Promover o trabalho decente é uma estratégia adotada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), a partir de 1999, e significa ter como meta que o trabalho seja adequadamente remunerado, exercido com liberdade, equidade, segurança e capaz de garantir uma vida digna.
A busca pela melhoria das condições de trabalho e pela superação dos obstáculos que impedem a configuração de um ambiente propício ao trabalho decente, requer a definição de objetivos claros a serem alcançadas. A própria seleção das deficiências que devem estar prioritariamente na mira das políticas públicas visando à elevação da qualidade do trabalho, implica em realizar um diagnóstico do país, região ou da localidade onde se pretende desenvolver a política.
Há muitos aspectos relacionados à condição do trabalhador e da trabalhadora que podem ser objeto de políticas públicas, como as dificuldades de acesso ao mercado de trabalho associadas à deficiência física, à saúde e segurança no trabalho, ao critério raça/cor, ao gênero, à juventude, entre outras. Contudo, entre os déficits a serem superados, dois deles constituem consenso entre os países membros da OIT, com o objetivo urgente de sua erradicação em todo o globo terrestre: o trabalho infantil e o trabalho escravo.
Neste texto, são tratados especificamente os esforços pela erradicação do trabalho escravo no Brasil, em linha com normas internacionais.
Fundada em 1919, a OIT é uma organização composta pela representação de governos, empregados e empregadores de 187 Estados-membros, sendo constituída à época como uma agência da Liga das Nações, imediatamente após a assinatura do Tratado de Versalhes, que marcou o fim da I Guerra Mundial.
As Convenções aprovadas em Conferências Anuais da OIT, tornam-se vigentes em cada país após a sua ratificação pelo respectivo Congresso Nacional. Assim, a Convenção nº 29 da OIT concernente a Trabalho Forçado ou Obrigatório, de 28 de junho de 1930, foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 24, de 29 de maio de 1956, e promulgada em 25 de junho de 1957. Uma alteração do Código Penal brasileiro, em 2003, definiu as penalidades àquele que “reduzir alguém à condição análoga à de escravo”.
São quase 70 anos de vigência dessa norma original, que sofreu aprimoramentos ao longo do tempo, assim como uma gradual evolução da política pública, a exemplo da criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), da elaboração do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, da instalação da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), e do Cadastro de Empregadores Infratores, a chamada “Lista Suja do Trabalho Escravo”. A estas iniciativas nacionais sucederam Planos e Comissões em cada estado, assim como, em diversos municípios. Os planos são revisados periodicamente, e as informações sistematizadas com a produção de estatísticas e relatórios.
Ações preventivas de caráter educativo e de conscientização da sociedade sobre o significado do conceito político e jurídico de trabalho análogo ao trabalho escravo são muito importantes. Da mesma forma, é de suma importância um conjunto de políticas voltadas a assegurar condições de vida digna – educação, saúde, habitação etc. – e, principalmente, oportunidades de trabalho, emprego e renda. Essa necessidade da conscientização, acima referida, decorre da constatação de que a prática de aliciamento de trabalhadores para o trabalho escravo nem sempre é vista pela sociedade como danosa.
Ao contrário, por vezes, é considerada uma oportunidade de trabalho festejada como positiva, na perspectiva de uma renda que pode ajudar o trabalhador, sua família e mesmo a comunidade atingida a enfrentar outras deficiências sociais, minimizando os efeitos negativos.
No setor empresarial, sempre surgiram vozes contrárias à caracterização das práticas associadas ao trabalho escravo, com o intuito de limitar a ação fiscalizatória, e para impedir as punições decorrentes do flagrante, que podem inclusive levar à reclusão. A Tragédia de Unaí, em 2004, quando quatro servidores do Ministério do Trabalho e Emprego foram assassinados durante fiscalização de denúncia de trabalho escravo a mando de fazendeiros, em Minas Gerais, é um marco no processo de erradicação.
Após o golpe jurídico-institucional de 2016, várias medidas foram adotadas para restringir a ação fiscalizadora dos Auditores do Trabalho, resultando na redução do número de resgates de trabalhadores em condição análoga ao trabalho escravo. Parte do conluio com o neoliberalismo, o governo e congresso aprovaram medidas retrógradas, a exemplo da Reforma Trabalhista, do impedimento da publicação da Lista Suja do Trabalho Escravo, da aplicação do conceito de trabalho escravo apenas quando ocorresse a limitação do “direito de ir e vir”, da restrição à atuação dos sindicatos, do incentivo a contratos com menos direitos trabalhistas, agravando a condição de vida dos trabalhadores.
