A questão nacional em Lenin e Stalin: um importante legado do marxismo – Este texto faz parte de uma maratona de aulas que, em 22 de janeiro de 2020, proferi dentro do Curso Nível III, Núcleo Estado e Classes, promovido por Escola Nacional João Amazonas/Fundação Maurício Grabois. Aqui abordo a subunidade “O conceito marxista de povo e de nação”. As demais: “O debate em torno do modo de produção no Brasil”, “O debate sobre povo e nação no Brasil”, “As transições na história brasileira: Independência, Abolição, República, Revolução de 1930”, que serão publicadas oportunamente.
No artigo, apresento as principais contribuições teóricas de Vladimir I. Lenin e Joseph V. Stalin a propósito da questão nacional, com destaque para as controvérsias com Rosa Luxemburgo e Otto Bauer, e verificar sua atualidade para inspirar os revolucionários de hoje. Estamos, tal como os viajantes de antanho, diante da Esfinge, que exibia o famoso enigma: “decifra-me ou te devoro”.
Para decifrarmos nosso enigma, ou seja, os mecanismos de funcionamento e contradições do capitalismo dependente brasileiro e sua dependência de um imperialismo em decadência, e desvendarmos os caminhos da sua superação, é fundamental que, inspirados nos revolucionários que nos precederam e com base no método revolucionário, o materialismo dialético e histórico, adotemos uma postura que, sinteticamente, se traduziria em “pensar com a própria cabeça e caminhar com as próprias pernas”. Isso não significa nos isolar do resto do mundo; ao contrário, teremos cada vez mais relações econômicas, tecno-científicas, políticas, enfim diplomáticas com o mundo inteiro, só que seremos nós próprios a traçar o nosso destino. Não há dúvida de que, nesse processo, estaremos mais próximos daquelas nações e povos com os quais temos mais identidade.
Lenin e Stalin foram os primeiros a tratar, em nível internacional e, por conseguinte, também na Rússia, da questão nacional a partir do marxismo. Já se havia tratado dela na Alemanha, mas era uma maneira disfarçada de negá-la, como veremos adiante. Ao tratarem dessa questão com profundidade, os dois dirigentes revolucionários deram uma contribuição decisiva ao marxismo e, em consequência, à compreensão do mundo e à luta dos povos. Vamos ver, basicamente, como eles construíram essa teoria em meio à controvérsia que, no seio dos partidos que então reivindicavam o marxismo, mantiveram com Rosa Luxemburgo, Otto Bauer e Karl Radek.
Importante registrar, como ficará claro adiante, que os dois dirigentes revolucionários russos tratam do problema nacional em duas dimensões: 1) a formação dos Estados heterogêneos, envolvendo várias nações, tais como o império russo (dominado pela Rússia), o império Habsburgo (Áustria), o império otomano (Turquia), surgidos no feudalismo, assumindo na forma novas feições na transição para o capitalismo, e desmembrados durante a I Guerra Mundial; 2) a consolidação do sistema mundial do imperialismo, nascido nas entranhas do capitalismo na virada do século XIX para o XX, a partir de quando a questão nacional tornou-se um problema internacional. Qual a diferença fundamental? Demonstra Lenin que, se na primeira dimensão, o problema nacional restringia-se àqueles Estados heterogêneos, no segundo momento convertia-se num problema internacional, pois o inimigo comum passara a ser o sistema mundial do imperialismo.
- Lenin: Estado nacional nasce como necessidade do capitalismo
Lenin escreveu A classe operária e a questão nacional em 1913 para no ano seguinte lançar Sobre o direito das nações à autodeterminação. No fundamental, estabelece os elementos essenciais para a compreensão da questão nacional, ao mesmo tempo em que polemiza com Rosa Luxemburgo e Karl Radek. A controvérsia girava em torno do ponto do programa do partido de Lenin (Partido Operário Socialdemocrata da Rússia – POSDR) acerca do direito das nações à autodeterminação.
Rosa Luxemburgo era de origem polonesa, mas viveu boa parte da vida na Alemanha, fazendo parte do Partido Social Democrata Alemão. Marxista respeitada no movimento operário internacional e na intelectualidade progressista, produziu uma importante contribuição ao pensamento marxista. Foi assassinada na prisão, ao lado de outros companheiros, com os quais estava formando um novo partido, a Liga Spartakus (que deu origem ao Partido Comunista Alemão), por membros do partido de que fizera parte, o Partido Social Democrata Alemão (SPD), quando houve a cisão dos partidos que se reivindicavam do marxismo, e esse partido, por meio de sua ala à direita que abdicara dessa concepção de mundo, em aliança com os centristas de Karl Kautsky, aproveitou a conjuntura revolucionária e chegou ao poder.
Vejamos inicialmente as primeiras manifestações de Lenin sobre a origem da questão nacional.
Para ele, os movimentos nacionais estiveram presentes em grande parte do mundo na época da vitória do capitalismo sobre o feudalismo. A base econômica disso é que, para a vitória total da produção mercantil, seria indispensável a conquista do mercado interno pela burguesia, bem como a coesão estatal dos territórios com uma população de mesma língua. Por isso, a formação dos Estados nacionais, que são os que melhor satisfazem essa exigência do capitalismo moderno, seria a tendência de qualquer movimento nacional.
O que é típico e normal para o período capitalista é o Estado nacional, dizia Lenin. Em consequência, partindo dessas condições histórico-econômicas dos movimentos nacionais, conclui Lenin que a autodeterminação das nações e sua separação estatal de estados nacionais estrangeiros se concretizam através da formação de Estados nacionais independentes. Essa posição se choca com a de Otto Bauer, que, como veremos adiante no embate entre ele e Stalin, definia a nação por razões psicológico-culturais e propunha, no lugar da autodeterminação, a autonomia cultural-nacional.
Em reforço a essa sua ideia de que o desenvolvimento do capitalismo requer um Estado nacional, Lenin cita Karl Kautsky, que fora o principal dirigente da II Internacional entre final do século XIX e começo do XX, ou seja, na época em que ainda não havia renegado da revolução e, por conseguinte, do marxismo. Dissera ele: “o Estado nacional é a forma de Estado que melhor corresponde às condições modernas”, isto é, capitalistas. Ainda: “é a forma na qual ele poderá cumprir com maior facilidade suas tarefas”. Enquanto isso, os Estados de composição heterogênea são “sempre Estados cuja conformação interna, por estas ou aquelas razões, permanece anormal ou pouco desenvolvida”.
