Procurando ir além do noticiado – O ano político se inicia pródigo em notícias que deixam entrever que, nos meses seguintes, viveremos dias de muita tensão, disputa e, por que não, crises entre os poderes principais da República: Executivo, Legislativo e Judiciário, e com os vários órgãos federais de atuação autônoma, que se transformaram em verdadeiros centros de poder, como MPF, PF, Banco Central, CARF, FFAA etc., dando sua cota de contribuição a esse ambiente de disputas.
Ora é uma Fake News espalhando na sociedade que o PIX – meio de pagamento que se tornou a principal forma de transações comerciais entre as camadas mais populares do país – seria usado para vigiar a movimentação financeira destas mesmas camadas e delas cobrar impostos.
Ora são as eleições para as Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que movimentaram intensamente os meios políticos institucionais da República, com articulações, conchavos, barganhas políticas, entre os principais candidatos e os Partidos políticos com representação parlamentar. E o centro dessas tratativas era o compromisso, dos candidatos a esses postos máximos do legislativo nacional, de que mantivessem a atual política de distribuição de emendas parlamentares, de caráter impositivo, que os privilegia e os transforma em verdadeiros executores do orçamento da Nação.
Ora é um vídeo institucional da Marinha, no qual, mostrando “a dureza” da vida militar, contrapõem-se, de forma agressiva, as notícias que circularam nos meios de comunicação, segundo as quais as FFAA tinham privilégios funcionais, superiores aos de outros setores do funcionalismo.
Ora é a troca do ministro das comunicações de Lula, feita às pressas, para tentar reverter a imagem do governo, que se mostra precocemente desgastado e atribui esse degaste à falta de comunicação adequada. (Será?)
Ora é uma morosidade injustificável em autorizar o início, pela Petrobras, de pesquisas na chamada margem equatorial para verificar a existência de petróleo em águas profundas, que possam ser um fator de desenvolvimento e crescimento econômico para todo o país, e em particular para os estados do Norte e Nordeste.
Ora é o Supremo Tribunal Federal, mandando confeccionar gravatas e lenços em seda, com o seu logotipo, para presentear pessoas que, por sua notória importância, mereçam receber tais prendas, além das recorrentes notícias de que várias instâncias do judiciário têm sido acusadas de usarem artifícios para aumentarem indevidamente os seus salários.
E, como que emoldurando esse quadro acima descrito, temos a posse de Donald Trump na presidência dos Estados Unidos, que inicia seu governo, ameaçando meio mundo com aplicação de taxas de importação de produtos estrangeiros pelos EUA, e expulsar imigrantes ilegais. Além de ameaçar anexar o Canadá, país soberano e aliado tradicional, bem como de comprar a Groelândia, uma espécie de colônia da Dinamarca. E – pasmem! – ocupar a Faixa de Gaza, no Oriente Médio, e construir, sobre os escombros da guerra genocida movida por Israel, contra os Palestinos, que ali habitam há séculos, uma Riviera, com resorts e ambientes luxuosos, para gáudio das elites bilionárias do mundo. Tal proposta é um escárnio à inteligência e à civilização humana.
Tenho afirmado que a base fundamental da crise que nosso país vive na atualidade é uma disfuncionalidade do Estado Nacional Brasileiro, que deita suas raízes ao longo de nossa história, mas hoje passa por um momento de acirramento, que é um gerador de crises políticas, econômicas, sociais e culturais continuadas, impedindo o Brasil de avançar no processo de reconstrução e desenvolvimento, que é o mote do governo Lula 3.
Confira vídeo: Programa Almoço Grátis, da TV Grabois analisa por que a popularidade do governo Lula não cresce, mesmo com a economia brasileira em alta.
Tenho tratado desse tema, disfuncionalidade do Estado, do ponto de vista teórico e político geral. Mas, nos parágrafos anteriores deste artigo, fiz uma breve síntese, elencando fatos que permeiam nossa conjuntura atual e são a manifestação concreta de como vem ocorrendo essa disfuncionalidade na prática.
A eleição e posse dos Presidentes do Senado e da Câmara Federal
Essas eleições se deram em um ambiente festivo, onde os candidatos eleitos já haviam garantido antecipadamente suas vitórias, em função de acordos, barganhas e outras práticas costumeiras na atividade política nacional, e mesmo mundial.
