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    EUA

    Trump 2.0 já escancara autoritarismo, austeridade e o caos do império decadente

    Estratégia agressiva para garantir hegemonia dos EUA se revela nas primeiras semanas do novo governo: cortes em programas sociais, repressão, censura, endurecimento da política imigratória e desestabilização global. Estaria o império em declínio irreversível?

    POR: Eduardo Siqueira

    13 min de leitura

    “Hegemonia é uma combinação de liderança (ou direção moral) com dominação. É exercida através do consentimento e da força, da imposição e da concessão, de e entre classes e blocos de classes e frações de classes. Esta pode se dar de forma ativa, como vontade coletiva, ou se manifestar de forma passiva, através de um apoio disperso ao grupo dirigente/dominante.” (ALMEIDA, Jorge . Estado, hegemonia, luta de classe e os dez meses do governo Lula. Crítica Social (Rio de Janeiro) , Rio de Janeiro, v. 3, p. 27-41, 2003)

    Tomando esta definição de hegemonia como guia, nas primeiras semanas do governo Trump 2.0 aparecem sinais evidentes de que os Estados Unidos perderam o status de Hegemon e buscam recuperá-lo a todo vapor através de políticas internas e externas neofascistas – a política do cacete sem cenoura- que tentam colocar os setores populares na defensiva e acabar com as conquistas democráticas e sociais obtidas nas últimas décadas. Conforme prometido na campanha, Trump resolveu seguir os ditames do Projeto 2025, atacar os redutos e bases eleitorais dos democratas dentro e fora do Estado, e desafiar a Constituição dos Estados Unidos.

    No front interno, dezenas de decretos executivos afetam quase todos os ministérios e agências governamentais. Como são muitos, nesta coluna nos concentraremos em alguns que repercutiram bastante na mídia. 

    Austericídio a la Musk 

    O agora reconhecidamente fascista Elon Musk, ministro informal de um ministério informal, anda infiltrando técnicos de informática jovens em diversos ministérios, como os ministérios da Economia e da Saúde, para controlar bases de dados sobre recursos humanos, informações financeiras e orçamentos com o objetivo de reduzir gastos e a folha de pagamentos de funcionários. 

    Trump já fechou o Escritório para Proteção Financeira dos Consumidores (Consumer Financial Protection Bureau), que foi criado para justamente proteger os consumidores contra fraudes e abusos envolvendo transações financeiras e bancárias, cada vez mais comuns no país. E eviscerou a Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional (USAID), ato suspenso temporariamente por decisão judicial. 

    Além disso, Musk tem procurado acessar dados confidenciais privados de cidadãos que recebem recursos do governo como bolsas de estudo, subsídios para atenção à saúde, e até aposentadorias. Algumas das suas iniciativas a caminho são eliminar o Ministério da Educação, e esfacelar o Ministério do Trabalho e a Administração da Seguridade Social. 

    Protesto em Washington contra o fechamento do Consumer Financial Protection Bureau (CFPB) por Trump e Elon Musk – 10 de fevereiro de 2025. Foto: Elvert Barnes Protest Photography/Flickr/CC

    Protestos ainda pequenos contra Musk e Trump começam a ganhar visibilidade em vários estados logo após a manifestação de parlamentares democratas e ativistas na porta do Ministério da Economia, quando foram impedidos por seguranças de entrar no prédio para evitar que Musk tomasse posse dos computadores onde as informações estão guardadas. Pouco a pouco, a população começa a tomar conhecimento das barbaridades levadas a cabo por Musk e cresce a resistência contra Trump.

    Acabar com Diversidade, Equidade, Inclusão

    Trump assinou, em 20 de janeiro, o decreto presidencial intitulado “Acabar com Programas Governamentais Radicais e Perdulários  de  Diversidade, Equidade e Inclusão e Preferências”, usando o falso pretexto do mau uso de verbas públicas em ações dirigidas a promover a diversidade, equidade e inclusão (DEI em inglês).

    A agenda anti-DEI e anti-identitarismo woke da extrema-direita trumpista serviu para atacar programas necessários para reduzir a desigualdade social e censurar qualquer alusão a termos como justiça ambiental, mudança climática, gênero, e LGBT em artigos científicos, páginas web do governo ou propostas de pesquisa. 

    Órgãos do Ministério da Saúde, como o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e o Instituto Nacional de Saúde (NIH), sofreram apagão de dados epidemiológicos e bloqueio de subvenções federais para pesquisa básica e aplicada. 

    Em seguida, o governo Trump 2.0 decidiu reduzir drasticamente as verbas destinadas à administração e manutenção da infraestrutura básica necessária para o desenvolvimento de todo tipo de pesquisas financiadas pelo NIH, despesas orçamentárias conhecidas como custos indiretos ou overhead. 