- Imperialismo e autodeterminação nacional em Lenin
Para Lenin, então, o Estado nacional é a regra e a “norma” do capitalismo, enquanto o Estado de composição heterogênea é exceção e atraso. As melhores condições para o desenvolvimento do capitalismo seriam proporcionadas pelo Estado nacional. Assim, diz ele, os marxistas não podem perder de vista os poderosos fatores econômicos que geram a aspiração à formação de Estados nacionais. Por isso, a autodeterminação das nações não poderia ter outro significado que a autodeterminação política, a independência estatal, a formação do Estado nacional. Não por acaso, os Estados nacionais nascem na Europa na mesma época em que, dos escombros do feudalismo, começam a brotar os elementos fundamentais do capitalismo, ou seja, na era do mercantilismo, transição do feudalismo para o capitalismo.
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Segundo Lenin, Rosa Luxemburgo, ao tratar da questão da autodeterminação, não deixava claro se o problema estava nas definições jurídicas ou na experiência dos movimentos nacionais do mundo inteiro. Ela, na verdade, desdobrava sua polêmica em duas questões importantes.
Rosa Luxemburgo, à moda de Bauer, destacou Lenin, defendia a mera autonomia, e não a autodeterminação, com direito a separação, da Polônia, sua terra natal. Apesar de estar polemizando com os marxistas russos e parte de seu país estar sob domínio do império russo, deixou de considerar a importância de determinar quais as particularidades da questão nacional na Rússia, o que, obviamente, implicava tratar do problema nacional das nacionalidades dominadas pelo império russo, dentre elas a Polônia.
O programa dos marxistas russos se referia aos movimentos nacionais democrático-burgueses e só podia se referir aos casos onde existiam esses movimentos. Como já dissera Stalin, e Lenin reforçou, no caso da Rússia a questão nacional estava imbricada com a questão agrária – o que ensejava transformações democrático-burguesas -, já resolvida na Europa ocidental; o mesmo com a questão nacional – na Europa oriental e na Ásia, a época das revoluções democrático-burguesas só teria começado em 1905 na Rússia, enquanto, na Áustria, começara em 1848 e terminara em 1867.
Lenin registrou que, em lugar de se posicionar sobre essa polêmica, Luxemburgo levantou outra questão, em princípio correta, mas desviava dessa questão da autodeterminação. Afirmou ela que os pequenos Estados dependiam economicamente dos grandes; que entre os Estados burgueses se trava uma luta pelo esmagamento de outras nações; que existem o imperialismo e as colônias. Assim, para ela, o normal no capitalismo não seria o Estado nacional. O característico seria o Estado dos países centrais ganhar, na sua etapa imperialista, o status de Estado de rapina, pois espoliam os outros povos, as colônias e os estados dominados.
A controvérsia havia iniciado pela questão nacional das nacionalidades que integravam de forma subordinada grandes Estados heterogêneos, como a Rússia. Resolvida teoricamente essa questão, tratava-se então de também resolvê-la nos marcos do sistema mundial do imperialismo. Esses embates iniciais foram fundamentais para o marxismo formular a questão nacional, apresentando como caminho para superação dessa condição a autodeterminação e o direito à separação e a necessidade de ampla aliança para garantir essa conquista. É certo, como afirmara Luxemburgo, que na fase do imperialismo os Estados dos países centrais são utilizados por seu capital financeiro para dominar e explorar os países mais débeis.
Mas Lenin, ao escrever, em 1916, o livro Imperialismo, etapa superior do capitalismo, aumentou muito mais a compreensão do marxismo sobre a questão nacional na Ásia, na África e na América Latina e, inclusive nas nações europeias menos desenvolvidas. Isso porque, ao se formarem os monopólios, o capital financeiro, o capitalismo monopolista de Estado nos países mais desenvolvidos, transformando então o capitalismo concorrencial em monopólio imperialista, abriu-se entre eles, devido ao desenvolvimento desigual, a luta pela repartição e recolonização de grande parte do globo, implementada a ferro e fogo pelo imperialismo entre fins do século XIX e início do XX, incluindo uma guerra mundial, a fim de garantir mercados cativos para seus capitais e mercadorias e fontes de matérias primas e mão-de-obra barata. Era a consagração violenta da divisão internacional do trabalho imposta pela Inglaterra em meados dos anos 1840. E, assim, com a emergência do imperialismo, internacionalizou-se o problema nacional.
Segundo Lenin, “estados débeis”, que eram os países dominados, não significam necessariamente pequenos Estados, como parecia a Rosa Luxemburgo. Até porque Estados grandes como a Rússia dependiam economicamente do poder do capital financeiro imperialista, particularmente da Inglaterra e da França; a China, semicolônia da Inglaterra, era ademais repartida entre outras nações, dentre elas o Japão. E acrescentamos nós: pequenos estados europeus são imperialistas e dominam grandes áreas do planeta.
E assim a Ásia se encontrava em situação de colônia ou semicolônia das grandes potências enquanto os países da América Latina, apesar de construir a sua emancipação política nas primeiras décadas do século XIX, constituíram Estados que passaram rapidamente a ser inteiramente dependentes e oprimidos pelo imperialismo. Na região asiática, apenas o Japão havia criado Estado nacional e o usava para oprimir outros povos. Mas o imperialismo, ao mesmo tempo, ao acirrar as contradições do capitalismo, provocava o despertar dos movimentos nacionais e a luta pela formação de Estados nacionais.
Em lugar de tratar da dupla dimensão do problema nacional, Rosa Luxemburgo, no dizer de Lenin, confundia a primeira dimensão do problema nacional (Estados de composição heterogênea do Leste) com a segunda (época do imperialismo) e substituía a questão da autodeterminação política, da independência estatal, pela da autonomia cultural-nacional. Ou seja, não respondia à questão que estava em debate, que era como se deveria tratar naquele momento a formação dos Estados nacionais nos países dominados. E, para conquistar isso, se se deveria apoiar ou não a luta pela autodeterminação mesmo que deflagrada pela burguesia. Mas ela desviou o debate para uma questão que é real e importante (que tinha a ver com a segunda dimensão), mas com isso deixou de tratar da questão da autodeterminação em relação às duas dimensões.
- Lenin: os comunistas devem apoiar a luta pela independência das nações
Outra questão levantada no debate dizia respeito ao papel que os marxistas e os trabalhadores deveriam assumir na luta nacional. No caso das nacionalidades dominadas pela Rússia, por exemplo, dever-se-ia apoiar a luta pela independência, a autodeterminação das nações? Luxemburgo tinha problema com a questão nacional. Fora formada no seio da II Internacional que propugnava que, no fundamental, a classe operária era internacionalista, repetindo a consigna com que Marx e Engels encerraram o Manifesto do Partido Comunista: “trabalhadores de todo o mundo, uni-vos”.
