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    Trabalho

    Ajude um entregador a ter seu 13º salário

    Ideia de empreendedorismo nos aplicativos esconde a precarização do trabalho. Sem direitos e com baixos salários, entregadores enfrentam desigualdade enquanto executivos acumulam fortunas. Saiba mais sobre essa contradição

    POR: Carolina Maria Ruy

    Trabalhador de entrega por aplicativo percorre ruas no centro do Rio de Janeiro.
    Trabalhador de entrega por aplicativo percorre ruas no centro do Rio de Janeiro. Tomaz Silva/Agência Brasil

    Em dezembro, fiz uma compra pela internet e recebi meu pacote das mãos de um jovem entregador. Ele me cumprimentou e, além das sacolas, me entregou um cartão que dizia: 

    “Ajude um entregador a ter seu 13º salário. Você pode contribuir com qualquer valor na chave pix abaixo”.

    Aquela foi uma imagem da contradição entre um discurso sobre a emergência do empreendedorismo em detrimento da carteira assinada.

    Tal debate, que avança sobre o mundo do trabalho, passa pela falsa ideia de que a massa de entregadores e motoristas que trabalham via aplicativos, são “empreendedores”.

    Trabalhariam eles por conta própria, dizem, ajustando as jornadas conforme as previsões de ganho – e sem a velha figura do patrão.

    Existem, entretanto, muitas lacunas nesse debate. E muita manipulação para validar uma realidade mais favorável ao livre mercado do que ao trabalhador. 

    Para começar, os trabalhadores por aplicativo, como o próprio termo revela, não são independentes. Eles estão suscetíveis às regras de empresas bilionárias que lucram com a disseminação progressiva desse tipo de trabalho. 

    As fortunas dos executivos do iFood contrastam com os rendimentos dos entregadores, que recebem em média, segundo o IBGE, entre 1 e 3 salários-mínimos, e não têm garantias que cubram descanso, acidentes ou doenças. É a velha contradição entre o capital e o trabalho.

    Fora dessa realidade forjada por empresas de tecnologia bilionárias, qual é o cenário do empreendedorismo para o povo brasileiro? O povo que vive do próprio trabalho? Pequenos negócios, franquias, pejotização e algumas empresas de sucesso. Não é a relação de trabalho que o Brasil precisa para dar um salto de qualidade. 

    Leia também: O Coringa é o Pobre de Direita – Uma análise da obra de Jessé Souza

    A Consolidação das Leis Trabalhistas, de 1943, por outro lado, proporcionou a criação de uma classe média no Brasil, oferecendo ao povo a possibilidade de organizar a vida, de planejar o futuro, de crescer profissionalmente e de ascender socialmente. 

    A CLT rompeu com a mentalidade escravista e forçou a sociedade a desenvolver uma nova visão sobre o trabalhador e as relações de trabalho. Ela foi fundamental para o projeto desenvolvimentista impulsionando uma mão de obra mais qualificada e um crescente mercado consumidor. 

    Por seu caráter inclusivo e desenvolvimentista, a legislação foi e é vítima de ataques ao longo da história.

    Paralização dos entregadores de aplicativo em São Paulo, 25/07/2020. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

    Ataques à legislação trabalhista

    Durante a ditadura militar, houve várias alterações na CLT, como a substituição da Lei que garantia estabilidade no emprego após dez anos em uma mesma empresa, pela criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Mudança que incentivou a rotatividade da força de trabalho.

    Nas décadas de 1980 e 1990, com o avanço do neoliberalismo, a crescente desregulamentação, precarização e informalidade no mundo do trabalho, bem como o enfraquecimento das entidades de classe, excluíram parte dos trabalhadores da proteção da CLT.

    Telefônicos 

    O caso dos trabalhadores em telefonia é emblemático. Após a privatização da Telebrás, em 1998, o número de trabalhadores em telemarketing passou a predominar sobre os profissionais que cresciam em uma mesma empresa. 

    Segundo o jornalista e assessor da Fenattel (Federação Nacional dos Trabalhadores em Telecomunicações e Operadores de Mesa Telefônica), José Luiz Passos Jorge, até 1997 o perfil dos trabalhadores em telefonia era o seguinte: tempo médio no emprego de 25 anos, idade média entre 40 e 45 anos, nível técnico ou médio, e remuneração média de até cinco salários mínimos. Em 2011, o perfil havia mudado: tempo médio no emprego de dois anos, idade média entre 18 e 25 anos, nível médio ou cursando universidade (não necessariamente na área), remuneração média de um a um e meio salário mínimo e jornada de meio período.

