Frantz Omar Fanon morreu muito jovem, aos 36 anos, em 6 de dezembro de 1961.
Sua vida breve e atuação como médico psiquiatra num país “periférico”, longe dos grandes centros europeus e americanos, torna surpreendente o atual “fanonismo” em alguns círculos intelectuais.
Como psiquiatra, devo dizer que sua obra estritamente médica ou psiquiátrica clínica não mereceria destaque, porém, suas ideias sobre o que se convencionou chamar de “psicopatologia ou psicologia da colonização” são realmente fundamentais e originais.
Para além de sua atuação médica, Fanon era um profundo pensador sobre as questões coloniais e pós-coloniais, sociologia, marxismo, panafricanismo, política e, em meio ao seu trabalho como médico, foi membro da Frente de Libertação Nacional da Argélia em sua guerra de independência contra a França.
Fanon nasceu em 20 de julho de 1925, em Fort-de-France, na ilha antilhana da Martinica, em uma família de classe média. A história da Martinica, ainda hoje um departamento ultramarino insular francês, colonizada pela França em 1635, tem aspectos dramáticos que influenciariam no pensamento de Fanon, como a cruel deportação dos povos indígenas em 1660 e o tráfico de escravos africanos para trabalhar nas plantações de cana de açúcar, café, cacau e na produção de rum.
Muito embora na música carnavalesca de 1949, a “Chiquita Bacana”, fosse existencialista e tivesse vindo da Martinica, para contrariar o Braguinha, banana-nanica não é uma cultura relevante na ilha.
Desde cedo, Fanon teve acesso à educação formal, sendo educado em francês e na cultura francesa e logo percebendo a diferença entre sua formação e a da população pobre, sem aprendizado do francês e falando crioulo. A língua como um forte divisor de classes social será tema constante em sua obra.
Em 14 de junho de 1940 a Alemanha invadiu a França. Em 1944, Fanon, então com 18 anos, alista-se na Resistência Francesa participando de vários combates. Nesse momento percebeu que embora lutasse lado a lado dos franceses europeus não era considerado um francês, mas um nègre (negro).
Anos depois, é clássica a história de um menino que em Paris grita para a mãe:
– Olhe, o negro…. Mamãe, um negro!
– Quieto! Ele vai se zangar – responde-lhe a mãe.
Virando-se para Fanon, a mãe tenta se desculpar:
– Não lhe dê atenção, meu senhor. Ele não sabe que o senhor é tão civilizado quanto a gente.
Em 1945, retorna à Martinica com a patente de cabo e, em 1947, viaja para a França com a intenção de cursar medicina. Primeiro vai à Paris, mas o clima de pós-guerra ainda é muito ruim, o que o faz decidir cursar medicina em Lyon.
Durante a faculdade convive com uma França efervescente de ideias como as psicanalíticas de Freud, Jung, Adler; a psicopatologia fenomenológica de Karl Jaspers; as filosofias de Marx; Hegel; Nietzsche; Marleau-Ponty (que foi seu professor); Sartre (a quem admirou muito); Camus e outros. Jean-Paul Sartre, inclusive, escreveu o prefácio da edição de 1961 do livro Os Condenados da Terra, de Frantz Fanon.
O pensamento decolonial do psiquiatra, definido como “o abandono da visão política, cultural e epistemológica do modo de pensar eurocêntrico”, bebeu de grandes pensadores como Amílcar Cabral, Patrice Lumumba, Aimé Cesaire, entre outros.
Provavelmente influenciado por Sartre e Camus no uso do teatro para expressar suas ideias, Fanon escreve peças teatrais sobre a situação do negro na França, que infelizmente não foram publicadas.
Com 27 anos, Fanon escreve sua dissertação para a conclusão de seu curso, intitulada Ensaio sobre a desalienação do negro (Essai sur la désalienation du Noir) , trabalho que foi vetado pelo seu orientador por discutir um tema polêmico, quase tabu.
Fanon, pouco tempo depois, escreve uma nova tese Alterações mentais e síndromes psiquiátricas da Heredodegeneração Espino-Cerebelar: um caso de síndrome de Friedreich com delírio de possessão (Troubles mentaux et syndromes psychiatriques dans I ́Hérédo-Dégénération-Spino-Cérébelleuse Un cas de maladie de Friedreich avec délire de possession).
De sua tese recusada e de conversas com colegas durante a residência de Psiquiatria, em especial com o espanhol Francesc Tosquelles, surge seu livro mais famoso Pele negra, máscaras brancas.
Tosquelles, aliás, lutou no lado republicano pelo Partido Operário de Unificação Marxista durante a Guerra Civil Espanhola. Mais tarde, como acadêmico, ficou conhecido como um dos criadores da psicoterapia institucional. Sua inteligência e ideias certamente colaboraram com as de Fannon.
Aprovado em concurso realizado pela Faculdade de Medicina de Paris, assume um hospital psiquiátrico em Blida, na Argélia – hospital que hoje leva seu nome -, localizado a poucos quilômetros da capital, Argel.