Na verdade, ao aprovar os créditos de guerra, os partidos que integravam essa entidade internacional estavam autorizando ao seu Estado, às suas Forças Armadas, ao proletariado de seu país a matar seus irmãos proletários de outros países, conforme denunciou Lenin. Grande internacionalismo!
Por outro lado, a questão nacional, na verdade, conforme Stalin destacaria em seu texto posterior O problema nacional, na prática não existia para a II Internacional, para a socialdemocracia do começo do século XX. Ela teria tratado da questão nacional apenas como uma questão das nações “cultas” da Europa (Irlanda, Finlândia, Polônia, Sérvia, Hungria) e assim mesmo não propunha o direito à autodeterminação, à separação, limitando a questão a um problema cultural e propondo por isso mesmo que a solução seria a autonomia cultural-nacional. Só que, ao não enfrentar o problema da autodeterminação, da independência estatal, terminava não garantindo a autonomia cultural. Sobre as colônias, semicolônias e países dependentes, ou seja, os africanos e asiáticos, da periferia do mundo imperialista, nenhuma palavra.
Ainda que não tivesse a mesma avaliação que os líderes da II Internacional sobre a natureza do imperialismo, Rosa Luxemburgo, ao examinar o caso da Áustria, assim como Otto Bauer, chegara a conclusão semelhante: o problema nacional se resumia a um problema cultural. Por isso, propunha como solução a autonomia cultural-nacional.
. Para ela, o nacional era uma questão burguesa e, justamente, surgiu assim, conforme Lenin havia registrado. Em função disso, dizia ela que apoiar a autodeterminação das nacionalidades dominadas pela Rússia significava apoiar o nacionalismo das burguesias locais. Para Lenin, essa posição de Rosa Luxemburgo, ao não apoiar o nacionalismo local, o nacionalismo das burguesias dominadas, estava fazendo o jogo do nacionalismo grão russo da burguesia dominante. Porque, ao não apoiar essa burguesia local na luta pela autodeterminação, estaria, na prática, possibilitando que se mantivesse a dependência, ou seja, a dominação pela classe dominante da nação dominante, no caso a Rússia. Ao manter a dependência, quem se beneficiaria dela seria a burguesia grão russa que era a burguesia dominante do país dominante.
Para Lenin, à medida que as burguesias das nações oprimidas lutam contra os opressores, os marxistas são os mais decididamente a favor, pois são os inimigos mais audazes contra a opressão. Em todo nacionalismo burguês de uma nação oprimida, há um conteúdo democrático geral contra a opressão, e este conteúdo deveria ser apoiado incondicionalmente pelos comunistas. Segundo Lenin, os marxistas são decididamente contra a aspiração burguesa à exclusividade nacional e a oprimir outros povos. Referenciado em Marx, declarou: “não pode ser livre um povo que oprime outro povo”. A tarefa principal na questão nacional do proletariado russo ou de qualquer outra nacionalidade seria a agitação e propaganda do direito igual de todas as nações a seu Estado nacional.
- Solução do problema nacional russo após a Revolução de Outubro
Pode-se perguntar: se a questão nacional é tão importante para as burguesias dos países que estão transitando para o capitalismo e dos países dependentes e coloniais, por que então a revolução democrático-burguesa de fevereiro de 1917 não realizou essa tarefa? Ora, formou-se um governo provisório que tinha inicialmente como primeiro-ministro o aristocrata e grande proprietário de terra vinculado aos kadets, Georgy Lvov, em cujo governo o menchevique dos esseristas Alexander Kerensky foi ministro da Justiça e da Guerra. Mas em meados do ano assumiria o cargo máximo de ministro-Presidente. Apesar de setores da pequena burguesia representados por esseristas e mencheviques terem aumentado sua força no novo governo, este era, na verdade, hegemonizado ideológica e politicamente pela grande burguesia russa – os kadets de Pavel Miliukov e Lvov se prestavam a cumprir esse papel.
E é um fato que a grande burguesia russa tinha o interesse em manter os vínculos com o imperialismo anglo-francês e muito mais o de seguir oprimindo e explorando os povos subordinados ao império russo. Portanto, não tinha o menor interesse em revolver a questão nacional dos países subordinados ao império russo . Esta só foi resolvida, de acordo com Lenin, após a Revolução de Outubro.
Durante a VII Conferência Pan-Russa do POSDR, realizada em abril de 1917, o informe sobre o problema nacional havia sido apresentado por Stalin e nele as principais questões eram precisamente o direito das nações à autodeterminação e à separação. Chegando ao poder em outubro de 1917, os bolcheviques aprovaram o direito à separação por parte das nações dependentes da Rússia. Essas, mesmo conquistado esse direito, permaneceram, no entanto, no fundamental, ao lado da Rússia soviética para a criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, em 1922, cinco anos depois da Revolução de Outubro. A própria Rússia conquistou a independência em relação ao capital financeiro anglo-francês.
Lenin fundamentou essa formulação do direito à separação, dentre outros, no texto A classe operária e a questão nacional, no qual, segundo ele, para que diferentes nações possam viver livre e pacificamente ou se separem, constituindo Estados diferentes, é necessária a completa democracia defendida pela classe operária. Por outro lado, segundo Stalin, para a instauração da “ordem autenticamente democrática”, seria necessário limpar o terreno dos obstáculos interpostos pelo imperialismo e a oligarquia agrária.
Mas essa decisão sobre o direito à separação das nações dependentes da Rússia não foi tão pacífica no seio dos bolcheviques e nem muito menos no processo real, dadas as contradições acumuladas ao longo do regime czarista e a consequente desconfiança por parte dos povos da periferia em relação ao governo central da Rússia, sem falar na pressão e no canto de sereia do imperialismo. Após a revolução, havia quem achasse que, nessa questão das nacionalidades, devia-se construir a União Soviética com base no molde que o império russo havia estruturado antes, com as nações dependentes integradas na nova sociedade, negando, portanto, o direito à separação. E qual foi a posição de Lenin e Stalin? Que as várias nacionalidades teriam direito a separação. Não seria a Rússia a determinar o que deveriam decidir. Teria que garantir o direito à separação, e cada nação decidiria se participaria ou não da nova sociedade e encontraria sua forma de tomar essa decisão. E qual foi o resultado?
A Finlândia utilizou esse direito e separou-se, ou seja, não participou da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Além dela, insufladas por setores das burguesias nacionais locais e sob a forte pressão imperialista, algumas nações chegaram a se separar da nova Rússia soviética. Mas, como indicou Stalin, depois de experimentar o gosto amargo do avassalamento e saque por parte da Entente e do capital alemão, incluindo guerras entre si, passaram a participar do processo de construção da URSS, como foram os casos da Geórgia, da Ucrânia e do Azerbaijão.