Ambos os candidatos, seja em seus discursos de posse, seja em entrevistas dadas logo após a posse, afirmaram que dariam continuidade, no essencial, à política de valorização do Legislativo, defendendo suas prerrogativas de exercerem um poder de execução do orçamento, por meio das emendas parlamentares, que atinge cerca de 50% das verbas orçamentárias discricionárias que, até há poucos anos, eram uma prerrogativa quase exclusiva do Poder Executivo.
O senador Alcolumbre, eleito Presidente do Senado – em uma longa entrevista ao canal Globo News, logo após sua posse –, com habilidade e até certo senso de humor, reafirmou ser um direito legítimo a possibilidade de um parlamentar ajudar seus municípios e estados, por meio das emendas parlamentares, e que continuaria a defendê-la, pois derivava das prerrogativas da atividade parlamentar, sem responder a questionamentos sobre a lisura de algumas dessas operações. E acrescentou, quando questionado, ser favorável a se buscar, junto aos outros poderes, o estabelecimento de mecanismos de controle dos gastos efetuados na aplicação das referidas emendas.
Já o deputado Hugo Motta, eleito presidente da Câmara dos Deputados, em sua posse, fez um discurso, no qual deixou claras suas posições sobre como devem se dar as relações entre o Legislativo e o Executivo, defendendo a opinião de que vivemos em um regime de cogoverno entre o Legislativo e o Executivo.
Neste artigo, nós nos detemos mais sobre o discurso de posse do deputado Hugo Motta, por considerá-lo emblemático da disfuncionalidade de poderes hoje existente em nosso país.
A importância do posto de Presidente da Câmara dos Deputados
Desde o segundo semestre do ano passado, a escolha de um candidato à presidência da Câmara dos deputados esteve no centro das preocupações e debates dos parlamentares, dos partidos políticos, de cientistas políticos e da imprensa, especializada ou não. O centro dessa preocupação girou em torno de qual nome seria apoiado pelo deputado Arthur Lira PP, então Presidente da Câmara e condestável do “centrão”, ou seja, da direita tradicional brasileira, para o tão importante posto – o terceiro na ordem de sucessão presidencial frente a eventuais impedimentos do Presidente. Isto porque, para o presidente da Câmara que saiu, era, e é, fundamental que o novo ocupante desse cargo dê continuidade à política por ele praticada, de forma abusiva, no comando do Legislativo – por meio de emendas parlamentares, impositivas ou não –, de poder administrar quase a metade do Orçamento da União. E dessa maneira ter poder para influir no exercício do poder Executivo, e mesmo nos destinos do país, como até agora não se tinha visto.
Após um longo e tortuoso processo de conchavos, barganhas, à direita e à esquerda, Arthur Lira conseguiu chegar a um nome de consenso, Hugo Motta, deputado do Republicanos da Paraíba. Jovem, apresentado como muito educado, habilidoso, distante dos extremismos, um bom negociador, que estaria disposto a restabelecer relações com os poderes Executivo e Judiciário em novas bases. Ou seja, não achacar o Executivo para impor o controle do Legislativo sobre cerca de metade das verbas discricionárias do Orçamento da União. E, com relação ao Judiciário, estabelecer um relacionamento, com o qual este poder – o Judiciário – não fosse tão exigente com a transparência e rastreabilidade dos gastos realizados pelos deputados, na indicação de emendas parlamentares para seus redutos eleitorais ou não.
No seu discurso de posse, Hugo Motta disse a que veio. Fez um discurso bem escrito, usou de recursos de expressão corporal (exibição do Exemplar da Constituinte), quando mostrou ter aprendido corretamente as lições de media training, às quais deve ter se submetido, e usou e abusou do termo Democracia e da memória de Ulysses Guimarães. Mas qual foi seu objetivo maior ao proferir esse discurso? Procurar justificar teórica e juridicamente o papel atual do Legislativo, como um poder ao qual a Constituição delega poderes para cumprir tarefas que são da esfera do Executivo. Ou seja, o Legislativo seria responsável não só pela aprovação do Orçamento da União, mas também corresponsável, com o Executivo, pela sua elaboração, e principalmente pela sua execução – o que o faz por meio das emendas parlamentares, tanto as de caráter impositivo, quanto as discricionárias. E defendeu que essas emendas, verdadeiras dissipadoras de quase 50% das disponibilidades de despesas discricionárias da União, devem ser administradas pelos deputados por meio de emendas enviadas às suas respectivas bases.