    O falso argumento para justificar os cortes é que há que diminuir o déficit público derivado de subsídios para pesquisas conduzidas por universidades ricas em recursos financeiros. Segundo o presidente da Universidade Harvard, reduzir esse financiamento cortaria a atividade de pesquisa em Harvard e em quase todas as universidades de pesquisa do nosso país. 

    Os cortes de verbas e o apagão de dados foram revertidos temporariamente por decisões judiciais, mas o pânico e a confusão instalados nas universidades, entre os professores, pesquisadores e administradores continuarão por algum tempo. 

    A partir desse decreto, denúncias de censura a pesquisadores e ameaças de demissões em massa se avolumam, mas ninguém sabe ao certo até que ponto as medidas repressivas e austericidas permanecerão. 

    Como disse Trump na campanha, trata-se do troco para a academia, onde muitos estudantes e professores se manifestaram contra ele no primeiro governo e na última campanha presidencial. Em vez de soft power, agora é pau puro nos campi!!!

    Deportação Über Alles

    Intitulado “Protegendo o Povo Americano Contra a Invasão”, o mais badalado decreto de Trump 2.0 revoga uma série de atos do governo Biden sobre imigração e autoriza a deportação de imigrantes indocumentados. O argumento é de que há uma verdadeira invasão desses imigrantes, muitos deles supostamente criminosos e traficantes de drogas. 

    Os diretores da Patrulha da Alfândega e da Fronteira dos Estados Unidos (U.S. Customs and Border Patrol) e da Execução da Imigração e Alfândega (ICE) prontamente colocaram milhares de policiais nas ruas para prender e deportar imigrantes sem autorização para residir no país.

    Segundo avaliação da imprensa, cerca de 1.000 imigrantes indocumentados têm sido deportados por dia desde então. Centenas de brasileiros já foram transportados algemados e agredidos durante voos de repatriação para o Brasil, amplamente noticiados pela mídia brasileira. 

    Protestos em várias cidades, como Los Angeles e Chicago, contra a perseguição a imigrantes e suas famílias também começam a surgir, ao lado de disputas legais lideradas por por procuradores gerais de estados governados por democratas e entidades da sociedade civil defensoras de direitos dos imigrantes.

    Outros decretos ligados à imigração reduzirão bastante o número de refugiados que serão aceitos pelo país nos próximos anos. E para coroar a xenofobia explícita, Trump decretou que um descendente de imigrante indocumentado nascido nos Estados Unidos não terá direito a cidadania, em uma clara violação da 14ª Emenda Constitucional. Por enquanto, esta medida extrema foi paralisada por algumas decisões judiciais, que indicam pouca probabilidade que tamanha arbitrariedade se sustente. 

    Desordem Internacional Sem Regras

    No front externo do chamado soft power, associado à ideologia do sonho americano e do líder do mundo livre  — que expressa a liderança e o consentimento para a liderança dos EUA sobre o chamado mundo ocidental —, o presidente Trump conclama aos quatro ventos a necessidade da força bruta, do caos institucional e da “desordem internacional sem regras”, segundo Pepe Escobar. 

    Embora muito do que Trump diz não deva ser levado a sério, a imposição de tarifas contra parceiros comerciais fundamentais para a economia do país (Canadá, México, China), as bravatas sobre conquistas de terras ricas em minerais raros como a Groenlândia, a retomada do Canal do Panamá e o sonho da limpeza étnica de Gaza para construção de uma suposta Riviera, criaram um redemoinho geopolítico global. 

    Saiba mais sobre Trump e Gaza em: O apoio do empreendedor ao projeto colonial e genocida de um século

    Uma análise cuidadosa das declarações contraditórias e aparentemente estapafúrdias de Trump, feita por Alastair Crooke, sugere que quase sempre elas têm como objetivo satisfazer as demandas de seus seguidores de primeira hora, conhecidos como trumpistas, dos oligarcas financiadores da campanha eleitoral e dos que recentemente se associaram. Também buscam neutralizar divergências importantes com o chamado Estado Profundo.

    Em outras palavras, Trump como estrategista responde aos diversos interesses das frações de classe que o apoiam, exagerando na dose nos seus pronunciamentos para negociar em posição de superioridade, sempre ganhando. Diferentemente da China, não há negociação ganha-ganha para o império estadunidense. 

    TV Grabois traz análise sobre tarifaço e guerra comercial promovida por Trump e os impactos no Sul Global. Assista: 

    Por outro lado, Trump acena com o descomprometimento com a Ucrânia, passando a bola para a Inglaterra e demais países europeus, vassalos de primeira hora contra a Rússia. Os últimos movimentos de membros do gabinete Trump 2.0 sugerem que Zelenski tem os dias contados e daqui para a frente as negociações entre Trump e Putin definirão o futuro da guerra. 

