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    Clube de Leitura

    Tempos Ásperos, de Vargas Llosa: lições para o presente de um passado de golpes

    Por: Carlos Azevedo
    TEMPOS ÁSPEROS: CONHECENDO O PASSADO PARA ENTENDER O FUTURO Mario Vargas Llosa é um reacionário. Prefere Bolsonaro a Lula. Mas é um escritor extraordinário. Sua literatura tem compromisso com a realidade. Basta lembrar dois de seus livros, o monumental Conversa na Catedral, sobre a história trágica do Peru, e Guerra do Fim do Mundo, uma releitura da Guerra de Canudos. Quando um repórter lhe perguntou porque havia passado dois anos vivendo na região de Canudos respondeu que “para mentir bem é preciso pesquisar muito”. Em 2020, ele publicou Tempos Ásperos, em que conduz o leitor à tragédia das ditaduras da América Central nos anos 1950. Um mergulho didático na  origem e arquitetura dos golpes de Estado na América Latina, que serve muito bem às reflexões sobre os tempos ásperos que nossos países vivem no momento histórico atual. Num esquema de revelações parciais, como em um quebra-cabeças, cujas peças vão se ajustando aos poucos, inicia com intrigas corriqueiras de famílias abastadas da Guatemala para logo envolver o leitor num clima de suspense febril num crescendo de espanto e, afinal, de compreensão pungente.  O eixo dessa história é a conspiração para o golpe de estado que derrubou o governo reformista do presidente Jacob Árbenz, em 1954,  71 anos atrás. Eleito democraticamente, Árbenz ousou fazer uma reforma agrária para desenvolver as forças produtivas da Guatemala e tirar da miséria alguns milhões de camponeses indígenas, tendo como exemplo o sistema de governo democrático dos Estados Unidos. História que também se estende às várias ditaduras do Caribe, como a de Trujilo na República Dominicana e Duvalier, no Haiti.  Porém, havia um problema que o moderado Árbenz não havia avaliado bem: as terras da Guatemala e dos outros países vizinhos eram monopolizadas pela United Fruit, a “Bananeira”, ocupadas por plantações de bananas para abastecer o imenso mercado estadunidense usando mão de obra semiescrava. O que aconteceu em seguida está explicado na introdução do livro, no capítulo Antes. Um jovem judeu, Edward Bernays, neto de Sigmund Freud, que se autodenominava “pai da publicidade”, escreveu: 
    “A manipulação consciente e inteligente dos hábitos organizados e das opiniões das massas é um elemento importante da sociedade democrática. Quem manipula esse mecanismo desconhecido da sociedade constitui um governo invisível que é o verdadeiro poder de nosso país... A minoria inteligente tem que fazer uso contínuo e sistemático da propaganda.”
    Ele já tinha comprovado sua técnica várias vezes, notadamente quando, durante a Primeira Guerra Mundial, foi contratado pelo governo dos Estados Unidos para convencer o povo a apoiar a entrada do país na guerra. A opinião pública estadunidense era radicalmente contra entrar na guerra, isso era problema dos europeus. Porém, após seis meses de “notícias” de barbaridades cometidas pelos alemães, sua opinião se tornou totalmente favorável à entrada na guerra. É o que o publicitário chamava de “produção do consentimento”. Bernays teve a oportunidade de aplicar seus métodos com muita eficácia no caso da Guatemala. Por meio de seus contatos com diretores de jornais, começaram a aparecer na imprensa dos Estados Unidos reportagens no New York Times, no Washington Post  e na revista Time, que alertavam sobre o perigo crescente que a influência da União Soviética estava adquirindo naquele país.  O auge se deu quando uma reportagem da agência de notícias United Press  “informava” que a União Soviética tinha a intenção de construir uma base de submarinos na Guatemala. Leia outras resenhas do Clube de Leitura O povo estadunidense, que nunca havia ouvido falar da Guatemala, começou a se sentir ameaçado. E como era a época do pânico insuflado na opinião pública pelo macartismo e pela Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética essa ficção se tornou realidade.  O que se seguiu foi uma ação abertamente conduzida e financiada pelos Estados Unidos, com amplo apoio da sua opinião pública, para formação de um exército de mercenários que invadiu e derrubou o governo de  Árbenz. Mas só conseguiu sucesso após conquistar importantes defecções na oficialidade do Exército guatemalteco.  Um jovem argentino chamado Ernesto Guevara estava na Guatemala e assistiu a tudo.  E levou esse aprendizado para Cuba, a lição de que para ser vitoriosa uma revolução precisa destruir o Exército existente. Foi o que ele fez. Digamos que esse é o roteiro geral do drama guatemalteco. Mas o que é ainda mais fascinante é o desenvolvimento da trama que faz Vargas Llosa. Combina alguma ficção com a realidade dos fatos. Cita todos os personagens pelos seus nomes verdadeiros, não somente os principais  - governantes, militares, conspiradores, mas muitos outros, diplomatas e agentes da CIA, assassinos e mercenários. São impressionantes os retratos que faz de Castillo Armas, ditador da Guatemala, de Trujilo, ditador da República Dominicana (que mandou matar Castillo Armas), e Duvalier, o Papa Doc do Haiti. E há uma mulher, apelidada de Miss Guatemala, embora nunca tenha sido miss, personagem que percorre toda a história, tão rica que até parece ser ficção. A técnica de propaganda desenvolvida pelo neto de Freud foi desde então muito desenvolvida pelos Estados Unidos, tanto para controlar a opinião pública interna como pelo mundo afora, seja pela imprensa, jornais, rádio, TV, cinema, internet, pesquisas tendenciosas. É o chamado soft power que tornou-se essa arma poderosíssima e é um dos sustentáculos do domínio dos Estados Unidos em escala mundial.   Apenas recentemente vimos exemplos desses movimentos em 2013 e 2016 no Brasil, em 2014 no golpe que levou a Ucrânia para a direita fascista, na preparação da opinião pública para as guerras do Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria e agora mesmo na ação de Israel na Palestina e Líbano. Para nós que vivemos tempos ásperos, que assistimos a um governo de reconstrução promover a retomada da economia, a queda do desemprego, o reforço das políticas sociais, ser alvo de uma campanha maciça de desinformação desacreditando o presidente e seu governo, devemos estar cientes da máquina que está por trás disso. Um exemplo: no governo Bolsonaro, o Instituto Datafolha fazia pesquisas em largos intervalos de tempo. No governo Lula tem feito pesquisas mensais... ----------------------------- Tempos Ásperos – Mario Vargas Llosa
    Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman
    Páginas: 279
    Editora: Alfaguara
    Ano: 2020 Para ler um trecho do livro clique aqui ----------------------------- Carlos Azevedo é pesquisador do Grupo de Pesquisa da Fundação Maurício Grabois sobre a Sociedade Brasileira Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.
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