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    Direitos Humanos

    Quem é o terrorista no RJ? A polêmica do Comando Vermelho e o acordo anti-crime com os EUA

    Governador Cláudio Castro busca apoio dos EUA para classificar facções como “organização criminosa internacional”, seguindo a nova política de Donald Trump. Estratégia reforça repressão e militarização sem resolver a violência urbana.

    POR: Thiago Rodrigues

    Soldado mascarado faz patrulha na Rocinha durante intervenção militar. Brasil.
    Soldado mascarado faz patrulha na Rocinha durante intervenção militar. Brasil. Foto: Fernando Frazão/Agência

    Quem é o “terrorista” no Rio de Janeiro? Cláudio Castro, Trump e o acordo anti-crime organizado com os EUA

     

    Fracassos e acusações

    No dia 15 de fevereiro de 2025, um grupo de homens fortemente armados pertencentes ao Comando Vermelho (CV) atacou uma delegacia de polícia em Campos Elíseos, município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. O objetivo era libertar Rodolfo Manhães, vulgo “Rato”, e Wesley do Espírito Santo, apontados como líderes da facção na comunidade de Vai Quem Quer. 

    A 60ª Delegacia foi totalmente destruída pelo poder de fogo dos narcotraficantes. Os chefes do CV só não foram resgatados porque não estavam lá. Dias antes, ambos haviam sido transferidos para outra unidade prisional. Irado com a humilhação causada pela ação, o governador Cláudio Castro (PL) jurou vingança, afirmando que ninguém da “turma dos direitos humanos” iria evitar que os “terroristas” fossem severamente punidos. 

    Não foi a primeira vez que Castro, bolsonarista que assumiu após o impeachment de Wilson Witzel (o que prometeu “atirar na cabecinha” de suspeitos de crimes), referiu-se ao narcotráfico fluminense como “terrorista”. Em outubro de 2024, o governador usou o mesmo termo, mas aplicando-o ao Terceiro Comando Puro (TCP), após um tiroteio entre traficantes e policiais na altura do Complexo de Israel, na Zona Norte do Rio de Janeiro. No episódio, três pessoas morreram e duas ficaram feridas.

    O motivo da operação era prender Álvaro Malaquias Santa Rosa, o “Peixão”, líder do TCP local. No entanto, Peixão, que é um traficante fundamentalista neopentecostal, não foi localizado. Para Castro, os membros do TCP atiraram deliberadamente na população que transitava pela Avenida Brasil, daí a acusação de “terrorismo”. A operação foi um outro fracasso numa série de ações violentas que tem resultado em mortes, pânico e interrupção da vida cotidiana dos cidadãos e cidadãs, sem que o crime organizado do estado do RJ seja minimamente abalado.

    Continência para a bandeira americana

    No dia 24 de fevereiro de 2025, a Secretaria de Segurança Pública do RJ informou que estava em conversações avançadas com o governo dos Estados Unidos para que ele reconhecesse o Comando Vermelho como “organização criminosa internacional”. Esta classificação é estabelecida pelo Departamento de Estado 一 o ministério de relações exteriores dos EUA 一 e permite ações por parte da Justiça estadunidense como, entre outras, o congelamento de dinheiro atribuído a líderes do crime organizado internacional, o controle de transações financeiras em bancos nacionais e estrangeiros, e indiciamento de nacionais e estrangeiros por associação com o crime organizado.

    Os poderes atribuídos ao Estado americano no combate ao crime organizado internacional datam dos anos 1970 一 na mesma época da declaração de “guerra às drogas” pelo governo de Richard Nixon 一, mas foram significativamente aumentados após o Ato Patriota de 2001, grande pacote de mudanças legais destinado a enfrentar o terrorismo que foi aprovado logo após os atentados de 11 de setembro daquele ano. Desde então, “terrorismo” e “crime organizado” passaram a andar juntos como categorias que se reforçam, constituindo um “inimigo” útil para justificar políticas de segurança dentro e fora dos EUA. 

    No senso comum mundial, a mera menção a “terrorismo” ou a “crime organizado” é suficiente para provocar temor e, por conta disso, aprovação das mais duras táticas repressivas, como o aprisionamento em massa, a invasão de países, o massacre de populações marginalizadas e a manutenção de pessoas presas sem o direito de defesa. Quando os dois “perigos” são associados, o temor se transforma em histeria e em licença ampliada do Estado para matar. 

    Não é coincidência, portanto, que a negociação do governo estadual do RJ com a diplomacia estadunidense aconteça ao mesmo tempo em que Castro insiste em identificar o crime organizado local como “terrorista”. O momento para tal aproximação é propício: Donald Trump acaba de assumir pela segunda vez a presidência dos EUA, e logo no seu primeiro dia de governo, assinou um decreto 一 a Ordem Executiva n. 14157 一 em que definiu alguns grupos do crime organizado latino-americano como “terroristas”. A Ordem Executiva deu um mês para que o Departamento de Estado detalhasse os grupos que entrariam nessa nova classificação. 

