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    Socialismo

    Freud e Marx: conexões e divergências na busca pela compreensão humana

    Entenda como Freud e Marx abordaram a história, a economia e a psique humana, destacando suas convergências e divergências na busca por uma visão científica da sociedade e da transformação humana

    POR: Carlos Lopes

    Montagem. Créditos: Karl Marx. Foto: John Jabez Edwin Mayall / Dominio Público / Wikimedia Commons | Sigmund Freud. Foto: Max Halberstadt / Dominio Público / Wikimedia Commons
    Montagem. Créditos: Karl Marx. Foto: John Jabez Edwin Mayall / Dominio Público / Wikimedia Commons | Sigmund Freud. Foto: Max Halberstadt / Dominio Público / Wikimedia Commons

    Freud e o marxismo – Todos os saltos qualitativos da ciência, no século XIX, constituíram uma introdução da história nos vários campos do saber. A rigor, nem se pode falar em “introdução”, pois, em realidade, foi uma redução – ou conversão – à história dos vários terrenos do conhecimento.

    Tal movimento geral da ciência parece justificar, inteiramente, aquela frase que aparece riscada em uma obra da década de 40 do século XIX, somente conhecida no século XX: “conhecemos apenas uma ciência, a ciência da história” (Karl Marx e Friedrich Engels, A Ideologia Alemã, trad. Luís Cláudio de Castro e Costa, Martins Fontes, 2001, p. 107).

    É a ciência da história que, no século XIX, confere caráter científico às demais ciências – que nos perdoe o leitor a frase pouco ajambrada.

    Assim foi com a evolução darwiniana, em 1859 (data do livro de Darwin, A Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural, ou Preservação das Raças Favorecidas na Luta pela Vida) e 1871 (A Descendência do Homem e Seleção em Relação ao Sexo).

    Da mesma forma, a abordagem de Karl Marx à própria história e à economia, que começa na década de 40 do século XIX (Manuscritos Econômicos e Filosóficos, Teses sobre Feuerbach, A Sagrada Família, A Ideologia Alemã, Miséria da Filosofia, Manifesto Comunista), culminando com o primeiro livro de O Capital, em 1867.

    Por fim, a obra de Sigmund Freud, que tem, como ponto de virada, A Interpretação dos Sonhos (1900), que, finalmente, concebe a psique humana de um ponto de vista ontogenético e filogenético – ou seja, histórico.

    Notemos que estes são os pontos nodais do pensamento humano no século XIX, que determinariam o decorrer da ciência no século seguinte – e até hoje.

    Mas estão longe de ser os únicos. Pelo contrário, estão entrelaçados com outros, cujo movimento foi na mesma direção.

    Assim, Darwin se alicerçou na economia política de Malthus, e, como observou Gould, também nas teses geológicas de Charles Lyell, cujos Princípios de Geologia apareceram entre 1830 e 1833 (v. Stephen Jay Gould, Ever Since Darwin: Reflections in Natural History, W. W. Norton & Company, NY, London, 1977).

    Os próprios Malthus e Lyell, independente de suas limitações, estavam tentando dar um caráter histórico às suas abordagens da economia e da geologia.

    Da mesma forma, Marx, sobretudo ao partir de Hegel e Feuerbach – assim como as tentativas anteriores dos próprios Hegel e Feuerbach.

    Para aprofundar: Dossiê Karl Marx

    Aliás, do ponto de vista estritamente filosófico, o pensamento de Marx surge a partir de uma crítica aos pensamentos de Hegel (Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel) e Feuerbach (Teses sobre Feuerbach).

    Em Freud, é claro o fundamento da psique humana (da psique dos adultos humanos) nas experiências infantis (os saltos qualitativos representados pelas fases oral, anal, e, sobretudo, pela fase edípica, mais conhecida como “complexo de Édipo”) e na experiência da espécie (v. entre outros, Totem e Tabu, 1913, Ed. St. Bras., vol. XIII).

    É, portanto, o elemento histórico que, também em Freud, é determinante para uma explicação científica da psique humana – e, inclusive, para uma compreensão terapêutica das neuroses, embora esse último aspecto é considerado secundário em um de seus últimos trabalhos (v. Análise terminável e interminável, 1937, Ed. St. Bras., vol. XXIII).