A diretriz de erradicar esta forma degradante de trabalho é vista pelos neoliberais como um obstáculo à acumulação de capital. Esta visão é compatível com o mecanismo pelo qual o capital, ao longo do tempo, se valeu da exploração desmesurada da força de trabalho e da natureza, à custa da exaustão dos recursos e de vidas humanas.
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Ao capital interessa minimizar ao extremo os seus custos com a atividade produtiva por meio de um mecanismo ilícito, materializado no descumprimento da legislação trabalhista, não garantindo os benefícios a que os trabalhadores têm direito. Esse descumprimento se manifesta desde a não realização de um contrato de trabalho formal até ao não pagamento de direitos oriundos do contrato. Em outra vertente, os aliciadores e os contratantes não asseguram total ou, parcialmente, as condições de trabalho apropriadas, expõem os trabalhadores a jornadas longas e exaustivas ou, em casos extremos, subjuga-os pela força e pela alegação de dívidas impagáveis.
Por outro lado, o desemprego, a falta de renda, a miséria, a deficiência na organização dos trabalhadores, ao não produzir suficientes conscientização e resistência a essas práticas de superexploração, os impulsionam a aceitar uma situação que enxergam como oportunidade de fugir da fome e, supostamente, oferecer condições dignas para si e para seus familiares. Em muitos casos, os trabalhadores desconhecem a real situação que irão enfrentar, aventurando-se diante da oferta de uma remuneração que a eles parece distante de obter na região em que vivem.
Noutros casos, os trabalhadores já enfrentaram a mesma condição em épocas passadas, mas ainda assim, julgam ser a melhor alternativa que possuem. Há casos de trabalhadores que foram resgatados pela fiscalização mais de uma vez, entretanto, retornam à mesma condição de exploração. Isto ocorre pela normalização das condições degradantes. Ou seja, nas regiões onde vivem, há poucas ou inexistentes oportunidades de trabalho, visto que o trabalho formal com carteira assinada é exceção e os direitos trabalhistas como férias, décimo terceiro, previdência social, etc, são garantias e benefícios pouco ofertados.
Desse modo, a fragilidade do mercado de trabalho como um todo está no cerne do problema. Essa questão nos leva a um debate mais amplo, que deve considerar outras dimensões do trabalho e das políticas sociais. A primeira delas é o enfrentamento das diversas dimensões do problema, não sendo possível obter resultados sustentáveis, tratando, isoladamente, do problema do trabalho escravo. Neste sentido, é preciso considerar a oferta de serviços públicos que favoreçam a redução dos custos das famílias, a exemplo do acesso fácil a postos de saúde, medicamentos, creches, escolas, transporte escolar, materiais escolares, entre outros.
Saúde, educação e moradia são demandas que, uma vez atendidas, contribuem para a ampliação da renda disponível das famílias, na medida que os recursos podem ser utilizados para atender outras necessidades igualmente relevantes.
Periodicamente, graves ocorrências, como os resgates na região das vinícolas gaúchas, dos trabalhadores bolivianos no setor de confecção na cidade de São Paulo, no plantio de cana em municípios paulistas, em cruzeiro turístico aportado em Salvador, de trabalhadores chineses nas obras civis da BYD, em Camaçari, de trabalhadores haitianos na mineração em Minas Gerais, chamam a atenção para este problema, que tende a piorar à medida que cresce a precarização do trabalho.
A complexidade da situação exige persistir na mobilização da sociedade, desde os sindicatos, as associações, o movimento estudantil, dos partidos políticos, das instituições democráticas em geral, na luta por direitos sociais. É fundamental, ainda, apoiar o esforço de fiscalização do Ministério do Trabalho e às iniciativas o Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho, pois não se pode esperar que as condições que produzem esta mazela se alterem, sem que o Estado utilize os meios necessários para impedir que este crime seja praticado reiteradamente.
Nilton Vasconcelos é doutor em Administração Pública, ex-secretário do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do Governo do Estado da Bahia. É membro do Grupo de Pesquisa sobre Estado e Instituições da Fundação Maurício Grabois.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.