O capital digital-financeiro (Parte I) – No dia da posse do novo presidente dos Estados Unidos, as fotografias do evento exibiam, ocupando lugares de destaque, reservados, por óbvio, aos personagens mais próximos ao poder, os rostos dos homens que comandam a X Holding Corp. (Elon Musk), Meta Platforms (Mark Zuckerberg), Alphabet Inc. (Sundar Pichai), Amazon Inc. (Jeff Bezos) e Apple Inc. (Tim Cook). Do grupo de corporações que formam o acrônimo GAFAM (Google-Amazon-Facebook-Apple-Microsoft), parece que só Satya Nadella, da Microsof Corp., não apareceu nas fotos.
Não somente essas imagens, mas a ascensão de Elon Musk à condição de “homem forte” do novo governo, função geralmente reservada, no mundo, ao ministro das Finanças, ou ao comandante das Forças Armadas ou, quase sempre no caso dos Estados Unidos, ao secretário chefe do Departamento de Estado, indica estar havendo, no ainda centro do capitalismo mundial, um basculamento no poder exercido pelos diferentes blocos de capital: ascende de vez o capital digital-financeiro, descem alguns degraus outros blocos de capital.
Cioso de seu poder no novo governo, Mark Zuckerberg, às vésperas da posse, anunciou, com estardalhaço, que mudaria a política de “moderação de conteúdos” da Meta, flexibilizando ou mesmo eliminando protocolos e práticas que buscavam controlar a disseminação de discursos de ódio, discriminatórios, mentirosos. Como já bem demonstrado em vasta literatura, esse tipo de mensagem contribui fortemente para as receitas e lucros da Meta, da Alphabet, do X, e de outras corporações que controlam similares “plataformas”1. Porém, por pressão de diferentes estados liberais democráticos, sobretudo a União Européia e o Brasil, elas vinham sendo obrigadas a impor algum filtro a esses tipos de mensagens, obedecendo a recentes leis regulatórias ou decisões judiciais desses países. Zuckerberg, desafiando o mundo mas confiando em Trump, declarou que não vai mais se submeter a essas leis ou decisões, postura que conta com o apoio de Musk e, certamente, mesmo que nada tenham dito, daqueles outros chefões presentes na posse de Trump.
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Esse debate sobre a regulação da internet parece limitado quase apenas às “redes sociais”, centrado em algumas poucas palavras-chaves: liberdade de expressão, privacidade, “fake news”, discursos de ódio, outras tantas. Debate-se a superestrutura. Imagina-se ser possível consertar as profundas distorções éticas e políticas produzidas na sociedade pelas assim chamadas “redes sociais”, apenas submetendo aquelas corporações a regras jurídicas próprias da democracia liberal. Não se vai à raiz do problema: à própria natureza do negócio que engendra aquelas distorções já consensualmente percebidas (consenso que exclui, claro!, os segmentos fascistas que dessas distorções se beneficiam). Entendida a natureza (capitalista) do negócio, compreendida a lógica de acumulação financeira que promove os discursos de ódio e a desordem informacional2 nessas redes, poder-se-ia avançar um projeto político radical que, no limite, visaria tornar esse espaço de debate efetivamente público, por isto mesmo a serviço da civilização, não da barbárie.
Este artigo, embora buscando ater-se ao tamanho razoável para publicação em meios jornalísticos de comunicação digital, tem por objetivo contribuir para levar o debate até as raízes do problema. Sua hipótese central é que podemos explicar a lógica financeira que preside os negócios dessas “redes sociais” e outras “plataformas” a partir d’O Capital de Karl Marx.
Plataformas sociodigitais
A sociedade capitalista vive hoje uma fase já avançada da terceira revolução industrial-tecnológica, processo iniciado como resposta do capital à sua crise kondratieviana dos anos 1970-1980. Para a superação dessa crise estrutural, o capital, repetindo o que já produzira em crises kondratievianas anteriores, investiu na abertura de novas fronteiras de acumulação, portanto, novas indústrias e tecnologias, sobretudo a digital; e também, desta vez, numa ampla financeirização da dinâmica econômica para a qual a tecnologia digital, pelo seu potencial de compressão do espaço-tempo3, surgiu como solução ideal. Daí que ao longo dos últimos 30 anos, pelo menos desde os anos 1990, se não antes, esferas crescentes das atividades de produção e consumo, logo de trabalho, vieram sendo incluídas, ou engolidas, pelas tecnologias digitais. O digital tornou-se a base técnica do capitalismo nesta sua nova etapa.