    Ainda vai correr muita água debaixo da ponte, mas a direção do processo mudou de rumo e os EUA, cedo ou tarde, terão que reconhecer a derrota estratégica que sofreram. Na melhor das hipóteses os dois presidentes encontrarão uma forma de resolver a disputa sem que nenhum dos dois se desgaste aos olhos das suas nações. Tarefa não fácil, mas possível…

    O fechamento da USAID não é uma má notícia para os países do Sul Global e os inimigos do império estadunidense, já que esta Agência sempre foi utilizada para favorecer a política externa imperial dos EUA. É um exemplo do soft power dos Estados Unidos, como John Kennedy pensava, via ajuda externa para projetos sociais em países dependentes ou “amigos”. 

    A Aliança para o Progresso e o Corpo da Paz surgiram para se contrapor às ameaças de revoluções no Terceiro Mundo dos anos 60, após a vitoriosa revolução cubana e da derrota do colonialismo na Ásia e África. 

    Por outro lado, a USAID serviu para organizar grupos e organizações pró-imperialismo como aliados no combate aos inimigos do império. Aliás, recentemente vieram à luz denúncias de corrupção e provas concretas de que a USAID serviu de instrumento para organizar as mal-denominadas Revoluções Coloridas na Geórgia, Ucrânia, Bielorússia, entre outras, além de financiar órgãos da imprensa dos EUA e da Europa para obter apoio popular à guerra anti-Rússia através de grupos nazistas ucranianos. 

    Seria ingênuo achar que os EUA decidiram abandonar o apoio a golpes e propaganda a favor dos seus interesses imperiais. Logo, há que ficar alerta para o que os governantes de plantão farão para substituir o papel da USAID, que agora ficará sob o controle do Ministério das Relações Exteriores, cujo ministro, Marco Rubio, sempre apoiou golpes de estado e conspirações contra governos progressistas na América do Sul e Central. 

    Leia também: Com EUA em declínio, Nazi-Trumpismo ameaça as Américas

    Decadência ou Expansão?

    Diante do quadro resumido acima, cabe perguntar se as iniciativas do governo Trump 2.0 são características de um império decadente ou em expansão. Grande número de analistas de vários matizes tem caracterizado a estratégia adotada por Trump — baseada em ameaças, sanções, perseguição, repressão e guerra econômica contra parceiros e adversários — como uma demonstração de fraqueza e desespero do império americano.

    Uma comparação com o período de ascensão do imperialismo no século XX pode dar boas pistas para responder a essa pergunta. Quando o império vivia o período de ouro do pós-guerra até o final dos anos 1970, não foi nada disso que se viu. Ao contrário, os Estados Unidos organizaram e lideraram a arquitetura do capitalismo por meio de investimentos na Europa, destruída pela Segunda Guerra Mundial, e usaram mais cenoura do que porrete, tanto internamente quanto na política externa. Ou seja, a hegemonia se consolidou muito mais pelo consenso dos povos do chamado Ocidente contra o mundo socialista,pelas concessões das classes dominantes em resposta às lutas populares por democracia, direitos civis e progresso, além da ameaça do socialismo no Leste Europeu e na China.

    O povo americano, por sua vez, melhorou sua condição de vida graças a políticas de bem-estar que levaram milhões a ter acesso a níveis de consumo considerados dos mais altos do mundo. Foi a fase liberal do capitalismo dos EUA. Claro que sempre houve uso da força e da repressão, como o Macartismo e a Guerra Fria, mas a hegemonia não se baseava fundamentalmente nelas.

    Particularmente nas duas últimas décadas, após o evidente fracasso do neoliberalismo e da Guerra contra o Terror, o que se vê é o oposto. Cada vez mais os EUA só oferecem dominação e vassalagem, tanto aos aliados quanto aos inimigos. O soft power ainda tem alguma força, mas, a cada dia, fica mais claro para o Sul Global, e também para povos do Norte Global, que se acelera a decadência do império americano. 

    Como os EUA não são um tigre de papel, resistirão à perda de hegemonia promovendo guerras, favorecendo golpes, criando desordem sem regras, reprimindo e explorando o próprio povo para manter a dominação do capital financeiro e de seus aliados. Exemplos históricos revelam que nenhum império perde poder sem reagir com violência e guerras — muitas vezes por meio de ataques que acabam por enfraquecê-lo ainda mais!

    O avanço do neofascismo com Trump é o reflexo dessa nova conjuntura nacional e internacional. Não é mais possível dominar pela liderança moral, pelo consentimento com pouco uso da força.

    Eduardo Siqueira é professor na Universidade de Massachusetts, Boston, EUA e pesquisador do Observatório Internacional da FMG.

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.

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