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    Pobre de Direita: Jessé de Souza e a vingança dos desprezados

    No livro O Pobre de Direita, lançado em 2024, o sociólogo Jessé de Souza afirma que não é a falta de racionalidade, nem a religião e costumes conservadores e nem mesmo a condição econômica de pobreza (como afirmam “alguns marxistas”) que explica o motivo de considerável parcela das classes populares terem votado duas vezes em Bolsonaro – o mais radical representante das classes dominantes exploradoras do povo, com quem só têm a perder e nada a ganhar.

    Defende que as pessoas têm como razão última de sua ação social a dimensão moral, a luta por reconhecimento social – que garante autoestima – e autoconfiança.

    Afirma: “Somos seres frágeis e vulneráveis, construídos pela visão positiva ou negativa que a sociedade possui de nós. Essa necessidade é mais primária e importante que qualquer outra, é a partir dela que devemos nos inquirir quando, muito especialmente, as pessoas ‘aparentemente’ agem sob a ética de utilidade econômica contra seus melhores interesses”.

    Como já se viu em seus livros anteriores, como A Elite do Atraso, Jessé divide a sociedade brasileira em quatro grupos que ele chama de “classes”. A elite proprietária (1% da população); a classe média “real”, que não vai além de 20%; a classe trabalhadora precária, segundo ele, chamada equivocadamente de “nova classe média”, 40%; e, abaixo de todos, os pobres de tudo, desprezados e humilhados, que chama de ralé, que representam outros 40% da população.  

    Como são minoritárias, a elite e a classe média “real” não elegem ninguém em eleições majoritárias. Precisam dos votos dos 80% de explorados e oprimidos. Como conseguem, é o que ele tenta explicar.

    Para isso, apresenta um outro corte da sociedade, que opõe os brancos do Sul (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná) e São Paulo,  aos negros e mestiços do restante do país.

    Oitenta porcento da população do Sul é composta de brancos, de origem europeia, principalmente italianos e alemães; entre 60 a 70% da população de São Paulo também é branca; e 80% da população do Nordeste e Norte são negros ou mestiços.

    Essas diferenças alimentam o que o autor chama de “racismo regional”, muito voltado contra os nordestinos. Este é um disfarce do racismo cultural que é um traço indelével da sociedade resultante da escravidão que por 350 anos foi o motor da produção e a chaga do Brasil. Jessé, até porque é potiguar e moreno, deve saber do que está falando.

    Nessa sociedade, assim dividida pelo preconceito, os pobres, negros e mestiços convivem cotidianamente com a humilhação. E o mais grave, não conhecem as causas profundas de seu sofrimento, cujo pano de fundo é o capitalismo financeiro mundial, que enriquece meia dúzia às custas de bilhões de empobrecidos.

    Vivendo numa sociedade em que o modo de produção é o capitalismo neoliberal os explorados e oprimidos são induzidos a aceitar a propaganda do sistema que inventou equações e números para criar a impressão de que na economia há uma neutralidade técnica traduzida por números e ciências exatas. Diz o autor: 

    “O que imaginamos ser econômico de modo moralmente neutro é a presunção de que uma forma muito específica de produzir e distribuir lucros se torna algo “natural”, aparentemente sem alternativa possível (…) tudo foi montado para não se ver que toda forma de produção e de circulação de bens já é prenhe de determinada definição de justiça que diz que alguns vão ter tudo e os outros nada ou muito pouco. O que importa é saber quem ganha e quem perde com essa definição de justiça”.

    Mas essa realidade não é divulgada pelos grandes meios de comunicação de massa, comprados pelo capital, portanto não está presente aos olhos dos trabalhadores. 

    O Coringa é o pobre de direita

    A autoestima propiciada por uma ideia positiva sobre si é sempre mediada pela percepção dos outros sobre nós. Sem ela, já estamos derrotados na competição social. As doenças da época, depressão e alcoolismo são causadas pela falta de autoestima e autoconfiança – emprego mal pago, trabalho precário, culto aos ricos, ódio aos pobres, corte de gastos sociais, desorientação e falta crônica de esperança. O novo oprimido encontra-se sozinho e sem defesa. Não tem mais os sindicatos ou associações sociais que o apoiem. O insucesso não é visto por ele como resultado do sistema, mas como fracasso pessoal. Ele se sente culpado pelo seu fracasso. Talvez esse seja o subproduto mais importante da guerra aos sindicatos promovida pelo capital financeiro desde 1980. 

    Quando a realidade se torna insuportável, a saída é a fuga na fantasia e na imaginação. O autor sugere como exemplo desse desajuste a figura do Coringa, personagem do cinema conhecido pelo grande público. Humilhado e desprezado por todos, até pela sua mãe, em casa, na rua, no metrô, ele se refugia na fantasia e acaba numa revolta sem rumo, cheia de violência.