Esse processo conduziu, em anos mais recentes, a uma ampla plataformização digital do capitalismo. Os diferentes grupamentos de capital, fossem industriais, comerciais ou financeiros, visando otimizar seus negócios, passaram a se articular através de extensas e internacionais redes de computadores implantadas, total ou parcialmente, sobre as redes da internet, esta também uma rede transfronteiras. Em geral, essas plataformas não são de conhecimento do grande público. Um exemplo, embora quase nada conhecido mas com inegável consequência social, é a plataforma do “Programa de Benefício de Medicamentos” (PBM): em troca de supostos descontos nos preços de remédios, um consumidor qualquer fornece o seu CPF às farmácias (redes varejistas). Relacionando o CPF às compras, os laboratórios farmacêuticos podem ter um amplo conhecimento do mercado a nível individual, local, social, daí traçar desde suas estratégias de marketing até as de pesquisas científico-técnicas em novos medicamentos. Esse tipo de dados é extraído gratuitamente do comum da sociedade, não sendo necessariamente comercializado mas, uma vez processado pelo trabalho cientifico-técnico empregado e comandado pelas corporações farmacêuticas, adiciona enorme mais-valor aos seus produtos.
Denominamos plataformas sociodigitais (PSDs) a um conjunto específico de plataformas de negócios cujas receitas e lucros são extraídas diretamente da relação delas com a sociedade em geral: Google, YouTube, Facebook, Amazon, Airbnb, Uber, dentre outras. Essas receitas e lucros provém da mercadificação de dados que extraem da população por elas reunida nos mercados onde operam. Aqui nos defrontamos com uma primeira confusão conceitual pois será fácil encontrar na literatura diferentes definições de “dados”, bem como diferentes caracterizações dos “dados” como recurso econômico. Se você abre um catálogo do IBGE, publicado em livro de papel, vê dezenas e dezenas de tabelas numéricas arrumadas de acordo com alguns critérios de classificação: são dados. Numa escola, cada aluno ou aluna, tem uma ficha com nome próprio, data de nascimento, nome de pai e mãe, endereço, sexo etc.: são dados. A diferença entre esses e muitos outros dados que sempre foram necessários às atividades humanas, mesmo que a palavra “dados” não fosse usada nessa atual concepção, e o que estamos aqui definindo, objeto das PSDs, é que estes estão registrados em formato eletrônico, isto é, em arranjos de partículas nanométricas de óxido de ferro conforme tenham recebido pulsos positivos ou negativos de energia elétrica, na superfície de um disco de alumínio; ou em arranjos de conexões entre transistores também nanométricos em chips de memória. Aquilo que na tela de um computador vemos ou ouvimos como letras, números, imagens, sons, foram reduzidos a sequências de zeros e uns, ou liga-desliga, nos arranjos dos componentes de memória dos sistemas de computação digital. Essencialmente, a única diferença desses arranjos eletrônicos de dados para aqueles de um catálogo em papel do IBGE ou fichários de alunos numa gaveta da escola, é o método de registro: estes são denominados analógicos, aquele é digital.
Apesar de uma explicação como essa parecer primária, elementar, ela se torna necessária para começar a desfazer confusões. A primeira: dado é um objeto material, isto é, trata-se de algum registro feito por alguém nas formas de números, letras, imagens, sons, seja em alguma superfície como o papel; seja em arranjos eletro-eletrônicos binários em disco magnético ou chip de memória de computador. A segunda: dado não nasce por geração espontânea ou não se encontra na natureza, é sempre produto de alguma atividade humana, logo, produto de trabalho. Não existe dado “bruto”, como advogam alguns. Resulta de tempo de trabalho e resulta em alguma transformação no objeto do trabalho: se numa folha de papel em branco, anoto alguns números, esta folha já não é uma folha de papel em branco, mas matéria transformada pela minha ação sobre ela.