Para ele, apesar de ter o direito reafirmado pelo governo soviético, aquele não era o momento mais apropriado para a separação, considerando as condições internacionais então vigentes, em que o imperialismo, por meio da Entente, travava uma luta a morte contra a Rússia soviética. E foi assim que cada nação da “periferia” se integrou à formação da URSS de acordo com seu grau de desenvolvimento econômico e cultural. E assim a União Soviética realizou a primeira experiência mundial de organizar a união fraterna de várias nacionalidades integradas a um mesmo Estado sob direção da classe operária, em aliança com o campesinato.
- Stalin: o que é uma nação
O primeiro texto de Stalin mais acabado sobre essa temática é de 1913. Há quem diga que Stalin não era teórico, não era formulador, que não passava de um político pragmático. Esses críticos de Stalin iriam se surpreender, se se dessem ao trabalho de ler sua obra, com a contribuição teórica dele em vários campos importantes. Não era à toa que Lenin o chamava de magnífico georgiano. O magnífico georgiano e Lenin foram os principais formuladores da questão nacional no seio do marxismo. O texto de 1913, em que vamos nos concentrar aqui, se chama O marxismo e o problema nacional, mas recorreremos a outros textos mais recentes, sempre que pertinente.
Como a questão nacional deriva do processo de construção das nações, Stalin começa pela definição do que é uma nação. Segundo ele, uma nação é uma comunidade de seres humanos. Mas não é uma comunidade étnica, racial ou tribal. Tem seis características: 1) é uma comunidade historicamente formada: nasce com o capitalismo; 2) comunidade estável; 3) comunidade de idioma; 4) comunidade de território; 5) comunidade de vida econômica; 6) comunidade psicológica ou de cultura. Só a presença conjunta de todas essas características, a combinação de todas elas, conformaria uma nação. Vejamos em mais detalhe cada uma dessas características.
Em primeiro lugar, a nação é uma comunidade construída historicamente; nasceu em determinado momento histórico: a transição do feudalismo para o capitalismo, a fase do mercantilismo. É, portanto uma criação histórica. Vimos em seções anteriores, quando expusemos o pensamento de Lenin sobre essa questão do surgimento das nações, e voltaremos a ver novamente: por que o capitalismo exige, demanda que haja Estado nacional? Sem o Estado nacional, é impossível se pensar no desenvolvimento do capitalismo. Para chegar a essa conclusão, Stalin se inspira em Marx, para quem a nação e seu Estado, o Estado-nação, surgiu em determinado momento histórico, o processo de nascimento do capitalismo, e vai desaparecer em outro momento histórico, o do reino da liberdade e da abundância, livre da exploração de um ser humano sobre outro, o comunismo, pois neste, por definição, não há Estado.
A segunda característica é que a nação é uma comunidade estável: não pode ser um amontoado de tribos que se juntam em algum momento e no momento seguinte já estão separadas. Para ser nação, tem que ter uma real estabilidade, ou seja, existir durante um tempo razoável. Ocorreram casos de países que construíram estados num primeiro momento, mas apenas de formas frugais e artificiais, não logrando, portanto, manter-se enquanto nação.
Terceira característica: comunidade de idioma. Não é que tem que existir apenas um idioma na nação, mas tem que haver um idioma predominante, que todos os membros da coletividade falem e entendam e que por isso mesmo passa ser o idioma da nação, ainda que outros idiomas sejam falados nas comunidades étnicas. Segundo Lenin, para poder desenvolver o mercado, para poder desenvolver as atividades mercantis em amplitude, a burguesia local tem que dominar o mercado interno; para isso, tem que se comunicar e, para se comunicar, é importante ter um idioma predominante, um idioma que todos falem e compreendam. Então, para se desenvolver o capitalismo, é necessário ter uma nação, que, por sua vez, conta com uma comunidade de idioma.
A quarta característica é a comunidade de território. Uma nação deve ter um território. Essa questão foi enfatizada por Stalin porque houve na época teóricos marxistas que chegaram a tratar os judeus como se fossem uma nação. Bem, os judeus estavam espalhados pelo mundo inteiro e, na época do debate, havia judeus em todas as áreas da Rússia; então, não possuíam um território e, por conseguinte, segundo Stalin, não constituíam uma nação.
Quinta característica: uma nação tem que ter uma comunidade econômica, uma base econômica, uma estrutura econômica que permita produzir o seu sustento, produzir a sua riqueza; uma base econômica que tem um modo de produção predominante e, no caso concreto, o capitalismo, pois as nações nasceram com o capitalismo e, mais concreto ainda, o capitalismo dependente (que devemos decifrar e superar).
Por fim, a sexta característica é a comunidade de cultura; a nação deve ter uma cultura comum. Isso não significa que não tenha a possibilidade de conter várias culturas, mas, independentemente da relação entre elas, há uma cultura que predomina para poder definir, expressar a nação dentro e fora do país.
Segundo Stalin, não basta ter uma, duas ou três dessas características para ser uma nação; deve ter o conjunto delas. O debate inicial dele era com os marxistas austríacos, basicamente com Otto Bauer, que, como indicamos anteriormente, era um economista marxista e membro do Partido Socialdemocrata Austríaco. Vocês sabem que os partidos marxistas na época, que hoje são mais conhecidos como comunistas, eram chamados de partidos socialdemocratas ou socialistas e, depois, houve a cisão da II Internacional, quando a maioria deles apoiou a guerra inter-imperialista, passando por cima de decisão anterior da própria Internacional, que orientava que, quando eclodisse a guerra, havia que transformar a guerra imperialista em guerra civil revolucionária; a partir de então, os partidos com esses nomes foram abdicando de seu lado revolucionário e assumindo o reformismo, chegando depois a, mais recentemente, abraçar ou serem abraçados pelo que existe de pior, mais perverso e iníquo no capitalismo atual: o neoliberalismo, enquanto ideologia, política econômica, programa de governo.
Ainda sobre a questão do Estado, não nos esquecemos de que, com a emergência e aprofundamento do imperialismo, cada vez mais o controle da economia e do Estado, como indicara Lenin, se limita à oligarquia financeira dos países centrais, que é a parcela da burguesia que concentra e centraliza em suas mãos, em velocidade descomunalmente acelerada, o conjunto da riqueza e, a partir daí, domina e superexplora não apenas os trabalhadores de seus próprios países como também os povos da periferia do conjunto do mundo capitalista.
