumes, dialetos, cores, artes, gastronomia, museologia e muito mais.
No início dos anos 1990, sob a prefeitura de Erundina, o PCdoB propôs um projeto elaborado por Bernardo Joffily, consistindo num museu horizontal, nas longas margens do Rio Tietê, proclamando os mil povos e nações que fizeram e fazem São Paulo, com um grande Globo e bandeiras de todas as nacionalidades ao longo da margem.
Bons tempos aqueles, apesar de tudo.
Em sua jornada, São Paulo afirmou-se com o marcante ethos do trabalho. O trabalho definiu a cidade, organizou e disciplinou a vivência e os processos políticos e sociais. Lutas e mais lutas foram travadas pelos trabalhadores e o povo da periferia, consagrando a imensa contribuição da migração maciça de brasileiros de todas as regiões do país, em especial os bravos nordestinos.
Lembro que uma vez, na TV, perguntaram a João Gilberto o que Sampa significava na sua carreira. Ele, sempre tão conciso e contido, pensativo, respondeu ao cabo de segundos: “São Paulo? São Paulo civiliza.”
Persistiu, entretanto, uma terceira marca indelével da cidade: a polarização social. De um lado, a pujança. A cidade é um polo financeiro, industrial e comercial como poucos no mundo. Sedia serviços e produção de alto valor agregado, como é o complexo da Saúde ou da Cultura, possui um empresariado dinâmico, um incrível comércio especializado que é ponto de destaque nacional e continental, a mais elevada produção cultural e acadêmico-científica do país.
De outro, as distâncias sociais entre sua população de quase 12 milhões de habitantes. Não se deveria esperar que isso piorasse. Mas hoje são 80 mil pessoas em situação de rua (eram 55 mil no ano passado). A Cracolândia é um esculacho, uma ferida a céu aberto, simplesmente inumana. A zeladoria – asfalto, calçamento, limpeza pública – está depauperada, ao desleixo. As árvores, centenárias, caem ou rompem os calçamentos, não há manejo persistente. A engenharia de tráfego – a CET já foi referência internacional – está zerada, o sistema metafórico é de décadas atrás, sucateado, com o que o trânsito é infernal. Nem se respeita mais o código de trânsito, tanto por parte de tráfego de caminhões e, sobretudo, de motocicletas.
Há 30 anos em construção, a metrópole ainda não tem um rodoanel completo, congestionando o trânsito urbano. No caminho para o aeroporto internacional, o maior do hemisfério sul do planeta, não há corredor exclusivo, nem o trem-metrô para adentrar as instalações aeroportuárias. As chuvas provocam cortes da energia elétrica extremamente custosos à população, sem amparo público. Os postes de eletricidade enfeiam a cidade numa parafernália – jamais se cogitou fazer o enterramento, de médio e longo prazo.
Em suma, hoje, São Paulo regride . Tem orçamento inédito, 112 bilhões em 2024 (maior até que os do Estado do Rio e de Minas), entre os 4 maiores públicos do país. Mas o Poder Público não se dá ao respeito. Ao contrário.
A insegurança pública é bárbara. A polícia mata. Carências de serviços públicos são permanentes – São Paulo não tem sequer a melhor educação pública do país, até poderia. Uma conquista que foi a Cidade Limpa, programa que acabou com a poluição visual anárquica da publicidade, agora volta a ser atacada pelas forças que ocupam a Câmara Municipal. O crime organizado já se infiltrou nas instituições, até vencem licitações públicas.
Hoje, pode-se dizer que a cidade foi privatizada por completo. Rege a lógica privada que toma conta de tudo, assume protagonismo em todas as dimensões da vida da cidade. O Poder Público renuncia ao seu papel. É cada um por si mesmo. O que se vê crescer assustadoramente é a incivilidade.
Um cidadão ou uma cidadã comum nem sequer imagina como vive o “andar de cima”, a plutocracia e a alta classe média, com consumo de alto luxo entre os que mais crescem no mundo. Na outra banda, aos simples mortais que vivem do trabalho, o alto custo de vida na cidade e as carências de infraestrutura, levam-nos a tentar sobreviver sem afundar com sua baixa renda. Grandes parcelas precarizadas refugiam-se na religião, boa parte cultiva a antipolítica e acredita que uma vida melhor depende apenas de si mesmo, da família e de deus.
Vivendo na mesma cidade, ambos os polos deveriam se encontrar ao menos uma convergência básica: um poder público voltado ao denominador comum da cidadania. As forças progressistas, em interregnos de governo, mostraram o potencial da cidade quando inverteram prioridades de governo para a dimensão social, mas firmaram planos de urbanização avançados que garantiram regras, melhor infraestrutura e serviços. Hoje essas forças estão em franca minoria, mesmo nas áreas onde anteriormente tinham mais votos.
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Subsiste o fato de que São Paulo foi e é magia, imaginação, dinamismo, força e disciplina. Marcas assim são indeléveis, forjadas em 471 anos. Mas é uma cidade fraturada. Enquanto perdurar o atual ciclo conservador crescerá a regressão, a incultura e a despolitização.
A cidade que merecemos precisa ser resgatada coletivamente pelos que vivem do trabalho, para os valores da solidariedade, progresso e civilidade urbana. Isso, claro, depende da luta política e do nosso amor à cidade. A esperança é nesse bravo e resiliente povo paulistano, das mil nações e síntese dos brasileiros.
Walter Sorrentino é paulistano, presidente da Fundação Maurício Grabois e vice-presidente nacional do PCdoB.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.