As PSDs construíram gigantescos sistemas de captura, organização, armazenamento de dados produzidos pelas atividades sociais de bilhões de indivíduos e milhões de empresas, em todo o mundo (ou quase, elas não estão presentes na China, por exemplo). A finalidade desses sistemas é possibilitar a comercialização desses dados. No entanto, dependendo do tipo de negócio, existem diferentes modelos de comercialização. Grosso modo, considerando esses modelos, as PSDs podem ser classificadas em quatro grandes segmentos:
i. intermediárias de negócios: Amazon, Airbnb, E-Bay etc. que põem em relação direta vendedores e compradores de bens ou serviços;
ii. produtores de audiência: YouTube, Instagram, Facebook, TikTok etc. que, impulsionando conteúdos produzidos pelos seus usuários, produzem audiência para atrair veiculação publicitária paga;
iii. transportadores em curta distância (ou urbanos): Uber, iFood etc., que transportam mercadorias ou pessoas nas distâncias urbanas (“última milha”).
iv. distribuidores de conteúdos: Spotfy, Netflix, outras plataformas conhecidas como streaming, cujas receitas provêm basicamente de assinaturas.
Em todos esses quatro modelos, os dados produzidos por milhões, até bilhões de pessoas, são capturados por sistemas de máquinas dotadas de alto poder de processamento e de poderosos softwares de tratamento, classificação, organização e oferta desses dados. Esses sistemas são denominados algoritmos. Atendem à finalidade de, no menor espaço de tempo possível, colocar um produtor de bem ou serviço em contato com algum demandante, de preferência concluindo algum negócio. A diferença taxionômica deve-se à forma de remuneração de cada forma de negócio. Os intermediários de negócios extraem suas receitas das taxas de intermediação. Os produtores de audiência, dos preços pagos pelos anunciantes quando seus anúncios são visualizados nas telas de computadores ou smartphones, além de taxas extras se o anúncio é “clicado”, resultou em negócio etc. Os transportadores, de cota-parte do preço cobrado ao consumidor ou usuário a cada viagem, deixando uma outra cota-parte para remuneração do trabalhador. Os distribuidores de conteúdos, das assinaturas de seu público.
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A relação entre o detentor de dados (as PSDs) e alguém interessado, por qualquer motivo, em pagar por eles, também suscita confusões conceituais. Digamos que, no dia de aniversário da minha companheira, eu queira lhe presentear com flores. Faço uma busca, numa plataforma, pela palavra “flores”. A plataforma, imediatamente, vai exibir na minha tela, uma lista de lojas ou quiosques vendedores de flores. Para o algoritmo, “alguém” está querendo comprar “flores”. Esse “alguém” precisa fornecer alguns dados: nome, endereço, cartão de crédito, entre outros. Os vendedores, já previamente cadastrados na plataforma, também fornecem alguns dados: antes de mais nada, estão interessados na palavra “flores”, logo dispostos a pagar por esta palavra. Estranho, não? Palavra parecer mercadoria! Ao se cadastrarem como compradores de palavras na plataforma, outro dado importante é quanto estão dispostos a pagar por ela. O algoritmo, então, organiza as ofertas de preços previamente cadastradas, e oferece ao potencial comprador uma lista de opções de vendedores a escolher, naturalmente priorizando os que pagaram mais. Nessa lista constam outros dados dos potenciais vendedores, como prazo de entrega, avaliações etc. Como as telas são espaços limitados, a disputa competitiva visa ocupar lugar de destaque na tela.
Esta é a descrição mais simples, com fins didáticos, de como as plataformas fazem negócios com dados, sabendo-se que para cada tipo de empresa e mercado há diferenças nas práticas. De um lado, textos, imagens, sons de algum potencial consumidor são reduzidos a dados digitais sobre esta pessoa; de outro lado, também textos, imagens, sons e uns tantos números precedidos de cifrão são reduzidos a dados digitais sobre vendedores competindo entre si por um espaço destacado numa tela. Como se viu, a disputa é semelhante a um leilão. E, de fato, é isso: um leilão. O que nos coloca diante de várias questões teóricas interessantes:
i. quem pagou por um “kit de dados” a respeito do comprador (nome, endereço, cartão de crédito etc.) não se torna proprietário desse objeto: a rigor, pagou por um direito de acesso a um potencial consumidor. Ele não pode levar os dados para o estoque da sua empresa, como podemos, por exemplo, levar para casa um tapete comprado num leilão de artes. Os dados seguem propriedade da plataforma.
ii. o preço pago, por ser leilão, não expressa algum valor medido pelo tempo de trabalho: que valor é esse? Evidentemente, o dado tem valor de uso, ou não interessaria a ninguém pagar por ele. O dado também tem valor de troca, tanto que é oferecido ao mercado pela plataforma. Mas esse valor pode ser medido?
