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    Antirracismo

    Identitarismo? Cinco perspectivas sobre a luta por reconhecimento

    As identidades tornaram-se um dos temas centrais da política contemporânea. Artigo examina correntes – do neoliberalismo reacionário à esquerda marxista – e propõe caminhos para superar divisões no campo progressista.

    POR: Theófilo Rodriugues

    Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

    Não há muitas dúvidas de que a questão da luta por reconhecimento de identidades como gênero, raça e sexualidade tem sido uma das mais polêmicas nesse início de século XXI. As formas de interpretá-la, no entanto, são as mais diversas. Correndo o risco de parecer demasiadamente formalista, gostaria de sugerir a existência de ao menos cinco grandes interpretações sobre essa questão das identidades no mundo contemporâneo. Duas delas estão posicionadas na direita do espectro político: o neoliberalismo progressista e o neoliberalismo reacionário. As outras três estão à esquerda: a esquerda liberal, a esquerda decolonial e a esquerda marxista. Vejamos cada uma delas:

    Esquerda liberal

    Uma primeira corrente é aquela que ignora as questões das identidades, mas que valoriza a redistribuição econômica. Alguns diriam se tratar de uma esquerda vulgar, economicista ou negacionista, mas prefiro adotar o termo esquerda liberal, que é como os seus próprios representantes se definem. Essa esquerda liberal argumenta que a questão das identidades atrapalha a política da esquerda, que deveria priorizar unicamente a questão econômica. Essa esquerda é crítica das identidades, mas é também crítica da perspectiva de classe do marxismo. Na segunda metade do século 20 essa esquerda liberal esteva relacionada com a socialdemocracia.

    No cenário mais recente, os principais nomes reprodutores dessa ideia vêm dos Estados Unidos. A filósofa Susan Neiman é um nome que representa bem esse tipo de pensamento político. Neiman sempre rejeitou o marxismo pois, para ela, “Marx era um reducionista de classe”. Diz Neiman:

    “No século XIX, isso fazia sentido, mas é uma maneira ridícula de dividir as pessoas no século XXI. As pessoas não fazem as coisas apenas com base em seus interesses de classe, para dizer o mínimo. Marx foi provado errado por dois lados: pelas milhões de pessoas de classe média que apoiaram o socialismo, não por causa de seus interesses de classe, mas por um senso de justiça; e pelas milhões de pessoas da classe trabalhadora que continuaram a votar em interesses reacionários”[1].

    Entre outros nomes dessa esquerda liberal do século XXI estão os cientistas políticos Mark Lilla e Yascha Mounk. Contra o que chama de “liberalismo identitário”, Mark Lilla defende aquilo que foi o liberalismo de Roosevelt nos EUA, mais próximo dos sindicatos. Lilla corrobora a crítica ao marxismo feita por Neiman. Diz Lilla:

    “As classes sociais são cruciais, porque a distância entre elas é cada vez maior. Mas as classes sociais pós-globalização são outras, têm mais a ver com educação do que com a propriedade dos meios de produção. […] Por isso precisamos de uma visão política que vá além das classes sociais e tenha real impacto nas pessoas. A esquerda não adquiriu um novo vocabulário desde o colapso do marxismo. O foco na cidadania é mais prático, menos idealista”[2].

    Neoliberalismo reacionário

    Historicamente, o primeiro grande contraponto à hegemonia da esquerda liberal no Ocidente partiu do neoliberalismo reacionário de Margaret Thatcher na Inglaterra e de Ronald Reagan nos Estados Unidos, na década de 1980. Por um lado, esse campo era informado pela agenda do Estado mínimo formulada por Milton Friedman e por Friedrich Hayek e, por outro lado, por um tipo bem próprio de identidade cultural, o conservadorismo cristão.

    Para esse neoliberalismo reacionário, ações afirmativas seriam um retrocesso democrático. Donald Trump nos Estados Unidos, Milei na Argentina e Jair Bolsonaro no Brasil expressam bem esse tipo de projeto político nos tempos atuais. Importante que se diga, não é que o neoliberalismo reacionário rejeite a noção de identidades; o que ele rejeita são algumas identidades como as de gênero, raça e sexualidade. Mas ele advoga em favor de outras identidades, como o nacionalismo, o xenofobismo etc.