    Influências comuns e diálogos inconscientes

    Freud era – como também Marx, e também Darwin – um homem do Iluminismo. É interessante – e inescapável – como a horda primordial, hipótese desenvolvida por Darwin em seu livro sobre a descendência do homem, é a base assumida de Totem e Tabu e de outras obras de Freud.

    Menos conhecida é a relação de Freud com Marx, até porque ela é, em boa parte, inconsciente (para usar uma palavra muito cara à psicanálise).

    Mas é peculiar que um pensador até certo ponto superficial, como Erich Fromm, deva sua notoriedade, precisamente, ao amálgama que tentou entre o pensamento de Freud e Marx (ainda lembro quando, adolescente, li pela primeira vez, ao modo de uma descoberta, Meu Encontro com Marx e Freud).

    Em sua juventude, Freud, assim como Marx, foi fortemente influenciado por Feuerbach, tal como aparece em sua correspondência com Silberstein. Há, inclusive, uma carta em que Freud diz ao amigo, sobre Feuerbach: “entre todos os filósofos é este o homem que mais venero e admiro” (v. As Cartas de Sigmund Freud para Eduard Silberstein, Imago, 1995).

    A concepção geral que preside o trabalho de Freud é muito conhecida: “quanto menos um homem conhece a respeito do passado e do presente, mais inseguro terá de mostrar-se seu juízo sobre o futuro” (O Futuro de uma Ilusão, 1927, Ed. St. Bras., vol. XXI).

    Revolução Russa: Cautela e Crítica

    Sabemos que Freud, depois da Iª Guerra, era um leitor – e, provavelmente, eleitor – dos jornais do partido social-democrata austríaco. Tendia, portanto, para a esquerda. Tinham ficado longe os dias em que aconselhava prudência aos amigos na oposição a Bismarck (ver as cartas a Silberstein).

    Sua atitude de repugnância em relação ao nazismo – que, em 1938, anexou a Áustria – é também característica, pois não foi determinada por razões raciais, ou seja, pelo fato de ser judeu. Aliás, ia muito além disso.

    Pelo contrário, foi em meio à perseguição hitlerista aos judeus que ele publicou, em 1939, Moisés e o Monoteísmo (Ed. St. Bras., vol. XXIII), um livro que dificilmente serviria de lenitivo aos perseguidos, como ele sabia, e disse, no primeiro parágrafo da obra:

    “Privar um povo do homem de quem se orgulha como o maior de seus filhos não é algo a ser alegre ou descuidadamente empreendido, e muito menos por alguém que, ele próprio, é um deles. Mas não podemos permitir que uma reflexão como esta nos induza a pôr de lado a verdade, em favor do que se supõe serem interesses nacionais; além disso, pode-se esperar que o esclarecimento de um conjunto de fatos nos traga um ganho em conhecimento.”

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    Neste sentido – o rigor na busca da verdade -, Freud está bem próximo do marxismo. Em uma das Novas Conferências Introdutórias, ele escreveu: “a verdade simplesmente não pode ser tolerante, não admite conciliações ou limitações” (v. Ed. St. Bras., vol. XXII).

    E, no mesmo texto, de 1933, ele aprofunda essa questão, contrariando todas as ridículas crenças de que seria adepto de alguma forma de irracionalismo:

    “Nossa maior esperança para o futuro é que o intelecto — o espírito científico, a razão — possa, com o decorrer do tempo, estabelecer seu domínio sobre a vida mental do homem. A natureza da razão é uma garantia de que, depois, ela não deixará de dar aos impulsos emocionais do homem, e àquilo que estes determinam, a posição que merecem. A compulsão comum exercida por um tal domínio da razão, contudo, provará ser o mais forte elo de união entre os homens e mostrará o caminho para uniões subsequentes. Tudo aquilo que, à semelhança das proibições da religião contra o pensamento, se opõe a uma evolução nesse sentido, é um perigo para o futuro da humanidade.” (v., Freud, A questão de uma Weltanschauung, Ed. St. Bras., vol. XXII, Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos, Conferência XXXV)

    Existe, hoje, uma extensa literatura sobre a relação entre a psicanálise e a Revolução Russa. Muito dessa literatura tem um ranço inequivocamente trotskista, ou, pelo menos, anti-stalinista. No entanto, não há, na obra de Stalin, nem um único parágrafo de condenação à psicanálise. Quanto a Lenin, chegou, em uma das edições de Materialismo e Empirocriticismo, a colocar uma nota de pé de página algo mal humorada e pouco compreensível em relação à psicanálise – mas é só (para uma abordagem mais ou menos razoável do problema, embora não isenta de alguns preconceitos, v. Macari, M. L., & Weinmann, A. O. (2021). Psicanálise e Revolução Russa: notas para um debate. Avances en Psicología Latinoamericana, 39(2), 1-15).