Dados pois são mercadoria: um objeto externo que atende a necessidades de alguém (seja quem oferece algum produto que pode ser flores ou caminhões; seja uma pessoa precisando se locomover; etc.) mas cujo preço é fixado conforme as circunstâncias da oferta e da demanda. Tem algo aqui que estaria ofendendo a boa teoria? Não. Exatamente assim funciona o mercado de dinheiro, esta mercadoria “sui generis”, conforme Marx nos ensina no Livro 3 d’O Capital.
Investigando o capital portador de juros, ele observa:
“O capitalista monetário aliena, de fato um valor de uso e, por isso, o que ele entrega é entregue como mercadoria. E nessa medida é completa a analogia com a mercadoria enquanto tal. Primeiro, é um valor que passa de uma mão para outra. No caso da mercadoria simples, da mercadoria enquanto tal, o mesmo valor permanece nas mãos do comprador e do vendedor, só que em forma diferente: ambos possuem o mesmo valor depois como antes, que alienaram, um em forma-mercadoria, o outro, em forma-dinheiro. A diferença consiste em que, no caso do empréstimo, o capitalista monetário é o único que entrega valor nessa transação: mas ele o preserva mediante a restituição futura. No caso do empréstimo, valor é recebido apenas por uma parte, já que apenas uma das partes entrega valor. Segundo, o valor de uso real é alienado por uma parte e recebido e consumido pela outra. Mas diferentemente da mercadoria comum, esse mesmo valor de uso é valor, a saber excedente de grandeza de valor que resulta do uso do dinheiro como capital acima de sua grandeza de valor original. O lucro é esse valor de uso.
O valor de uso do dinheiro emprestado consiste em poder funcionar como capital e em produzir, como tal sob circunstâncias médias, o lucro médio.
[…]
O que o comprador de uma mercadoria comum compra é seu valor de uso; o que paga é o seu valor. O que o mutuário do dinheiro compra é também o seu valor de uso como capital; mas o que paga? Certamente não é, como no caso das outras mercadorias, o preço ou valor4.”
É por isso que
o capital portador de juros, embora categoria absolutamente diferente da mercadoria, se torna uma mercadoria sui generis e, por isso, o juro torna-se seu preço, o qual, como preço de mercado da mercadoria comum, é fixado em cada momento pela procura e oferta5.
O dinheiro tem preço, tem valor de uso, mas, ao contrário da mercadoria, possui a estranha qualidade de, ao invés de ser destruído pelo consumo (em menos tempo ou mais tempo), não apenas se conserva como pode milagrosamente se multiplicar como se fossem os pães de Cristo!
Qual é então o valor de uso que o capitalista monetário aliena durante o prazo do empréstimo e cede ao capitalista produtivo, o mutuário? É o valor de uso que o dinheiro adquire pelo fato de poder ser transformado em capital, de poder funcionar como capital e assim produzir em seu movimento determinada mais-valia, o lucro médio […] além de conservar sua grandeza original de valor. No caso das demais mercadorias consome-se, em última instância, o valor de uso, e com isso desaparece a substância da mercadoria, e com ela seu valor. A mercadoria capital, ao contrário, tem a peculiaridade de que, pelo consumo de seu valor de uso, seu valor e seu valor de uso não só são conservados, mas multiplicados6.
É a mesma qualidade dos dados. O registro eletrônico em forma binária correspondente à palavra “flores” permanece nos servidores das PSDs para ser “vendido” e “revendido” quantas vezes quaisquer homens enamorados queiram dar flores para as suas companheiras. O acesso a esse dado proporciona a algum empresário movimentar o seu negócio, industrial ou comercial, mas, assim como o dinheiro, situar-se-ia à margem do processo real da circulação. O acesso ao dado (ou ao dinheiro) adianta o processo, alimenta-o, mas nele não se incorpora endogenamente.