Nessa fase do capitalismo, comandada cada vez mais por uma insignificante minoria, a oligarquia financeira imperialista – que, no caso estadunidense, o mais apropriado seria designar de oligarquia bélico-financeiro-midiática -, e que, por isso mesmo, exclui da classe dominante até as parcelas não monopolistas da burguesia, numa carnificina em que capitalistas expropriam capitalistas, num violento processo fratricida de concentração e centralização do capital, engendrando contradições e conflitos entre elas, a classe operária e demais setores do povo da periferia do mundo capitalista, incluindo aí parcelas não monopolistas da burguesia, e em aliança com os trabalhadores dos países desenvolvidos, podem isolar cada vez mais essa oligarquia em seus países e no mundo e disputar o comando do Estado numa primeira etapa que tenha o desenvolvimento soberano e o combate às desigualdades como objetivo.
- Diferença fundamental entre o Ocidente e a Europa oriental e Ásia
Bauer defendia que, para ser nação, não era necessário possuir esse conjunto de características listadas por Stalin. Para ele, o que definiria uma nação seria sua identidade psicológica, cultural. Ele definia a nação apenas pela cultura. Assim, “a nação é uma comunidade relativa de caráter”. Respondendo a isso, Stalin pergunta: o que é o caráter nacional senão o reflexo das condições de vida? Esse não é um debate acadêmico, inocente. Mostraremos mais à frente que essa definição de Bauer acarretou consequências para a estratégia e a tática da luta dos trabalhadores.
Para Stalin, a nação não é apenas uma categoria histórica, mas uma categoria de determinada época, da época ascensional do capitalismo, de formação dos Estados nacionais. Foi assim na Europa Ocidental. O dirigente bolchevique dizia que esse processo que Lenin e ele analisaram – de formação do Estado nacional – é um processo que ocorreu, basicamente, na Europa Ocidental, onde o capitalismo havia se desenvolvido. Exatamente o fato de desenvolver o capitalismo havia demandado a formação do Estado nacional como instrumento do capital para desenvolver o capitalismo.
Mas, no Oriente, as coisas ocorreram de maneira diferente: não se formaram Estados com uma única nação, mas Estados multinacionais, Estados integrados por várias nacionalidades, Estados heterogêneos. Por que no Ocidente haviam se formado Estados com uma única nação e no Oriente, como era o caso da Rússia, não havia se formado dessa forma? A questão fundamental seria a base econômica. No Ocidente, havia se desenvolvido o capitalismo e, onde se desenvolveu esse modo de produção, havia se formado o Estado-nação. E, como vimos, o principal instrumento que o capitalismo utiliza para se desenvolver é, exatamente, uma estrutura de estado que permita defender seu mercado interno e delimitar seu território.
Já na Europa Oriental e na Ásia, a inexistência do Estado nacional, e sim de Estados multinacionais, heterogêneos, decorreria, segundo Stalin, de um feudalismo ainda não liquidado e de um capitalismo debilmente desenvolvido, em que as nações relegadas a segundo plano ainda não haviam se consolidado economicamente. Mas o capitalismo começou a se desenvolver também no Oriente e, no entanto, as nações postergadas já não constituíam estados nacionais independentes porque tropeçavam na resistência das classes dirigentes das nações dominantes. Nessa situação, nas nações dominadas, a burguesia nascente era o principal personagem em ação.
Dentro da Europa Oriental e da Ásia, qual era a situação da Rússia? Reproduzia a situação geral da região: o feudalismo ainda não havia acabado e o capitalismo estava debilmente desenvolvido. Então, segundo ele, nessa situação não se havia formado Estado-nação nas várias nações que compunham o antigo império russo. Havia a nação dominante, que era a Rússia, onde predominava a etnia russa, e havia várias nacionalidades dominadas, num total de quinze (no fundamental, eslavos). A insuficiência do desenvolvimento do capitalismo, segundo Stalin, havia limitado a possibilidade de formar estados nacionais em cada uma das áreas dominadas pela Rússia.
Basicamente por isso, não havia ocorrido na Rússia o mesmo que na Europa Ocidental. Mas, segundo ele, no momento em que ele estava escrevendo o texto citado, em 1913, a luta pela questão nacional havia se fortalecido, havia se desenvolvido não somente em toda a Rússia e nos países que ela dominava, mas em todo o Oriente. Por quê? Porque teria começado a desenvolver o capitalismo nessas regiões e, portanto, a demandar a formação de Estados nacionais.
Como dissemos antes, entender esse processo não era uma questão meramente teórica ou acadêmica; era uma resposta para a luta que estava sendo travada nesses países, no caso concreto, que integravam o império russo, pela formação da nação. O problema fundamental para a jovem burguesia desses países era o mercado, dar saída a suas mercadorias e sair vencedora na competição com a burguesia de outras nacionalidades. O mercado seria a primeira escola com que a burguesia aprende o nacionalismo. A burguesia da nação oprimida, acossada por todos os lados, põe-se em movimento e conclama a todo o povo a defender sua pátria.
E quem, normalmente, encabeça essas lutas nacionais na fase inicial para formar um Estado nacional e para desenvolver o capitalismo? A burguesia, claro. Ela assume a defesa da nação porque precisa dela, objetivamente, para desenvolver a indústria capitalista, para proteger e desenvolver o mercado interno. A bandeira do nacionalismo é a primeira assumida pela burguesia.
Segundo Stalin, na época a luta nacional era essencialmente burguesa, conveniente principalmente à burguesia. Isso não significava, no entanto, para ele, que o proletariado não devesse lutar contra a política de opressão às nacionalidades. Os operários, dizia ele, lutam contra todas as formas de opressão das nações e seu partido proclama o direito das nações à autodeterminação e o direito à separação por completo, mas não devem colocar-se sob a bandeira “nacional” da burguesia, ou seja, não devem se limitar a visão burguesa da questão nacional: autodeterminação nacional para desenvolver seus negócios. Mas devem participar dessa luta com sua própria visão da questão nacional – autodeterminação nacional para aprofundar a independência e a democratização e abrir caminho para a continuidade de sua luta em direção a uma sociedade fraterna, sem explorados e exploradores, sem oprimidos e opressores.
Para o dirigente soviético, em texto de 1924, o proletariado deve apoiar enérgica e decididamente o movimento de libertação nacional dos povos oprimidos e dependentes, mas deve encaminhá-lo a enfrentar e vencer o imperialismo e, nessa medida, a luta de libertação nacional é o único meio desses povos se libertarem da opressão e da exploração e é ao mesmo tempo a forma de estabelecer a unidade com os trabalhadores do mundo desenvolvido, à medida que têm um inimigo comum, inimigo de todos os povos: o imperialismo.
O problema nacional nos países de composição heterogênea, anterior à consolidação do imperialismo, tinha um aspecto bem específico: não ensejava uma luta mundial, uma vez que o inimigo era localizado – no caso da Rússia, o czarismo -, mas, mesmo assim, possibilitou a Lenin e Stalin fazer uma abordagem precisa e propor uma consigna que igualmente servia para a fase imperialista: autodeterminação nacional e direito à separação. Como se tratava de um inimigo comum a todos os trabalhadores e demais povos oprimidos do mundo, o imperialismo terminava por ensejar uma ampla frente contra ele.