    Leia mais: O que Freud disse sobre a Revolução Russa?

    O fato é que somente em 1958, quando Kruschev era o principal dirigente do PCUS, houve uma condenação oficial à psicanálise, e, particularmente, ao que foi chamado “freudismo”, na Sessão Especial do Presidium da Academia de Ciências Médicas da URSS (v. Filipp Veniaminovich Bassin, O Problema Do Inconsciente, Civilização Brasileira, 1981).

    Então, o nosso problema, neste artigo, se resume ao que Freud achava da Revolução Russa e da construção do socialismo na URSS. Aqui aparecem suas limitações. Em sua excelente biografia, Peter Gay retrata Sigmund Freud como um burguês progressista. É possível que tivesse razão (v. Peter Gay, Freud, uma vida para o nosso tempo, Companhia das Letras, 1998).

    Mas, apesar disso, temos de convir que ele foi muito cauteloso ao abordar a experiência socialista, isto é, o marxismo em seu aspecto prático.

    Em 1927, por exemplo, ele escreveu:

    “… não tenho a menor intenção de formular juízos sobre o grande experimento em civilização que se encontra hoje em desenvolvimento no imenso país que se estende entre a Europa e a Ásia. Não possuo conhecimento especial nem capacidade de decidir sobre sua praticabilidade para testar a adequação dos métodos empregados ou medir a amplitude do inevitável hiato existente entre intenção e execução.” (v. O Futuro de uma Ilusão, Ed. St. Bras., vol. XXI)

    Três anos depois, em 1930, ele deixaria, em parte, essa cautela, para afirmar o papel da agressividade como predominante na tensão com a civilização, inclusive acima da base econômica, isto é, acima até mesmo da luta material pela vida:

    “Os comunistas acreditam ter descoberto o caminho para nos livrar de nossos males. Segundo eles, o homem é inteiramente bom e bem disposto para com o seu próximo, mas a instituição da propriedade privada corrompeu-lhe a natureza. A propriedade da riqueza privada confere poder ao indivíduo e, com ele, a tentação de maltratar o próximo, ao passo que o homem excluído da posse está fadado a se rebelar hostilmente contra seu opressor.” (v. O Mal-Estar na Civilização, Ed. St. Bras., vol. XXI)

    A ideia que Freud faz daquilo que os comunistas pensam é ingênua. Mas ele não consegue enfrentar a crítica social dos comunistas. Portanto, a admite. Apenas, tenta eliminar o problema central dela, isto é, o seu fundamento econômico:

    “Se a propriedade privada fosse abolida, possuída em comum toda a riqueza e permitida a todos a partilha de sua fruição, a má vontade e a hostilidade desapareceriam entre os homens. Como as necessidades de todos seriam satisfeitas, ninguém teria razão alguma para encarar outrem como inimigo; todos, de boa vontade, empreenderiam o trabalho que se fizesse necessário. Não estou interessado em nenhuma crítica econômica do sistema comunista; não posso investigar se a abolição da propriedade privada é conveniente ou vantajosa.(idem, grifo nosso)

    E, em seguida, ele levanta a argumentação de que os fatores psicológicos – isto é, a agressividade inerente ao ser humano – impediriam o sucesso dessa transformação social.

    Mas, por que Freud abandonou a cautela de três anos antes, em relação à construção do socialismo?

    Porque, em 1930, ao contrário de em 1927, já eram públicos, inclusive no Ocidente, os primeiros embates dentro da URSS (Trotsky foi expulso do PCUS em novembro de 1927 – e expulso do país em 1929).

    O aumento da tensão dentro da URSS, e, por tabela, no exterior, fez com que Freud abandonasse a cautela inicial e proferisse um prognóstico pessimista sobre a construção do socialismo, baseado em uma suposta agressividade inerente à espécie humana – uma agressividade para a qual ele, um materialista, não encontrou um fundamento material.