Nessa relação não há troca de equivalentes, não há transferência de propriedade:
O capitalista prestamista entrega seu capital, transfere-o ao capitalista industrial, sem receber um equivalente. Sua entrega não constitui ato algum do processo real de circulação do capital, mas apenas encaminha esse ciclo, a ser realizado pelo capitalista industrial. Essa primeira mudança de lugar do dinheiro não expressa ato algum da metamorfose, nem compra nem venda. A propriedade não é cedida, porque não ocorre intercâmbio, não se recebe equivalente7.
De tudo isso, Marx chega à seguinte conclusão:
Emprestar e tomar emprestado, em vez de vender e comprar, é aqui uma diferença que decorre da natureza específica da mercadoria-capital. Do mesmo modo que o que se paga aqui é juro, em vez de preço da mercadoria. Se se quiser chamar o juro de preço do capital monetário, então essa é uma forma irracional de preço, completamente em contradição com o conceito de preço da mercadoria. O preço se reduz aqui à sua forma puramente abstrata e sem conteúdo, ou seja, ele é determinado pela soma de dinheiro paga por qualquer coisa que, de uma maneira ou de outra, figura como valor de uso, enquanto, segundo seu conceito, o preço é igual ao valor expresso em dinheiro desse valor de uso8.
Em outras palavras, o preço do dinheiro é similar, na qualidade, embora não, obviamente, em seus montantes quantitativos, ao de um quadro de Van Gogh vendido num leilão da Sotheby’s… Igualmente é similar o preço alcançado por um “kit de dados” nos leilões que as PSDs promovem a todo instante: é abstrato e sem conteúdo. Porém, muito interessante também, será pensar que o rendimento obtido pelo valor dos dados poderia ser entendido como juros!
Dados e informação
Os dados, vimos, não podem ser trocados como se trocam mercadorias. Os dados funcionam como uma espécie de “porta” pela qual um ofertante de bens ou serviços pode entrar em contato com algum demandante. Mas a “porta” permanece sob total controle da PSD, é ela que a “abre” ou “fecha”, decidindo assim quem por ela pode ou não “passar”. Igual ao capital portador de juros, os dados impulsionam os negócios, nisto proporcionando extraordinário mais-valor para as corporações que os capturam, organizam e leiloam, igual ao dinheiro para os bancos. Adiante veremos que essas corporações não passam, por isso mesmo, de corporações financeiras. Mas antes, ainda precisamos entender melhor o que são os dados.
Dados são uma forma de informação. Tanto quanto a energia se apresenta diante de nossos sentidos nas formas de luz, calor, eletricidade, som, choque etc., podendo tudo isso, na melhor das hipóteses, ser reduzido e unificado na famosa fórmula de Einstein9; a informação também se apresenta diante de nós, como que “montada”, digamos assim, naquelas formas de energia, porém, dotada de uma qualidade essencial, até mesmo existencial, para os seres vivos em geral e para o ser humano, em particular: suas manifestações energéticas são organizadas pelos sistemas perceptivos e neurológicos dos seres vivos para atender às suas finalidades de sobrevivência. Por isto, a informação, a cavaleiro da energia, é percebida, pelo ser humano, nas formas de fonemas, daí palavras e línguas; de cores “azul”, “vermelho”, “verde” etc., daí as imagens; de notas musicais; etc. Todas essas formas podem ser tratadas através de um único grande sistema cognitivo, embora, como é natural da cultura humana, abordado através de muitos subsistemas epistemológicos e teóricos: o signo. Daí, as teorias semióticas.
Informação é uma “forma de movimento da matéria”, sentenciou o filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto10. Para Gregory Bateson, “informação é uma diferença que produz uma diferença”11. Para Dantas, é a relação entre um agente e seu meio ambiente (natural, social), graças aos recursos perceptivos desse agente (culturalmente determinados no caso do agente humano) e às suas finalidades de ação12. O quê, na essência, vai diferenciar uma manifestação energética qualquer da energia percebida como informação é ser esta acionada por um agente vivo em função de alguma finalidade. O ser informacional, isto é, qualquer ser vivo, é teleonômico: um sistema cuja causa é determinada pela consequência desejada, não a consequência pela causa, seja esta produzida, seja aleatória.