    A elite proprietária e a classe média “real” não vivem essa experiência. A primeira, 1% da sociedade brasileira, concentra a riqueza. A classe média branca, 20% da população, de origem europeia, se apropria do capital cultural e comanda a sociedade, em nome dos proprietários, na economia, na política e na esfera pública. Não há como competir. A grande maioria, os 80% restantes, excluídos das benesses do sistema, se dividem entre a classe trabalhadora precarizada e a ralé de marginalizados.

    Os 40% representados pela classe trabalhadora precarizada pelo sistema financeiro apresentam contextos familiares mais estáveis, embora com dificuldades. Há estímulo pela escola, mas em geral conseguem frequentar uma escola de baixa qualidade, que produz aptidão social e profissional para empregos “uberizados”, cargos intermediários no serviço público, policiais e militares, pequenos empreendedores. Seus ganhos ficam entre 2 e 5 salários mínimos. É o pobre remediado, carente de tudo um pouco, mas sem fome e com apoio familiar básico.

    Já os 40% marginalizados vivem o aqui e agora, o almoço de hoje, ausência de futuro. Empregos pesados como os dos antigos escravos. As mulheres são como escravas domésticas. Ênfase no trabalho muscular. São desumanizados e animalizados, produzidos intencionalmente para serem explorados e humilhados numa continuidade da sociedade escravocrata. A polícia foi criada para perseguir, humilhar e matar essa classe, quase toda preta e mestiça, sob aplauso das classes privilegiadas. Diz Jessé: “se for preto e pobre, é bandido – simples assim”. Em uma sociedade tão desigual pode-se justificar todo o esquema injusto e conferir a culpa à própria vítima.

    O pobre remediado

    O autor chega ao objeto central do livro, o pobre remediado, a classe trabalhadora precarizada.  Esse setor da sociedade vive uma fragilidade social. Aspira a ser como a classe média, idolatra a elite, assume seus pontos de vista e preconceitos sem se dar conta de que essa falsa moralidade foi formulada contra ele.  E se afirma juntando-se ao desprezo com relação aos mais pobres, a ralé, vista como um abismo onde teme cair. 

    Os brancos pobres remediados representam 70 a 80% do eleitorado do Sul e cerca de 60% do eleitorado de São Paulo. Pelo fato de não terem tido a mesma oportunidade de se formar culturalmente, e de terem suas aspirações profissionais frustradas, alimentam um ressentimento, sentem-se injustiçados. 

    Para o pobre “honesto” e “homem de bem”, a moralidade – falsa e fabricada contra ele próprio – passa a ser tudo. Como a maior vulnerabilidade é a necessidade de autoestima e reconhecimento social, qualquer boia de salvação moralista chega em solo fértil. É a razão mais importante do sucesso da pregação moralista e conservadora dos evangélicos. Vai dar a essas pessoas carentes de respeito social um fundamento para que possam se orgulhar de si mesmas, como “homem de bem”, “pai de família”. Sentem-se acolhidos como participantes de uma comunidade, ouvidos e influenciados politicamente. 

    Na hipótese de trabalho do autor, o fator decisivo para esse segmento social aderir à direita é o racismo “racial” disfarçado de racismo regional. Daí a fúria contra o Nordeste e os nordestinos, provocada pela derrota de Bolsonaro, disseminada por conservadores nas redes sociais.

    Pois, como mostram as entrevistas realizadas pelo autor no Sul e em São Paulo, em geral aspiraram profissões na classe média, mas se frustraram, sendo obrigados a ocupar trabalhos secundários. Como o jovem  gaúcho de porte atlético que vem da classe média decadente e não conseguiu reproduzir a trajetória de seus ascendentes. Ele foi reprovado em inúmeros exames para ser policial federal. Apenas conseguiu ser guarda penitenciário, onde se  ocupa em espancar e torturar prisioneiros. 

    O exemplo mais significativo desse processo de alienação da realidade vem de Concórdia, Santa Catarina. Um brasileiro, descendente de alemães de terceira geração, mas que ainda se considera alemão, o que mostra desprezo pela condição de brasileiro. Lembra com orgulho que seu avô foi um ardoroso simpatizante do nazismo. Subgerente de uma loja de materiais de construção, ganha cerca de 5 mil reais por mês,  mas assume a postura de quem pertence à elite econômica e cultural. Mora em um quarto e sala do prédio da loja, que pertence a seus tios. Queria ser administrador de empresas. Tentou várias universidades públicas, mas não conseguiu aprovação. Racionaliza dizendo que a vida prática no trabalho ajuda mais que os estudos na universidade. Na região todos que não são de origem europeia são chamados “bugres” desde o tempo da guerra do Contestado (1912-1916). É por esse apelido desdenhoso que ele trata quase “carinhosamente” a funcionária que é caixa da loja.

    Concórdia tem falta de mão-de-obra e recebe trabalhadores de fora, haitianos, negros, nordestinos. O entrevistado tratava muito mal um funcionário haitiano até que este reuniu amigos e bateram nele. O rapaz foi demitido. Comentando esse fato, disse: “não sou racista, tenho amigos e empregados negros. Agora, que os caras são lentos e sem disciplina, isso é inegável. Nossa cultura é do trabalho e disciplina. A cultura negra é a da festa, da dança, da preguiça e do barulho, não do trabalho”. 