- Autodeterminação é o direito dos povos à separação
O partido de Lenin e Stalin, o Partido Operário Socialdemocrata Russo (POSDR), que depois foi dividido em bolcheviques e mencheviques (maioria e minoria, revolucionários e reformistas, respectivamente), havia feito uma formulação no começo do século sobre como tratar politicamente essa questão nacional. E chegou à conclusão de que havia uma demanda fundamental que os marxistas deviam apoiar: o direito das nações à autodeterminação. E essa consigna passou a integrar o arsenal do partido.
A autodeterminação significa basicamente o direito à separação da nação que faz parte de um estado plurinacional maior, ou seja, um estado heterogêneo. É o direito a separar se assim achar o seu povo. Isso implica formar um Estado nacional, implica em formar uma nação independente. Mas, como alerta Stalin, o direito à separação não é obrigatório, ou seja, não significa que todas as nações subordinadas sejam “obrigadas” a se “separar”. Significa apenas que cada nação tem que ter a liberdade, a autodeterminação, para tomar a própria decisão sobre seu destino, inclusive se pretende ou não manter-se no antigo Estado heterogêneo.
Ao examinar o pensamento de Lenin acerca do problema nacional, destacamos os motivos pelos quais a revolução democrático-burguesa de fevereiro de 1917 não resolveu o duplo problema nacional russo – dependência da Rússia em relação ao imperialismo anglo-francês e a subordinação de 16 nações ao império russo. O duplo problema nacional russo só foi resolvido pela Revolução de Outubro, quando o governo bolchevique decidiu a favor do direito à separação – uma das primeiras medidas democrático-burguesas adotadas pelo governo. Mesmo havendo conquistado esse direito, praticamente todas as nações antes subordinadas ao império russo passaram a participar, ao lado da Rússia revolucionária, do processo de construção que levou à criação, em 1922, da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
- Stalin demonstra que a posição de autonomia cultural não se sustentava
Mas voltemos à polêmica com Otto Bauer. Como ele definia a nação só pela cultura, defendia como solução para as nacionalidades dominadas a autonomia cultural-nacional, mantendo, no entanto, a integridade estatal de seu país, a Áustria. Bauer propôs criar o Conselho Nacional da Áustria para garantir a autonomia cultural-nacional e propunha estender a autonomia cultural-nacional para outros Estados. Isso seria, na opinião dele, o protótipo para a futura sociedade socialista. Segundo Stalin, há diferença entre autonomia e autodeterminação. Autonomia implica manter a integridade do Estado composto de várias nacionalidades, enquanto autodeterminação dá o direito à separação. A autodeterminação dá a nação plenitude de direitos, enquanto a autonomia só dá direitos culturais.
À medida que Bauer definia a nação pela cultura, a solução proposta por ele não estaria em efetivar o direito à separação, não se tratava do direito à autodeterminação, do direito a separar e criar uma nova nação. Tratava-se de conquistar meramente a autonomia cultural-nacional; por conseguinte, não teria o próprio território nem sua base econômica, não constituiria uma economia independente; enfim, não teria uma nação. Imaginem se essa postura houvesse sido aplicada na relação do centro imperialista com as colônias e países dependentes? Poderiam entre si falar a própria língua, praticar a própria cultura, mas, sem território próprio e sem base econômica, continuariam a ser escravos da metrópole imperialista.
A questão nacional era resolvida com a autonomia cultural-nacional? Ora, se se está subordinado a outro estado nacional, por mais que formalmente se defina que vai ter autonomia cultural, não vai haver independência nas demais questões. Não tendo, por conseguinte, uma base econômico-territorial, como manter a superestrutura da autonomia cultural-nacional? Que autonomia cultural seria essa? Assim, a questão básica é a separação, o direito à autodeterminação. Para Stalin, a autonomia não garantia a autodeterminação das nações e nem sequer a própria autonomia estaria garantida.
Além de não resolver o próprio problema da Áustria com sua proposta de autonomia cultural, Otto Bauer, segundo Stalin, não poderia generalizar a situação da Áustria para outras nações da Europa Oriental, muito menos para a Rússia, porque havia diferenças substanciais. Qual era a situação da Áustria? Já havia desenvolvido o capitalismo, já havia feito a sua revolução burguesa no século XIX. O caso da Rússia seria diferente. Apesar da importância que a questão nacional, na visão de Stalin, tinha para a Rússia, era a questão agrária, dada a existência das sobrevivências feudais, que decidia o destino do progresso naquele país; a questão nacional seria uma questão subordinada, ainda que importante. Daí o caráter democrático-burguês da primeira etapa da revolução russa.
A solução da questão nacional dos povos dominados pela Rússia, nas condições em que estava desde a Revolução de 1905, dependia, conforme o dirigente revolucionário, da plena democratização daquele país. Dever-se-ia apoiar o direito à autodeterminação e a independência das nações dominadas pela Rússia. A mera autonomia cultural, ainda que importante, não resolveria a questão nacional dessas nações. Isso porque, sem uma base territorial, econômica, linguística, a própria autonomia cultural não se sustentaria.
- Questão nacional e democracia: classe operária deve apoiar luta pela libertação nacional
Sendo a questão nacional uma questão inicialmente burguesa, isso significa que devemos deixar que a burguesia cuide disso, pois seria um assunto dela, e a classe operaria deveria abdicar dessa luta? Ou relegá-la a um segundo plano? Não. Em texto posterior, O problema nacional, de 1924, e já com clareza da nova realidade mundial imposta pelo imperialismo, Stalin deixa bem claro sua posição. Para ele, antes, no começo do século, no seio da II Internacional, o princípio da autodeterminação se limitava à autonomia cultural.
Mas o leninismo teria interpretado esse princípio como o direito à separação e defendeu que o proletariado de todos os países deve apoiar as nações oprimidas na luta contra o imperialismo. A questão nacional ficou mais clara para Lenin e também para Stalin depois que foi conhecida a natureza do sistema que nascera das entranhas do capitalismo concorrencial, o imperialismo. O célebre livro de Lenin Imperialismo, etapa superior do capitalismo foi um marco nesse processo de desvendar os segredos dessa nova etapa do capitalismo.
Nessa nova realidade, o problema nacional, para Stalin, seria parte do problema geral da revolução proletária. No movimento de libertação nacional dos países oprimidos, existiriam possibilidades revolucionárias e seria possível utilizá-las para enfrentar o inimigo comum, o imperialismo. Daí a necessidade de o proletariado apoiar o movimento de libertação nacional dos povos oprimidos e dependentes. A ampla maioria dos movimentos nacionais teria caráter revolucionário, mesmo que não houvesse elementos proletários.