    Assim, isso o levou, finalmente, a examinar o marxismo, inclusive além do aspecto prático. Mas é importante que ele tenha colocado algumas restrições ao seu próprio conhecimento sobre o assunto:

    “As investigações de Karl Marx sobre a estrutura econômica da sociedade e sobre a influência de diferentes sistemas econômicos em todos os setores da vida humana adquiriram inegável autoridade nos dias atuais. Em que medida os seus pontos de vista, em seus detalhes, estão corretos ou são errôneos, não posso dizer, naturalmente. Compreendo que esse assunto não é fácil sequer para outros mais bem instruídos do que eu.” (v. Freud, A questão de uma Weltanschauung, ed. cit.)

    Críticas de Freud ao Marxismo

    As objeções de Freud ao marxismo, resumem-se a duas:

    1) O fator econômico não é a única base e motivação da história e das ações humanas. Trata-se, evidentemente, de algo que nem Marx nem o marxismo jamais afirmaram. Aliás, Engels, numa carta, afirmou explicitamente o contrário. No caso, seria, analogamente, o mesmo afirmar que a psicanálise concebe o fator sexual como único móvel dos seres humanos. Constituiria uma deformação tão grande quanto afirmar que o marxismo concebe o fator econômico como único móvel das ações humanas.

    2) Que o marxismo, como guia para a ação histórica, transformou-se numa religião. Isto, evidentemente, só seria verdade se o marxismo, aplicado na construção do socialismo, houvesse se desligado da realidade, transformando-se em mera crença, pois é a isso que se chama religião.

    Para que não fique dúvida sobre esta segunda questão, transcrevemos o que consignou o próprio Freud no texto citado:

    “Embora o marxismo prático tenha varrido impiedosamente todos os sistemas idealísticos e as ilusões, ele próprio desenvolveu ilusões que não são menos questionáveis e merecedoras de desaprovação do que as anteriores. Ele espera, no curso de algumas gerações, de tal modo alterar a natureza humana, que as pessoas viverão juntas quase sem atrito na nova ordem da sociedade e que elas assumirão as tarefas do trabalho sem qualquer coerção. Nesse meio-tempo, ele muda para algum outro setor as restrições instintuais que são essenciais na sociedade; desvia para o exterior as tendências agressivas que ameaçam todas as comunidades humanas e apoia-se na hostilidade do pobre contra o rico e na hostilidade daquele que até então esteve impotente contra os governantes anteriores. Mas uma transformação da natureza humana, como esta que pretende, é altamente improvável. O entusiasmo com que a massa do povo segue a instigação bolchevista, atualmente, enquanto a nova ordem está incompleta e ameaçada de fora, não oferece nenhuma certeza para um futuro no qual estaria completamente construída e isenta de perigos. Exatamente da mesma forma como a religião, o bolchevismo deve também oferecer aos seus crentes determinadas compensações pelos sofrimentos e privações de sua vida atual, mediante promessas de um futuro melhor, em que não haverá mais qualquer necessidade insatisfeita.” (grifo nosso)

    Futuro do Socialismo

    Porém, a mensagem final de Freud, inclusive neste texto, não é desesperançada em relação ao socialismo, mesmo com todas as suas restrições de burguês progressista:

    “Não há dúvida quanto à maneira como o bolchevismo responderá a essas objeções. (…) E seríamos educadamente solicitados a dizer como é que as coisas poderiam ser manejadas de outra maneira. Isto nos derrotaria. Eu não poderia pensar em conselho algum a dar. Eu admitiria que as condições desse experimento haveriam dissuadido a mim e aos meus semelhantes de empreendê-lo; não somos, porém, as únicas pessoas a considerar. (…) Numa época em que as grandes nações anunciam que esperam a salvação apenas da manutenção da fé cristã, a revolução na Rússia — apesar de todos os seus detalhes desagradáveis — assemelha-se, não obstante, com uma mensagem de futuro melhor”.

    Carlos Lopes é redator-chefe do jornal Hora do Povo, vice-presidente nacional do PCdoB e membro do Grupo de Pesquisa sobre Problemas e desafios contemporâneos da teoria marxista.

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.

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