    Mas os piores para ele são os nordestinos.  Acreditam que o Sul e o Sudeste produzem as riquezas e os nordestinos se aproveitam dessa riqueza para a qual não contribuíram”. Diz: “os nordestinos só fazem filho para poder receber do governo. Eu gostaria de poder entrar no Nordeste usando passaporte, entendeu? Como qualquer estrangeiro”. Ele explica que quando fala em querer passaporte para poder ir ao Nordeste é para poder aproveitar as coisas boas de lá, sem que seja o nordestino quem diga quem vai comandar o país. “É só dar alguma vantagem que eles passam a te seguir como um cãozinho. Foi isso que o Lula fez”. Conta que votou duas vezes em Bolsonaro. “Eu acho ele parecido com a gente. É um dos nossos (…) 90% da comunidade daqui é Bolsonaro”.

    Há uma série de outras entrevistas, muito reveladoras. Todas têm em comum a frustração, o sentimento de que foram injustiçados e de que Bolsonaro é igual a eles e os representa. Para o autor, “o ressentimento social é a procura de um culpado externo para a sensação do fracasso objetivo daqueles que não possuem nem capital econômico nem cultural legítimo”.

    O negro evangélico

    Segundo Jessé, também muitos negros, sobretudo evangélicos, votaram duas vezes em Bolsonaro, que “é um racista da velha escola, que faz piada com os negros”. Por que um negro pobre votaria nele? A explicação: o pentecostalismo, versão popular do protestantismo, criada nos Estados Unidos, desenvolveu uma versão que valoriza a tradição negra, a oralidade da liturgia, testemunhos orais, inclusão do êxtase, sonhos e visões, xamanismo religioso, coreografia e muita música nos cultos. 

     É uma manifestação religiosa que se dirige aos desterrados, humilhados e imigrados. São pessoas que não se sentem pertencentes à realidade social, visto que ela os humilha e não os reconhece. Nasceu assim uma religião para os abandonados e excluídos. Essa versão religiosa se disseminou rapidamente no Brasil, em várias ondas. 

    A terceira onda teve início nos anos 1970 e seu principal protagonista é a Igreja Universal do Reino de Deus. A novidade de sua pregação está no exorcismo dos demônios. É a luta direta entre Deus e o demônio. É uma guerra. Particularmente voltada contra as religiões de raiz africana, como o umbandismo, candomblé, etc. 

    Na verdade, trata-se de uma “antropofagia” da fé inimiga. Opera da mesma forma com o transe religioso, com a incorporação dos espíritos (no caso, demônios) ao corpo da pessoa em transe. Demônio que o pastor expulsa significando a vitória da “língua de fogo” do Espírito Santo. O enorme crescimento da IURD demonstra o sucesso de sua pregação entre os mais humildes, os desprezados, abandonados pela sociedade e pelo Estado.

    O neopentecostalismo se alimenta do racismo existente que criminaliza os negros e todas suas práticas, inclusive as religiosas. Assim, opina o autor, o neopentecostalismo é ideal para quem pretende “embranquecer”. Que implica estigmatizar o negro, seu vizinho, seu irmão, e sua criminalização.

    Leia também: Olívia Santana defende a urgência de um ousado projeto nacional antirracista 

    Nas expressivas entrevistas que o livro apresenta com negros evangélicos está presente o moralismo evangélico que se manifesta no apoio a Bolsonaro, “o mal menor”, no repúdio a Lula e ao PT. “Querem destruir a sociedade, liberar a maconha”. A crítica aos LGBTmais, ao feminismo “as mulheres querem ganhar o mesmo salário que os homens” etc. 

    Nessas manifestações transparece que o negro, desumanizado pelas classes melhor posicionadas na escala social, encontra acolhimento na igreja evangélica, sente-se fazendo parte de uma comunidade, “homem de bem”, que “embranquece” um pouco. A rígida moralidade evangélica lhe dá a justificativa moral. A superioridade que sente em relação aos outros negros lhe dá o sentimento de pertencimento. 

    Na conclusão o autor afirma: “para cada negro que “embranquece” existe um negro que será ainda mais hostilizado, agora também por seus irmãos de cor. Como as oposições visíveis são sempre ‘moralistas’ – como a salvaguarda da família – não chega à consciência do negro oprimido (que quer embranquecer) o conteúdo profundamente racial do preconceito original (antes da canalização e mascaramento pseudomoralista) em jogo aqui. Ele, como diria Cartola, cava sua tragédia com os próprios pés”.

    SOUZA, Jessé de. O Pobre de Direita: A Vingança dos Bastardos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2024.

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    Carlos Azevedo é pesquisador do Grupo de Pesquisa da Fundação Maurício Grabois sobre a Sociedade Brasileira.

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.

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