Ao lado das usuais denúncias da imprensa, e mesmo de um caso de denúncia de aplicação indevida dessas emendas por três deputados – e por isso serão julgados no plenário do STF –, a falta de transparência e rastreabilidade do uso dessas verbas orçamentárias, enviadas por tais emendas, é um fato público que atinge seu auge com a utilização das chamadas emendas PIX – estabelecidas pela Emenda Constitucional [nº 105/2019] que criou o artigo166-A da CF, para autorizar a transferência direta, a municípios, estados e ao Distrito Federal, de recursos de emendas parlamentares individuais ao Orçamento da União. Ou seja, o envio de dinheiro público, por parlamentares, às suas “bases eleitorais”, sem a elaboração, para a aplicação desses recursos, de projetos e mecanismos de controle, por parte dos órgãos encarregados desse mister.
Diante desse quadro, como se posiciona em seu discurso de posse o novo Presidente da Câmara?
Após realizar digressões, pretensamente teóricas, prestar juras à Democracia e prometer comportar-se de modo equilibrado, no exercício da Presidência da Câmara, sem extremismos de qualquer natureza, ele procurou demonstrar que a Constituição de 1988 estabeleceu um regime semipresidencial do Legislativo e do Executivo. Argumentou que, finalmente, após quatro décadas, o Legislativo recuperou os poderes que lhe foram outorgados pela Constituição de 1988, usurpados pelo Executivo sob a forma do chamado presidencialismo de coalizão.
E, escudando-se em formulações feitas por Ulysses Guimarães acerca das prerrogativas do Parlamento no regime liberal burguês, no geral, e nas circunstâncias históricas em que se elaborava a Constituição de 1988, em particular, logo após a derrota da ditadura militar de 1964-1985, procurou justificar os superpoderes hoje exercidos pelo Legislativo no que diz respeito à elaboração e à execução do Orçamento da União1.
A partir de uma frase de Ulysses, pronunciada no discurso de promulgação da referida Constituição, in verbis: “O Legislativo brasileiro investiu-se das competências dos parlamentos contemporâneos”, e] num puro exercício de especulação sobre o significado da frase, afirmou: “Que competências eram e são essas? O parlamentarismo! Ele não pregou o parlamentarismo como nova forma de governo, mas disse que o Parlamento se investia das competências dos parlamentos – parlamentos parlamentaristas – contemporâneos. Ou seja, ele afirmava que o presidencialismo absoluto deixara de existir com a nova Constituição”.
Dessa forma, o atual Presidente da Câmara dos Deputados, além de inovar na teoria do Direito Constitucional, criando as categorias presidencialismo absoluto e parlamentos parlamentaristas, na gestão de nosso Estado de Direito Democrático, cuja forma de governo é o Presidencialismo, passa a justificar a atual forma com a qual se comporta a maioria do Parlamento, no que diz respeito ao uso, pouco transparente e mesmo fraudulento, das atuais emendas parlamentares. Tema esse, como já nos referimos anteriormente, muito criticado pela imprensa e pela porção consciente da sociedade.
Talvez o nobre deputado também devesse especular como pensaria o doutor Ulysses frente ao atual papel do poder Legislativo que – por meio de Emendas Constitucionais, de leis infraconstitucionais e até mesmo de atos da Mesa Diretora da Câmara – criou um arcabouço legal que modificou o espírito e a letra da Constituição de 1988, e assim passou a permitir que os parlamentares utilizem as referidas emendas parlamentares e distribuam o dinheiro público por meio delas, sem que nas mesmas sejam indicados onde e como devem ser aplicados os recursos, não permitindo assim a possibilidade de atuação dos mecanismos de controle e rastreabilidade, por parte dos órgãos competentes da União.
Quanto ao comportamento equilibrado e de defesa da democracia, no exercício da presidência, afirmou: “O povo brasileiro não quer discórdia. Quer emprego. O povo brasileiro não quer luta pelo poder. Quer que os poderes lutem por eles. O povo brasileiro não quer a divisão da ideologia, mas a multiplicação no seu dia a dia”. (O que mesmo deve ou deveria ser multiplicado, pergunto?).
Após tão nobres e edificantes afirmações, continua, mais à frente, a conclamar os deputados a agirem de forma prática para “libertar o Brasil das amarras que aprisionam o nosso futuro”. E peremptoriamente afirma: “Não podemos continuar desperdiçando seu presente e sacrificando o seu futuro. Não podemos continuar penalizando a nossa gente, porque não existe um caminho da Direita, um caminho da Esquerda ou um caminho do Centro: existe apenas o caminho do Brasil”.