No que interessa ao nosso debate, todas essas definições, rigorosamente dialéticas, explicam as enormes dificuldades, não só teóricas, mas também políticas e mesmo práticas, que o capitalismo atual, ou capital-informação, enfrenta para lidar com uma crise que parece insolúvel e interminável. Como informação não é “coisa”, mas é movimento, é relação, uma vez tenha a evolução do capital, conforme uma lógica muito bem destrinchada por Marx, levado-o a esta atual etapa na qual faz da informação ela mesma, em algumas de suas formas, a exemplo dos dados, objeto de mercadificação e apropriação privada, desmoronou-se a sua “mesquinha base” como também escreveu Marx numa famosa passagem dos Grundrisse13: o valor medido pelo tempo social médio de trabalho.
Esclareça-se que ainda não é a negação e superação da lei do valor, como pretenderiam alguns. Mas assim como a lei da gravidade funciona de um modo na superfície da Terra e de muitos outros modos, no espaço extra-terrestre, também a lei do valor – que permanece válida por ser constitutiva do modo de produção capitalista – pode funcionar de diferentes modos na medida em que o próprio capital evolui por força das suas contradições mesmas. Vimos acima como Marx nos apresenta o funcionamento da lei do valor no mercado de dinheiro. Não será muito diferente no mercado de dados, nem em outros mercados informacionais ou comunicacionais que estão, hoje, no centro do processo capitalista de acumulação.
O valor da informação é valor produzido pelo trabalho. Mas esse valor, sendo relação, movimento, não pode ser congelado e conservado na mercadoria. A analogia entre a garagem e a biblioteca proposta pelo físico e ciberneticista autro-estadunidense Heinz von Foerster (1911-2002) ajuda a entender14. A garagem estoca automóveis. A biblioteca estoca livros, microfichas, documentos. A garagem não estoca locomoção: para isso, alguém terá que movimentar e dirigir algum carro. Do mesmo modo, a biblioteca não estoca informação: alguém terá que ler um livro, consultar as microfichas. Ou seja, só há informação, assim como locomoção, se houver alguma ação. Cessada a ação, cessou a informação. Restou apenas um objeto potencialmente informativo, informação objetivada ou registrada, aguardando alguma ação seguinte. Em síntese, não há informação sem trabalho, nem trabalho sem informação.
São propriedades da informação:
i. Aditividade. A comunicação de informação, geralmente na forma de algum conhecimento, transfere para o agente comunicado esse conhecimento sem que o agente comunicador se aliene dele. Um professor transmite o seu conhecimento em sala de aula, os estudantes acrescentaram-se novos dados, conceitos, imagens, idéias, sem que o professor tenha se desfeito um mínimo que seja desses dados, conceitos etc. Informação é um trabalho cujo produto, seja em forma verbal, escrita, matemática, qualquer outra, é de rendimento crescente. Daí, como vimos, dados não são escassos. Se os economistas costumam definir sua ciência como a “ciência da escassez”, já se defrontam aí com um sério problema teórico, até epistemológico.
ii. Indivisibilidade. Informação, sendo relação, não é divisível em partes unitárias iguais. Um mesmo suporte informacional pode ser, por isto, compartilhado por mais de uma pessoa. O professor não precisa repetir a mesma aula individualmente para cada um dos 30, 50, 60 estudantes da sua sala de aula. Um filme pode ser assistido por dezenas de pessoas na sala de cinema, por muitos e muitos dias. Um livro pode ser lido em comum pelo pai e seu filho ou filha. Os economistas, percebendo a aparência sem discernir a essência, costumam, por isso, definir o que entendem por “bem informacional” ou por “peça de informação” como “bem não rival”.
iii. Aleatoriedade ou incerteza. “Informação é medida da remoção de incerteza” definiu Claude Shannon15. Sendo movimento, relação, causa determinada pela consequência, o resultado do trabalho informacional, logo o seu valor, só pode ser conhecido ao concluir-se o trabalho. O tempo necessário para a conclusão desse trabalho é também uma dimensão da incerteza. Por isto, o valor da informação é função da dimensão de incerteza removida no menor tempo possível. Você só sabe, realmente, se vai gostar do filme depois de assistir ao filme. Já a camisa na vitrine da loja lhe dá a certeza imediata se lhe agradou ou não. Evidentemente, existem muitas “estratégias”, digamos assim, de redução da incerteza mas, nos limites e escopo deste artigo, não podemos aprofundar este ponto.
