A espetacularizada presença dos oligarcas da tecnologia na posse de Donald Trump ganhou ares de anúncio de uma nova ordem mundial. A aliança de figuras como Elon Musk, Jeff Bezos e Mark Zuckerberg com o Trumpismo revela uma intersecção entre poder econômico, político e tecnológico, com consequências duradouras e nefastas para a democracia e para a sociedade global.
E o poder da nova aliança ultrapassa em muito os limites da América. Estas grandes corporações – Meta, Google, X, Amazon, etc – moldam a comunicação, a circulação de informações e o consumo em escala global. A formação da opinião pública passa hoje por estas plataformas, em uma ambiente onde predomina a manipulação de narrativas políticas, discursos de ódio e fake news, que ameaçam a integridade democrática.
A polarização e a radicalização do debate público é um elemento implícito e estrutural no próprio modelo de negócio e funcionamento destas plataformas controladas por big techs. O foco no engajamento resulta nas chamadas bolhas informativas onde os usuários, expostos a informações seletivas, reforçam preconceitos e sistemas de crenças, criando divisões e polarizações.
A hegemonia tecnológica e comunicacional destas plataformas se torna ainda mais alarmante quando consideramos o papel que desempenham em eventos sociais e políticos. Pessoas, organizações, instituições, empresas e mesmo Estados nacionais se tornaram dependentes destes mecanismos em suas estratégias de relacionamento, comunicação social, negócios e todo tipo de interação pública e privada. Como romper este ciclo de dependência e submissão do debate público e da liberdade de expressão a tais mecanismos de poder corporativo?
O anúncio público de Mark Zuckerberg, dias antes da posse de Trump, sobre a eliminação de mecanismos de verificação e sua postura de enfrentamento às regulamentações nacionais em nome da “liberdade de expressão” nas plataformas Meta – Instagram, Facebook e WhatsApp – torna urgente o que já era necessário.
Por um lado, é fundamental atuar nas esferas jurídica, legislativa, administrativa e em organismos internacionais, como vêm fazendo o Brasil, a China e países da União Européia, com a adoção de diversas iniciativas de combate à desinformação, proteção de dados e segurança de usuários no ambiente virtual, com regulamentações que garantam a transparência, a responsabilidade e a proteção dos direitos dos cidadãos. Mas trata-se, ainda, de ações reativas e defensivas.
A esta altura, torna-se imperativo construir portas de saída que rompam com este ciclo de dependência tecnológica e comunicacional. O lançamento do modelo de Inteligência Artificial chinês DeepSeek-v3 abriu uma nova etapa na disputa pela soberania digital e tecnológica no mundo.
Com um investimento de US$ 6 milhões – valor significativamente menor do que os cerca US$ 100 milhões investidos por empresas como a Meta e OpenAI -, utilizando chips mais simples e métodos de treinamento otimizados, a startup chinesa derrubou as ações das gigantes da IA, com sua abordagem mais econômica e eficiente no desenvolvimento da tecnologia de ponta. Seus desenvolvedores ainda foram além: disponibilizaram o modelo em open source, código-fonte aberto, permitindo que outros países, empresas e instituições adotem e implementem a tecnologia livremente.
Saiba mais: Deepseek abala Big Techs e desafia hegemonia dos EUA
O Brasil já teve momentos de pioneirismo e inventividade na adoção de tecnologias open source. No primeiro governo Lula, o país se destacou por uma abordagem crítica e inovadora, apostando no potencial democratizador da internet.
Houve incentivo ao uso de softwares livres, com órgãos governamentais rodando em suas máquinas o sistema operacional Linux. O então ministro Gilberto Gil se declarava um “ministro hacker” e entrelaçava os Pontos de Cultura em seus territórios com as tecnologias livres da Cultura Digital. Foram encontros de conhecimentos livres reunindo o ancestral e o digital, ampliação do acesso a internet de baixo custo em comunidades indígenas e quilombolas, metarreciclagem e experimentações que posicionaram o Brasil na vanguarda em iniciativas ainda inexploradas no ambiente digital.
A Google ainda engatinhava, não havia Facebook. Eram tempos de blogs, MSNs, ICQs, Orkut. Tivesse o Brasil dado estímulo, centralidade e prioridade estratégica a este ambiente criativo em torno de um sistema público baseado em códigos abertos e tecnologias livres, talvez pudéssemos estar em um outro patamar no que diz respeito à soberania digital e tecnológica.
O povo brasileiro é curioso, inventivo e criativo. Sua capacidade de metabolizar, incorporar e adaptar-se às ferramentas digitais é notável. Brasileiros são uma comunidade de usuários importante e expressiva em todas as plataformas digitais.
Leia também: MCTI e Academia Chinesa de Ciências assinam acordo para ampliar a cooperação científica
Com estratégia e visão de longo prazo, com ciência, tecnologia e inovação, nosso país pode voltar a se posicionar como protagonista nesta cena global. Investimento público robusto em infraestruturas soberanas, que contribuam para arquitetar outros arranjos que nos tornem menos dependentes das plataformas digitais corporativas.
O Brasil tem legitimidade para liderar movimentos dessa natureza, oferecendo ao mundo alternativas ao horizonte distópico projetado pelos autocratas do Vale do Silício.
Alexandre Santini é gestor cultural, especialista em políticas públicas de cultura, pesquisador e escritor. Atualmente, preside a Fundação Casa de Rui Barbosa.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.