Logo após essa afirmação, em seu discurso de posse, defendeu, em entrevista a uma Rádio de seu Estado natal, Paraíba, que, em 8 de janeiro de 2023, não houve tentativa de golpe de Estado, mas, sim, houve vandalismo, que julga injustificado. Por isso, considera muito pesadas as penas aplicadas aos “vândalos” do 8 de janeiro. Dessa maneira, abriu espaço para projetos que concedam anistia aos golpistas de 8 de janeiro ganhem espaço no Parlamento. Realmente, ele não se alinha com as posições da direita e da extrema-direita. Ele as defende!
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Uma reflexão
A atual legislatura mal começou, e teremos pela frente grandes desafios para conseguirmos fazer deslanchar o governo Lula, seja em realizações, seja em apoio popular.
Nas eleições presidenciais de 2026, estará em jogo uma disputa entre um governo como o atual – que defende e pratica uma democracia liberal e procura implementar um pouco de desenvolvimento econômico, ou seja, um governo progressista moderado – e a luta, da atual oposição de direita e extrema-direita, para voltar ao governo e ao controle do aparato do Estado e, então, legitimada pelas urnas, implementar uma série de políticas regressistas e reacionárias que atrasariam ainda mais a marcha do país em sua busca por progresso, justiça social, soberania plena e democracia popular.
Confira texto sobre Reformas estruturais e os desafios políticos da atual conjuntura
Nesse cenário, o ano que se inicia será o tempo político no qual as forças progressistas e democráticas terão o desafio de superar vários entraves na sua atuação, seja no terreno econômico, seja no político ou no social. E, para que tenham êxito nesse mister, devem apresentar propostas viáveis que, se não resolverem os problemas mais imediatos do povo, pelo menos amenizem suas agruras.
Há também a necessidade de uma interlocução entre os poderes principais da República, na busca de formar um consenso em torno de propostas que destravem os principais obstáculos à execução das pautas do governo. Nesse sentido, as forças progressistas e democráticas que compõem o atual governo de frente [ampla necessitam se imbuir do espírito de que é fundamental enfrentar as distorções existentes entre os poderes, e mobilizar a sociedade em defesa de pautas políticas que garantam um caráter mais nacional e democrático à ação governamental.
Enfim, vivemos hoje uma realidade política nova no que diz respeito aos três poderes principais do Estado, no qual o Poder Legislativo goza de um predomínio destacado – o que, pelo que sabemos, nunca existiu na nossa República. Esse é um dado da realidade política que não pode ser descurado, seja nas análises de conjuntura, seja nos planejamentos políticos dos partidos.
A direção das casas legislativas, que ora inicia seus mandatos – em pronunciamentos em entrevistas, discursos de posse e ações iniciais de governança –, já deixou claro que continuará a exercer o poder de gerenciar parte significativa do orçamento da Nação, por meio do instituto das emendas parlamentares. Isso exigirá dos demais poderes, Executivo e Judiciário, e mesmo TCU e MPF, uma ação coordenada no intuito de estabelecerem mecanismos de governança e política orçamentária, com os quais, ao lado de serem auditáveis todos os gastos públicos, sejam feitos, no fundamental, em função de prioridades nacionais e não pulverizados em gastos paroquiais, por meio das emendas.
Além disso, essa direção dá sinais de pôr em marcha pautas da direita, e inclusive da extrema-direita, como a discussão do voto distrital misto. E até mesmo de abrir a discussão sobre a anistia aos golpistas do 8 de janeiro de 2023. Frente a esses sinais, a questão da luta contra o absurdo dessa anistia, e em defesa da democracia, exigirá das forças progressistas um comportamento amplo, porém sem concessão a posições que limitem a ação política das forças que lutam por justiça social e desenvolvimento econômico de nosso país.2
1 Esses poderes estão normatizados, pelas Emendas [Parlamentares] EC-86/2015; EC-100/2019; EC-105/2019; EC-126/2022. Como [pode-se ver,] não constavam da Constituição em sua primeira versão de 1988.
2 Todas as citações feitas, nesse texto, de afirmações do Deputado Hugo Motta, foram retiradas da integra de seu discurso de posse, disponível no site da Câmara dos Deputados.
Ronald Freitas é membro do Comitê Central do PCdoB e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Estado e Instituições da FMG.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.