Todos esses aspectos, ainda que só nas suas aparências, suscitaram não poucos problemas para a teoria econômica mainstream como bem o sabem Kenneth Arrow16, Joseph Stiglitz17, entre outros. Já é tempo de os marxistas, com as ferramentas da lógica dialética, se disporem a também examiná-los.
Para onde vamos?
A análise sobre o capital digital-financeiro foi dividida em duas partes. A Parte II, que será publicada na segunda-feira (17), abordará os desafios da regulação dessas plataformas, o impacto do trabalho não remunerado na produção de dados e as alternativas para construir uma economia digital mais justa e soberana. Continue acompanhando para entender como o domínio das Big Techs pode ser questionado e quais caminhos podemos seguir rumo a um futuro mais equilibrado.
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Notas:
1 Giuliano da Empoli, Os engenheiros do caos, São Paulo, SP/Belo Horizonte, MG: Vestígio, 2019; Max Fisher, A máquina do caos: como as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo, São Paulo, SP: Todavia, 2023..
2 Marcos Dantas, “A matemática da desordem informacional”, A Terra é redonda, 5/05/2024, disponível em https://aterraeredonda.com.br/a-matematica-da-desordem-informacional/, acessado em 07/02/2025
3 David Harvey, Condição pós-moderna, São Paulo: Loyola, 1996, 6ª ed.
4 Karl Marx, O Capital, Vol. III, Tomo 1, São Paulo: Abril, 1984,, pgs. 264-265
5 idem,, pg. 274.
6 idem, pg. 264.
7 idem, pg. 261.
8 idem, pg. 266.
9 Segundo Alberto Einstein (1879.-1955), a energia (E) é igual ao produto da massa (m) pelo quadrado da velocidade (V): E = mc2.
10 Álvaro Vieira Pinto, O Conceito de Tecnologia, Rio de Janeiro: Contraponto, vol. 2, pg. 379
11 Gregory Bateson, BATESON, Gregory (1972). Steps to an Ecology of Mind, Northvale, USA: Jason Aronson, pg 381.
12 Marcos Dantas, “Informação, trabalho e capital”, In Marcos Dantas et alii, O valor da informação: de como o capital se apropria do trabalho social na era da internet e do espetáculo, São Paulo: Boitempo, pg. 17.
13 No original “bornierten Grundlage” ou “tacanha base”. Na tradução de Pedro Scarón para a Siglo XXI (Elementos fundamentales para la crítica de la Economia Política – borrador – 1857-1858, México, DF: Siglo XXI, 1973, 4ª ed., Vol. 2, pg. 229), “mezquina base”. Na tradução de Mario Duayer e Nelio Schneider (Grundrisse, São Paulo: Boitempo, 2011, pg. 589), “fundamento acanhado”. Aqui, optamos pela tradução de Scarón.
14 Heinz von Foerster, “Epistemology of Communication”, In Kathleen Woodward (Org.), The Myths of Information: Technology and Post-Industrial Culture, Londres, Routledge & Keegan-Paul, 1980, pg. 19.
15 Claude Shannon). “A Mathematical Theory of Communication”. The Bell System Technical Journal, 1948, v. 27, n. 3: pgs. 379-423.
16 Kenneth Arrow, “Economic Welfare and the Allocation of Resources for Invention”, The Rate and Directionof Inventivity Economic and Social Factors, Princenton: Princenton University Press, 1962.
17 Joseph Stiglitz, “The Contributions of the Economics of Information to the Twentieth Century”, The Quartely Journal of Economics, v. 115, n. 4, nov. 2000, p. 1.441.
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Marcos Dantas é professor titular (aposentado) da UFRJ, professor do PPG em Comunicação e Cultura da ECO/UFRJ e do PPG em Ciência da Informação da ECO-IBICT/UFRJ. É membro do Conselho de Administração do NIC.Br e foi, por três mandatos consecutivos, um dos representantes da Academia no Conselho do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.Br). É presidente da Fundação Maurício Grabóis – Seção Rio de Janeiro. É autor de A lógica do capital-informação: a fragmentação dos monopólios e a monopolização dos fragmentos em um mundo de comunicações globais (Ed. Contraponto, 1996, 2ª Ed. 2002) e (em co-autoria) de O Valor da Informação; de como o capital se apropria do trabalho social na era do espetáculo e da internet (Boitempo, 2022).