Em dezembro, fiz uma compra pela internet e recebi meu pacote das mãos de um jovem entregador. Ele me cumprimentou e, além das sacolas, me entregou um cartão que dizia:
“Ajude um entregador a ter seu 13º salário. Você pode contribuir com qualquer valor na chave pix abaixo”.
Aquela foi uma imagem da contradição entre um discurso sobre a emergência do empreendedorismo em detrimento da carteira assinada.
Tal debate, que avança sobre o mundo do trabalho, passa pela falsa ideia de que a massa de entregadores e motoristas que trabalham via aplicativos, são “empreendedores”.
Trabalhariam eles por conta própria, dizem, ajustando as jornadas conforme as previsões de ganho – e sem a velha figura do patrão.
Existem, entretanto, muitas lacunas nesse debate. E muita manipulação para validar uma realidade mais favorável ao livre mercado do que ao trabalhador.
Para começar, os trabalhadores por aplicativo, como o próprio termo revela, não são independentes. Eles estão suscetíveis às regras de empresas bilionárias que lucram com a disseminação progressiva desse tipo de trabalho.
As fortunas dos executivos do iFood contrastam com os rendimentos dos entregadores, que recebem em média, segundo o IBGE, entre 1 e 3 salários-mínimos, e não têm garantias que cubram descanso, acidentes ou doenças. É a velha contradição entre o capital e o trabalho.
Fora dessa realidade forjada por empresas de tecnologia bilionárias, qual é o cenário do empreendedorismo para o povo brasileiro? O povo que vive do próprio trabalho? Pequenos negócios, franquias, pejotização e algumas empresas de sucesso. Não é a relação de trabalho que o Brasil precisa para dar um salto de qualidade.
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A Consolidação das Leis Trabalhistas, de 1943, por outro lado, proporcionou a criação de uma classe média no Brasil, oferecendo ao povo a possibilidade de organizar a vida, de planejar o futuro, de crescer profissionalmente e de ascender socialmente.
A CLT rompeu com a mentalidade escravista e forçou a sociedade a desenvolver uma nova visão sobre o trabalhador e as relações de trabalho. Ela foi fundamental para o projeto desenvolvimentista impulsionando uma mão de obra mais qualificada e um crescente mercado consumidor.
Por seu caráter inclusivo e desenvolvimentista, a legislação foi e é vítima de ataques ao longo da história.
Ataques à legislação trabalhista
Durante a ditadura militar, houve várias alterações na CLT, como a substituição da Lei que garantia estabilidade no emprego após dez anos em uma mesma empresa, pela criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Mudança que incentivou a rotatividade da força de trabalho.
Nas décadas de 1980 e 1990, com o avanço do neoliberalismo, a crescente desregulamentação, precarização e informalidade no mundo do trabalho, bem como o enfraquecimento das entidades de classe, excluíram parte dos trabalhadores da proteção da CLT.
Telefônicos
O caso dos trabalhadores em telefonia é emblemático. Após a privatização da Telebrás, em 1998, o número de trabalhadores em telemarketing passou a predominar sobre os profissionais que cresciam em uma mesma empresa.
Segundo o jornalista e assessor da Fenattel (Federação Nacional dos Trabalhadores em Telecomunicações e Operadores de Mesa Telefônica), José Luiz Passos Jorge, até 1997 o perfil dos trabalhadores em telefonia era o seguinte: tempo médio no emprego de 25 anos, idade média entre 40 e 45 anos, nível técnico ou médio, e remuneração média de até cinco salários mínimos. Em 2011, o perfil havia mudado: tempo médio no emprego de dois anos, idade média entre 18 e 25 anos, nível médio ou cursando universidade (não necessariamente na área), remuneração média de um a um e meio salário mínimo e jornada de meio período.
Reforma trabalhista
Esta desconstrução no mundo do trabalho voltou a ganhar força nos governos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro. Com alteração de mais de 200 dispositivos, seguida por outras minirreformas, a reforma trabalhista de 2017 resultou em um grande cerceamento da legislação e no ataque frontal aos sindicatos. Foi o maior desmonte da CLT em sua história.
A ideia de “modernização” que embalou a apresentação da reforma, apontava para a diminuição do papel do Estado nas relações de trabalho e para o fortalecimento do mercado como regulador. Uma visão que resultou em altos índices de desemprego a partir de 2018 (índice que voltou a baixar a partir do governo Lula, em 2023) e da disseminação da pobreza.
Atribuir à retirada de direitos o caráter de modernização não passou de um marketing falso. A desobrigação das empresas com relação aos trabalhadores, em contraste com a ideia de modernidade, retrocede a um Brasil colonial, à passagem do trabalho escravo ao trabalho assalariado, quando a visão escravista estava ainda impregnada na mentalidade patronal.
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A narrativa em torno da defesa da desregulamentação, promovida pela reforma de 2017, entrou em choque com as graves consequências da pandemia de covid-19 para a economia e para o mundo do trabalho. A pandemia escancarou o papel do Estado de garantir saúde e rendimentos para uma população que se viu obrigada a parar as atividades. Jogou luz sobre a pobreza e a desigualdade, mostrando os limites do mercado, e deixou claro os malefícios da desvinculação formal dos trabalhadores.
Mas, contraditoriamente, os efeitos da pandemia e da reforma, em um contexto de desindustrialização, intensificaram a informalidade e o surgimento de trabalhadores por aplicativos, alimentando na sociedade uma ideia confusa de empreendedorismo. Quando, na verdade, a situação exigia investimento em um projeto nacional de desenvolvimento e na criação de empregos melhores.
Sinais de vida
Com o governo Lula, a partir de 2023, o almejado desenvolvimento voltou a dar sinais de vida. Em entrevista para a Agência Brasil, o presidente da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), Ricardo Cappelli, disse que o lançamento do programa Nova Indústria Brasil, promoveu uma reversão do processo de desindustrialização “com o anúncio, inclusive, de investimentos históricos liderados pela indústria brasileira”.
Os dados sobre emprego, divulgados pelo IBGE, também são animadores, com uma situação de pleno emprego e crescimento dos registros em carteira.
O copo meio vazio, porém, mostra que é preciso um esforço político para recuperar direitos retirados na reforma trabalhista, dar mais segurança aos trabalhadores, fortalecer os sindicatos e não incentivar uma ideia de empreendedorismo que se traduz no abandono do trabalhador pelo Estado.
O país precisa de pequenas, médias e grandes empresas. Mas, é para os trabalhadores que o governo deve olhar com mais cuidado. Para fazer valer seus direitos constitucionais, garantindo opções, formação e ascensão social.
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No Brasil que queremos, aquele jovem brasileiro, que me entregou compras feitas pela internet junto com um cartão pedindo contribuições para o décimo terceiro, deveria estar estudando, desenvolvendo suas habilidades para si e para o país. Ele poderia estar em um trabalho mais qualificado, recebendo seus direitos, seu abono de Natal e contribuindo com a previdência social. O serviço de entregas existiria como um complemento, uma efemeridade, e não como a tábua de salvação no oceano da desorganização do mundo do trabalho.
Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical, também coordena o Grupo de Pesquisa Cultura & Sociedade da Fundação Maurício Grabois.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.