Assim, na luta pela independência, a luta contra o imperialismo é fundamental na luta dos povos. Em situações como essa, a classe operária e demais forças populares devem, na opinião de Stalin, apoiar a luta nacional, a luta contra o domínio imperialista do seu país. Portanto, é uma luta que surge como uma luta burguesa e a burguesia conclama o povo a travá-la propugnando a defesa da paz e a unidade nacional, mas quer travá-la a seu modo a fim de consolidar o caminho dela, para consolidar o capitalismo.
Enquanto isso, a classe operária deve encetar essa luta porque ela favorece a luta geral pelo seu objetivo final, que é uma sociedade livre, soberana, independente, profundamente democrática e que os frutos do trabalho revertam para os seus reais produtores, a classe operária e os demais trabalhadores. Porque, ao contar com um Estado nacional e, portanto, com a democracia (que só é possível quando as decisões fundamentais sejam tomadas pelo próprio povo do país; do contrário, não passaria de um simulacro de democracia), teria um poderoso instrumento para poder realizar a luta pelo poder para seguir avançando.
Reforçando essa importância da democracia para a luta dos trabalhadores, Friedrich Engels, em um dos seus últimos textos, de 1895, já havia demonstrado que o melhor caminho para o Partido Socialdemocrata da Alemanha (SPD), o então partido da classe operária, e a própria classe chegarem ao poder seria por meio do alargamento da democracia, pois os revolucionários prosperam muito melhor com os meios legais do que com os ilegais. E, à medida que isso possibilita o crescimento da oposição ao sistema, como ocorreu na Alemanha à época, serão os próprios “partidos da ordem”, das classes dominantes, a romper com a própria legalidade.
No caso da Alemanha, diz ele, enquanto os “partidos da ordem” violavam as leis, os socialdemocratas de então as respeitavam. À medida que essas forças aumentavam seu peso no Bundestag, a tendência de violar as leis e a Constituição e implantar uma ditadura aberta aumentava nos “partidos da ordem”. E, assim, ao tentarem efetivar essa tendência, a socialdemocracia ficaria livre para fazer o que bem entendesse.
A principal lição que se deve reter é que a existência da democracia é fundamental para o avanço da luta dos trabalhadores e demais setores do povo. Na Rússia de fevereiro a outubro de 1917, por exemplo, foi o extraordinário avanço da democracia baseada na derrubada czar e na construção dos sovietes que criou as condições para os bolcheviques poderem falar, mobilizar e organizar as amplas massas, particularmente nos sovietes, aumentando significativamente seu prestígio no meio do povo.
Hoje, vemos que cada vez mais as oligarquias financeiras do imperialismo utilizam forças fascistas para torpedear e, se possível, destruir a democracia. A democracia burguesa já não serve ao núcleo dominante da sociedade burguesa atual, a oligarquia financeira. A luta pela democracia assume assim caráter estratégico, não no sentido dado pelos revisionistas de todos os tempos, ou seja, de que se vai alargando a democracia até chegar ao socialismo.
Como disse Engels, haverá o momento de ruptura não com a democracia, que deve ser preservada, mas com o sistema econômico, social e político que sustenta as democracia de fachada. Essa ruptura, como ele demonstrou, seria provocada pelo rompimento com a legalidade por parte das classes dominantes. Para isso, no nosso caso, temos que resolver bem a questão nacional (rompendo com a dependência) para assim podermos alargar a democracia e nos forjar para ir rompendo os outros obstáculos (particularmente a exploração do ser humano por outro ser humano) até incorporar as amplas massas do povo na decisão do seu destino e na distribuição dos frutos do seu trabalho, inicialmente de acordo com sua contribuição e, mais adiante, com sua necessidade. Esse deve ser nosso desiderato e, para atingi-lo, o decisivo é conscientizar, organizar e mobilizar nosso povo para ser o dono de seu próprio destino.
Stalin, citando Lenin, afirma que o movimento nacional dos países oprimidos não se devia valorar do ponto de vista da democracia formal, mas do ponto de vista da luta contra o imperialismo. Então, se um determinado país tem uma democracia formal, mas está na luta ao lado do imperialismo, constitui uma força contrarrevolucionária. Mas se, mesmo não tendo uma democracia formal, trava a luta contra o imperialismo, pela independência, está participando do processo revolucionário mundial. A independência, esta sim, possibilita avançar na democracia.
Assim, para o dirigente bolchevique, a luta que o emir do Afeganistão mantinha na época pela sua independência era objetivamente revolucionária, a despeito de suas ideias monárquicas. Dessa colocação dele, pode-se concluir o seguinte: estava mais de acordo com o processo revolucionário mundial o emir do Afeganistão do que os socialdemocratas europeus, porque, segundo ele, seus partidos votaram a favor dos créditos de guerra para seus países entrarem na guerra imperialista, enquanto o emir estava lutando de arma na mão contra o imperialismo para garantir a independência do seu país.
Tal como Engels, Stalin ressalta a importância da democracia na luta dos trabalhadores e dos povos oprimidos contra o imperialismo, luta que poderia reunir desde a classe operária e o campesinato, passando pelos setores médios (com destaque para pequena burguesia democrática) até setores da burguesia não-monopolista que dependam de um Estado-nação para desenvolver e proteger o mercado interno. Dentro dessa realidade, cada povo escolhe seu próprio caminho.
É óbvio que, numa situação como essa de opressão e espoliação imperialista mundial, o emir, em confronto com o imperialismo, contribuía para isolá-lo, favorecendo o avanço da democracia e da revolução no mundo, enquanto os partidos que preservaram o nome de socialdemocratas na Europa, ao apoiarem a guerra interimperialista, fortaleceram aqueles que, havendo formado os monopólios e o capital financeiro, foram os principais beneficiários da guerra e seus despojos. E, como sabemos, foi essa oligarquia financeira que nos anos seguintes à guerra alimentou, fomentou, financiou, apoiou politicamente as várias manifestações do nazi-fascismo de Hitler, Mussolini et caterva. E agora volta a fazer o mesmo, em conluio cada vez mais aberto com as tais das big techs.
A questão nacional e a democrática estão imbricadas na luta anti-imperialista. Como dizia Claudio Campos, a democracia é uma questão fundamental que sempre está presente; acreditamos que pelo menos desde a revolução inglesa do século XVII. No entanto, em cada momento, há um obstáculo diferente bloqueando seu avanço: da transição do feudalismo ao capitalismo, eram as relações feudais; no caso dos países capitalistas desenvolvidos, são as relações de produção capitalistas, burguesas; nos países dependentes, coloniais e semicolônias, são as relações capitalistas dependentes e coloniais.