    Neoliberalismo progressista

    Na teoria política contemporânea surgiu nos últimos anos um termo bem preciso para definir governos que aliam, por um lado, a economia política do neoliberalismo e, de outro, políticas culturais identitárias, ou seja, políticas de valorização de determinadas identidades sem conexão com as questões classistas ou distributivas: trata-se do “neoliberalismo progressista”. De certo modo, o termo neoliberalismo progressista formulado pela cientista política americana Nancy Fraser é um sinônimo para aquilo que, na década de 1990, o sociólogo britânico Anthony Giddens conceituou como a “terceira via”. A diferença é que Fraser descreve pela chave negativa aquilo que Giddens anunciava em uma chave positiva.

    Na prática, a terceira via ou o neoliberalismo progressista são expressões utilizadas para categorizar governos como os de Clinton nos Estados Unidos, Blair na Inglaterra, Schroder na Alemanha, Macron em França ou Fernando Henrique Cardoso no Brasil. Todos esses governos aplicaram o receituário neoliberal na economia ao mesmo tempo em que buscavam narrativas de valorização de minorias como os negros ou as mulheres. Toni Morrison, insuspeita escritora defensora do movimento negro nos Estados Unidos, considerava Bill Clinton o presidente mais negro da história do país. Mais recentemente, Hillary Clinton e Kamala Harris foram identificadas nessa categoria.

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    No Brasil, FHC nomeou Ellen Gracie, a primeira mulher ministra do Supremo Tribunal Federal ao mesmo tempo em que promoveu a privatização de grandes setores do Estado. Entre os nomes mais recentes da política brasileira, a ministra do Planejamento Simone Tebet parece ser um bom exemplo do que significa o neoliberalismo progressista. Tebet se apresenta como “liberal na economia”, mas também se diz feminista: “Ser feminista é defender os direitos das mulheres. É defender igualdade de salários entre homens e mulheres, é combater a violência contra a mulher. O feminismo, no Brasil, precisa ser entendido como uma pauta de todas as mulheres”, diz Tebet.

    Esquerda decolonial

    No campo progressista, o extremo oposto da esquerda liberal é provavelmente a esquerda decolonial. Essa esquerda decolonial nasce em fins da década de 1980 a partir da obra do sociólogo peruano Aníbal Quijano. A virada de chave da perspectiva decolonial é a compreensão de que o “sistema mundo moderno” se constituiu a partir da “criação” dessa entidade chamada América no século XVI. O que possibilita a modernidade e o capitalismo é a colonialidade do poder exercida pela Europa sobre a América.

    A esquerda decolonial é profundamente crítica do eurocentrismo, inclusive do eurocentrismo marxista, preferindo dialogar mais com o marxismo de Mariátegui.

    Do ponto de vista econômico, ela é desconfiada das ideias de desenvolvimento propostas pela esquerda liberal, por acreditar que esse desenvolvimentismo promove o consumismo e ignora a relação do homem com a natureza e mesmo a relação entre os homens nas comunidades periféricas. Por essa razão, essa esquerda decolonial prefere o projeto político do “Bem Viver”, como descrito por Alberto Acosta[3].

    Do ponto de vista social, trata-se de uma valorização das questões de raça e gênero para a compreensão da opressão na América Latina. As cientistas sociais argentinas María Lugones e Rita Segato estão entre as principais porta vozes desse projeto que interpretação das múltiplas opressões de gênero e raça da colonialidade do poder na América.

    Esquerda marxista

    O reconhecimento da identidade sempre esteve presente entre os marxistas, por sinal, desde sua origem. Inspirado em Hegel, Marx, na Miséria da Filosofia de 1847, já apontava para a diferença entre a “classe em si” e a “classe para si”, ou seja, a distinção entre a condição de classe e a consciência de classe. A organização e a luta seriam as responsáveis pela transformação qualitativa da identidade de classe[4].

    Mais ou menos ao mesmo tempo que Marx, mas caminhando por outro caminho, Engels também percebeu a importância da questão da identidade. Ao investigar a situação da classe trabalhadora na Inglaterra, o revolucionário alemão percebeu que havia ainda uma outra identidade, para além da classe, que marcava os que mais sofriam os impactos socioambientais do capitalismo no país. Eram, em sua maioria, os imigrantes irlandeses que formavam a parcela mais pauperizada dos trabalhadores na Inglaterra. Sinal de que o fundador do marxismo já sugeria lá atrás o papel relevante das identidades na compreensão da exploração[5].

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    O mesmo Engels, em seu clássico A origem da família, da propriedade privada e do Estado, sustentou que “o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre homem e mulher no casamento monogâmico, e a primeira opressão de classe coincide com a do sexo feminino pelo sexo masculino”[6].