Na manhã de 1 de novembro de 1954, inicia-se a guerra de independência da Argélia contra a França, organizada pela Frente de Libertação Nacional (FLN). A repressão ao movimento independentista por parte das forças francesas foi duríssimo, tornando-as mestres na “arte” da tortura – posteriormente exportando e ensinando seus métodos para outros regimes.
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Fanon colaborou com a FLN, não como combatente, mas como médico, tratando pessoas (argelinos e franceses), ocultando combatentes e recebendo reuniões secretas em seu hospital psiquiátrico. Não teve muitas dúvidas de que lado ficar, presenciando a opressão francesa sobre a população e ao mesmo tempo percebendo o papel manipulador da Igreja Católica.
Em “Os condenados da terra”, descreve a Igreja Católica como “uma Igreja de brancos, uma Igreja de estrangeiros que chama o homem colonizado não para o caminho de Deus, mas para o caminho do homem branco, para o caminho do senhor, do opressor”.
No início 1957, o envolvimento de Fanon e sua equipe do hospital com a FLN é descoberto. O psiquiatra pede demissão imediata e, para fugir da prisão e certamente da tortura, foge para Paris. Pouco tempo depois, o hospital é invadido por forças francesas resultando na prisão, tortura e morte de vários de seus colegas.
Após um período na capital francesa, Fanon foge para a Suíça, posteriormente para a Itália e de lá toma um voo para Tunis, na Turquia, para nunca mais voltar a Paris.
Em Tunis, manteve-se como professor de Psiquiatria e como intelectual escrevendo artigos de divulgação de suas ideias, bem como viajando pela África toda apoiando movimentos anticolonialistas e a FLN na Argélia.
Um ano após o diagnóstico de leucemia, morre a 6 de dezembro de 1961, em Bethesda, Maryland, nos EUA.
Brevíssimo resumo de algumas ideias de Frantz Fanon
- Ao indivíduo colonizado se tem negado sempre o reconhecimento de sua subjetividade e autonomia, devendo ele todo o tempo entender o padrão de normalidade como sendo o do europeu branco. Assim, o homem negro buscaria o embranquecimento e a desvalorização da cultura e da história negras.
- A alienação colonial, presente em muitos povos ainda hoje, impediria um conhecimento para dentro de sua cultura, resultando na importação de modelos culturais europeizantes.
- – A internalização da submissão, do racismo e do complexo de inferioridade por parte dos colonizados tem um fundamento econômico.
- A colonialidade, mesmo com o fim do colonialismo histórico em seus modelos econômico, político e social, se mantém nas formas, nas práticas, nos discursos e nos valores. As práticas coloniais ligadas à organização do espaço público, o imaginário social e as significações da linguagem, entre outras, permanecem em diferentes países.
- Fanon não tinha formação como psicanalista, mas se utilizava muitas vezes de um raciocínio psicanalítico em sua prática psiquiátrica. Acreditava que a análise tradicional deve ultrapassar o domínio das questões afetivas e econômicas, devendo estudar os reflexos do colonialismo e da etnia na psique do indivíduo e em seu sofrimento.
- Interrogava se uma das ideias centrais de Freud – Complexo de Édipo – era de fato universal ou se estava condicionado por fatores culturais.
- “Não basta mudar minha visão de mundo, é necessário mudar o mundo.” Uma inspiração claramente marxista baseada na práxis revolucionária. Fanon teve vários conflitos com movimentos revolucionários africanos que focavam numa dimensão cultural, filosófica e histórica do negro e não priorizar a emancipação, a luta e destruição do colonialismo branco.
- Fanon com seu humanismo radical buscava não uma igualdade entre negros e brancos, mas a destruição da ideologia que pregava uma hierarquia racial.
- Fanon defende que o negro não existe do ponto de vista ontológico, a cor da pele só faz sentido do ponto de vista social, político, cultural por causa do processo colonialista, da escravidão e do poder burguês.
- “A causa é consequência: a pessoa é rica porque é branca e é branca porque é rica”
Sugestões de leitura
Adam Shatz – A clínica rebelde, uma biografia de Frantz Fanon (Todavia, 2024)
Alice Cherki – Frantz Fanon: um retrato (Perspectiva, 2022)
Deivison Faustino – Frantz Fanon e as encruzilhadas (Ubu, 2022)
Frantz Fanon – Pele Negra, Máscaras Brancas (Ubu, 2020)
Frantz Fanon – Os condenados da terra (Zahar,2022)
Frantz Fanon – Escritos políticos (Boitempo, 2021)
Frantz Fanon – Alienação e Liberdade (Ubu, 2020)
Táki Athanássios Cordás é Coordenador da Equipe Multiprofissional de Assistência do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Coordenador do Programa de Transtornos Alimentares (AMBULIM) do IPQ-HCFMUSP. Prof. dos Programas de Pós-Graduação do Departamento de Psiquiatria da USP, do Programa de Neurociências e Comportamento do Instituto de Psicologia da USP e do Programa de Fisiopatologia Experimental da FMUSP. Pós-Graduação (latu-sensu) em Filosofia (PUC-RS).
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.