Neste último caso, o que trava não só o desenvolvimento das forças produtivas, mas o avanço da democracia é essa relação de subordinação ao imperialismo. Ou seja, a questão nacional está no cerne da questão democrática. Se não se resolve a questão nacional, a democracia não passará de um simulacro, pois seria comandada desde fora, ainda que usando subordinados internos ou pressionando governos “rebeldes”. Porque, enquanto a questão nacional não for resolvida, seguiremos dependendo do imperialismo, o qual, por isso mesmo, manda e desmanda em nosso país, conspurcando a própria etimologia da palavra democracia: governo do povo.
- Stalin: comunistas e demais democratas devem recolher e conduzir adiante a bandeira da independência nacional
As colônias, semicolônias e os países dependentes, oprimidos e explorados pelo capital financeiro dos países imperialistas, constituiriam uma formidável reserva e mais importante fonte de força para o imperialismo. Por isso, a luta revolucionária dos povos desses países contra o imperialismo seria o único caminho por meio do qual poderiam emancipar-se da opressão e da exploração. Segundo Stalin, é dever dos revolucionários sustentar, defender e levar até o domínio da política a palavra de ordem do direito dos povos dominados a se separarem do Estado dominante e de existirem como Estados independentes.
Há uma frase célebre de Stalin no seu último discurso público, feito por ocasião do 19º Congresso do PCUS, realizado em 1952:
“Antes, a burguesia julgava-se líder das nações cujos direitos e independência defendia e colocava ‘acima de tudo’. Hoje, não existe um vestígio sequer desse ‘princípio nacional’. A burguesia vende por dólares o direito à independência das nações. A bandeira da independência e da soberania nacionais foi jogada fora. Não há dúvida que cabe a vocês, representantes dos partidos comunistas e democráticos, recolhê-la e conduzi-la adiante, se vocês querem figurar como os patriotas de seus países e tornar-se a força dirigente das nações. Não há mais ninguém que possa fazê-lo”.
O líder soviético fez esse discurso no contexto da “guerra fria”, em que as burguesias dos países desenvolvidos, particularmente as da Europa, depois de haverem defendido seus interesses econômicos e nacionais durante a II Guerra contra a burguesia imperialista do Eixo, haviam se submetido inteiramente à hegemonia dos Estados Unidos. Essa situação, a despeito de alguns laivos de rebeldia, vem se exacerbando com a esmagada submissão da Europa ao imperialismo estadunidense decadente, manifestada, mas não só, na guerra dos EUA/OTAN contra a Rússia, usando a Ucrânia como bucha de canhão.
À época de Stalin, realizava-se na África e na Ásia o mais amplo processo de descolonização da história, simultaneamente com a industrialização sob controle nacional em vários países da América Latina, em cujos processos as respectivas burguesias nacionais estavam cumprindo um papel destacado.
Certamente, quando Stalin diz que “a bandeira da independência e da soberania nacionais foi jogada fora” pela burguesia, não estava, certamente, se referindo a essas burguesias nacionais dos países dependentes ou semicoloniais, cujo desenvolvimento dependia da ruptura com o domínio imperialista, mas às burguesias dos países desenvolvidos e também a determinados setores burgueses de países dependentes e semicoloniais, como os que se fizeram representar na fase tardia do Kuomintang, na China, o qual, depois de cerrar fileiras ao lado do Partido Comunista para expulsar o invasor japonês, rompeu com seu tradicional nacionalismo e se aliou ao imperialismo estadunidense contra as forças populares lideradas por Mao Tsé-tung (este designava a esses setores burgueses de burguesia compradora), deflagrando uma prolongada guerra civil. No entanto, outros setores burgueses, que Mao designava de burguesia nacional, mantiveram a aliança com o PCCh, mesmo depois da revolução de 1949.
Outra lição importante que se pode extrair desse discurso de Stalin é que a bandeira da independência e da soberania nacionais, que na fase anterior de construção dos Estados nacionais atendia mais aos interesses da burguesia nascente, passou, na época contemporânea, época da luta anti-imperialista de pós-guerra, a interessar principalmente aos trabalhadores e demais setores do povo e por isso deve ser conduzida por eles (liderados pelos “partidos comunistas e democráticos”).
Também se pode concluir que, na sua visão, a bandeira da independência e da soberania nacionais, havendo passado para as mãos do povo, independeria de a burguesia participar ou não do processo. Diríamos: se a burguesia não-monopolista quiser participar, ótimo, porque ampliaria a frente contra a dominação imperialista, mas, se não participar, isso não significa que devamos abrir mão dessa bandeira. Devemos, ao contrário, construir a mais ampla frente em defesa dessa bandeira, ou seja, da Pátria. Os que ficarem de fora terão que explicar porque não estão defendendo a Pátria.
Há quem propale que, se essa bandeira é uma bandeira burguesa e se essa classe abrir mão dela, por que haveríamos de hasteá-la? Ora, de um lado porque devemos procurar unir os mais amplos setores da população, incluindo setores não-monopolistas da burguesia, na luta para isolar e derrotar os tentáculos do imperialismo em nosso país, principalmente agora que volta a usar as turbas fascistas para manter seu domínio; de outro, não há força político-ideológica alguma que tenha compromisso mais profundo do que os comunistas com a defesa da Pátria.
Sabemos que os fascistas – a exemplo dos bolsonaristas de carteirinha – fazem a maior apologia do patriotismo, ou seja, dizem-se patriotas. Como dizer-se patriota se ao mesmo tempo, quando estão no governo, como foi em seu governo, adotam a política entreguista mais desbragada? Patriota de araque, isso sim. Os comunistas podem e devem ser os maiores defensores da Pátria, os verdadeiros patriotas, obviamente ao lado de outras forças nacionais, democráticas e populares.
Nilson Araújo de Souza é pesquisador do GP 1: Desenvolvimento nacional e Socialismo – Economista, Mestre em Economia pela UFRGS, Doutor em Economia pela Universidad Nacional Autónoma de Mexico (UNAM), com pós-Doutorado em Economia pela USP; professor aposentado pela UFMS, professor visitante voluntário do Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina da UNILA; membro do Comitê Central e da Comissão Política Nacional do PCdoB, Diretor da Fundação Maurício Grabois e do Instituto Claudio Campos, presidente do Sindicato dos Escritores no Estado de São Paulo; autor de vários livros, antigos e ensaios sobre economia brasileira, latino-americana e mundial, destacando-se “Economia brasileira contemporânea – de Getúlio a Lula” e “Economia internacional contemporânea – da depressão de 1929 ao colapso financeiro de 2008”, além de haver organizado vários livros com diversos autores.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.