    Reforma trabalhista

    Esta desconstrução no mundo do trabalho voltou a ganhar força nos governos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro. Com alteração de mais de 200 dispositivos, seguida por outras minirreformas, a reforma trabalhista de 2017 resultou em um grande cerceamento da legislação e no ataque frontal aos sindicatos. Foi o maior desmonte da CLT em sua história.

    A ideia de “modernização” que embalou a apresentação da reforma, apontava para a diminuição do papel do Estado nas relações de trabalho e para o fortalecimento do mercado como regulador. Uma visão que resultou em altos índices de desemprego a partir de 2018 (índice que voltou a baixar a partir do governo Lula, em 2023) e da disseminação da pobreza.

    Atribuir à retirada de direitos o caráter de modernização não passou de um marketing falso. A desobrigação das empresas com relação aos trabalhadores, em contraste com a ideia de modernidade, retrocede a um Brasil colonial, à passagem do trabalho escravo ao trabalho assalariado, quando a visão escravista estava ainda impregnada na mentalidade patronal.

    Saiba como fragilidade do mercado de trabalho alimenta o trabalho escravo no Brasil

    A narrativa em torno da defesa da desregulamentação, promovida pela reforma de 2017, entrou em choque com as graves consequências da pandemia de covid-19 para a economia e para o mundo do trabalho. A pandemia escancarou o papel do Estado de garantir saúde e rendimentos para uma população que se viu obrigada a parar as atividades. Jogou luz sobre a pobreza e a desigualdade, mostrando os limites do mercado, e deixou claro os malefícios da desvinculação formal dos trabalhadores. 

    Mas, contraditoriamente, os efeitos da pandemia e da reforma, em um contexto de desindustrialização, intensificaram a informalidade e o surgimento de trabalhadores por aplicativos, alimentando na sociedade uma ideia confusa de empreendedorismo. Quando, na verdade, a situação exigia investimento em um projeto nacional de desenvolvimento e na criação de empregos melhores. 

    Sinais de vida

    Com o governo Lula, a partir de 2023, o almejado desenvolvimento voltou a dar sinais de vida. Em entrevista para a Agência Brasil, o presidente da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), Ricardo Cappelli, disse que o lançamento do programa Nova Indústria Brasil, promoveu uma reversão do processo de desindustrialização “com o anúncio, inclusive, de investimentos históricos liderados pela indústria brasileira”. 

    Lula durante inauguração de nova fábrica de celulose da Suzano, em Ribas do Rio Pardo (MS), em 05/12/2024. Unidade deve gerar 3 mil empregos nas operações florestais, industriais e de logística da unidade. Foto: Ricardo Stuckert/PR

    Os dados sobre emprego, divulgados pelo IBGE, também são animadores, com uma situação de pleno emprego e crescimento dos registros em carteira.

    O copo meio vazio, porém, mostra que é preciso um esforço político para recuperar direitos retirados na reforma trabalhista, dar mais segurança aos trabalhadores, fortalecer os sindicatos e não incentivar uma ideia de empreendedorismo que se traduz no abandono do trabalhador pelo Estado.  

    O país precisa de pequenas, médias e grandes empresas. Mas, é para os trabalhadores que o governo deve olhar com mais cuidado. Para fazer valer seus direitos constitucionais, garantindo opções, formação e ascensão social. 

    Leia outros artigos de Carolina Maria Ruy

    No Brasil que queremos, aquele jovem brasileiro, que me entregou compras feitas pela internet junto com um cartão pedindo contribuições para o décimo terceiro, deveria estar estudando, desenvolvendo suas habilidades para si e para o país. Ele poderia estar em um trabalho mais qualificado, recebendo seus direitos, seu abono de Natal e contribuindo com a previdência social. O serviço de entregas existiria como um complemento, uma efemeridade, e não como a tábua de salvação no oceano da desorganização do mundo do trabalho. 

    Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical, também coordena o Grupo de Pesquisa Cultura & Sociedade da Fundação Maurício Grabois.

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.

     

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