    Pela perspectiva do gênero, o mesmo poderia ser encontrado nas obras de autoras como Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin e Alexandra Kollontai. Diferentemente do feminismo liberal, o feminismo marxista dessas autoras é aquele que compreende a luta das mulheres inserida na luta de classes. Luxemburgo, por exemplo, exige que a mulher proletária “vá à luta pela libertação do gênero das mulheres e do gênero humano do horror da dominação do capital”[7]. De certo modo, recuperando a formulação do jovem Marx, o feminismo marxista é aquele que propõe não apenas a emancipação política, mas também a emancipação humana[8].

    Como bem registra a socióloga Mary Garcia Castro, uma das principais representantes desse feminismo marxista no Brasil, “um feminismo emancipacionista aposta na importância de um partido político de corte marxista-leninista, mas que seja classista, anti-patriarcal, inclusive no que concerne às relações sociossexuais no partido e questões postas pelos movimentos LGBTQ+, e consciente da importância estrutural da raça”[9].

    O marxista italiano Domenico Losurdo percebeu bem essa questão quando observou que em Marx não existe apenas uma luta de classes, mas sim lutas de classes no plural. Isso significa dizer que “o plural não quer denotar a repetição do idêntico, o contínuo recorrer à mesma fórmula da mesma luta de classes; não, o plural remete à multiplicidade das configurações que a luta de classes pode assumir”[10].

    Nos tempos atuais, essa esquerda marxista – uma parte dela prefere ser identificada como pós-marxista ou pós-socialista para se diferenciar do velho marxismo que supostamente daria pouco valor ao tema das identidades, mas isso não altera o argumento – é aquela que promove de forma ainda mais clara a síntese entre a luta por reconhecimento cultural e a luta por redistribuição econômica. Essa esquerda marxista compreende que a sociedade capitalista é estruturada por classes sociais e que a dinâmica entre essas classes é baseada na exploração. Ao mesmo tempo, reconhece que outras dimensões da exploração como gênero e raça também precisam ser combatidas.

    Certamente há nuances entre os muitos autores que se encontram nessa categoria, mas entre eles poderíamos mencionar o filho de paquistaneses que nasceu nos EUA Asad Haider, as americanas Angela Davis e Nancy Fraser, a belga Chantal Mouffe, as italianas Cinzia Arruzza e Silvia Federici e a indiana Tithi Bhattacharya.

    Caminhos para uma síntese de esquerda do século XXI

    Importante advertir que toda classificação privilegia tendências e muitos dos autores mencionados podem transitar em diferentes categorias.

    Como se vê, o leque de interpretações sobre a questão do reconhecimento das identidades é bem amplo. Talvez seja justamente essa diversidade a causa de tanta confusão na esfera pública. A solução para o seu entendimento não passa pela invisibilização ou rejeição discriminatória de qualquer uma delas, mas sim pela visibilidade dos interesses em disputa.

    Para o campo da esquerda, mais importante do que implodir pontes entre as três diferentes interpretações de mundo mencionadas, é construir diálogos e sínteses entre elas. Afinal de contas, sectarismo e dogmatismo nunca fizeram revolução.

    Notas:

    [1] https://quillette.com/2023/05/28/an-interview-with-susan-neiman/

    [2] https://oglobo.globo.com/epoca/mark-lilla-esquerda-gosta-de-resistir-nao-de-governar-porque-tem-uma-visao-teatral-da-politica-23272249

    [3] ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária e Elefante, 2016.

    [4] MARX, Karl. Miséria da Filosofia. São Paulo: Boitempo, 2017.

    [5] ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008.

    [6] ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 68.

    [7] LUXEMBURGO, Rosa. A proletária. In: LUXEMBURGO, Rosa. Textos escolhidos. Volume 1. São Paulo: Ed. Unesp, 2018, p. 496.

    [8] MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.

    [9] CASTRO, Mary Garcia. Desafios ao marxismo e ao feminismo emancipacionista em tempos de barbárie neoliberal. In: MARTUSCELLI, Danilo Enrico (org.) Os desafios do feminismo marxista na atualidade. Chapecó: Coleção marxismo21, 2020. Disponível em: https://soscorpo.org/wp-content/uploads/Os-desafios-do-feminismo-marxista-na-atualidade-2020-marxismo21-2.pdf

    [10] LOSURDO, Domenico. A luta de classes: uma história política e filosófica. São Paulo: Boitempo, 2015.

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    Theófilo Rodrigues é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UCAM. Coordenador do Grupo de Pesquisa Cultura & Sociedade da Fundação Maurício Grabois. 

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.

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