    O Secretário de Estado Marco Rubio (à direita), o Conselheiro de Segurança Nacional Mike Waltz (ao centro) e o Secretário de Defesa Pete Hegseth (à esquerda) são os responsáveis por implementar a política de segurança de Trump. Foto: The White House / X via Wikimedia Commons

    O prazo foi cumprido no dia 20 de fevereiro de 2025, quando o Secretário de Estado Marco Rubio, um feroz conservador de ascendência cubana, designou os grupos incluídos na lista de Organizações Terroristas Estrangeiras e Organizações Terroristas Globais Especialmente Designadas. São eles o Tren de Aragua, da Venezuela, a Mara Salvatrucha/MS-13, de El Salvador, e os cartéis mexicanos Cártel de Sinaloa, Cártel Jalisco Nueva Generación, Cártel del Golfo, Nova Familia Michoacana, Cártel del Noroeste (antigo Los Zetas) e Cartéis Unidos. 

    Leia também: Trump usa guerra ao narcotráfico como pretexto para militarizar América Latina 

    Ser identificado como “organização terroristas estrangeira” abre a possibilidade de que uma organização sofra todo o peso da máquina militar, do aparato de vigilância e do poder econômico dos EUA. Isso significa não apenas ser alvo de tudo o que a classificação como “grupo do crime organizado” já autoriza, como também que seus membros sejam passíveis de serem presos arbitrariamente, assassinados sem prestação de contas ou isolados em campos de prisioneiros. Em resumo, ficam na mira da força máxima do aparato estatal da maior potência militar do mundo, sem os limites estabelecidos pelo Estado de Direito. 

    Terrorismo de Estado

    A literatura especializada da ciência política tem um conceito para as ações levadas a cabo por Estados que agem em nome da “segurança” sem respeito aos direitos humanos ou às regras do Estado de Direito: “terrorismo de Estado”. Numa democracia liberal como os Estados Unidos eram formalmente em 2001, os poderes extraordinários conferidos ao Poder Executivo 一 leia-se, “fora dos limites do Estado de Direito” 一 foram justificados pela necessidade de combater o terrorismo transnacional. A apavorada população estadunidense majoritariamente aceitou e legitimou o “terrorismo de Estado” pensando ser esta a melhor forma de salvar o país e a própria vida.

    Num país como o Brasil e, particularmente, num estado como o Rio de Janeiro, esta “licença para matar” acontece diariamente, mesmo que não seja plenamente oficializada com uma versão local do Ato Patriota. A grande imprensa, as forças políticas conservadoras, os segmentos mais reacionários das classes média e alta e, até mesmo, políticos do campo progressista e parte importante das classes trabalhadoras chancelam que o Estado mate em nome da ordem e da segurança. 

    Se nos EUA do pós-2001, ser identificado como “terrorista” tornou uma pessoa imediatamente “torturável” ou “matável”, no Brasil, mesmo sem um 11 de Setembro, existe um conjunto de pessoas que são historicamente “torturáveis” e “matáveis”: são as pessoas negras, marginalizadas, vulneráveis e periféricas. Entre estas pessoas é que estão os “terroristas” de Cláudio Castro e é contra elas que o Estado do Rio de Janeiro 一 e todos os demais 一 praticam cotidianamente a nossa versão do “terrorismo de Estado”. Essa versão tem muito de versões anteriores, como o Estado escravocrata e o Estado de Exceção da ditadura civil-militar. 

    Na atual forma, os “inimigos” têm o mesmo tom de pele e origem social de sempre, mas são considerados “perigosos” não porque sejam escravos ou subversivos, mas porque são “membros de facções do crime organizado”.

    O que muda se o acordo do governo do RJ com o Departamento de Estado trumpista for celebrado? Na prática, nada ou muito pouco, pois terá o Comando Vermelho recursos em bancos americanos para serem congelados? Terá o CV membros em penitenciárias dos EUA? Será que tem algum? Não há nenhuma prova de que o CV aja abertamente nos EUA. Apesar disso, um acordo nestes termos tem grande potencial ideológico e pode ser uma peça importante da campanha de Castro ao governo estadual em 2026. 

    A população fluminense, cansada e amedrontada por tanta violência do crime organizado e da polícia, segue acreditando que quanto mais força repressiva, mais chances de que haja segurança. Ledo engano; mas um engano difícil de desmentir quando as elites, classes médias e os seus órgãos de imprensa e de difusão ideológica insistem em cultivar o medo e a esperança de salvação pela lógica do “olho por olho, dente por dente”. 

    Leia também: Guarda Municipal para atuar na prevenção da violência

    Qualquer pessoa que apresente dados ou argumentos que contrariem a tática da segurança pública centrada na violência é, imediatamente, taxada como a “turma dos direitos humanos” ou coisa pior. Não há cientificidade alguma na classificação das facções como “terroristas”, mas a imagem é poderosa demais para que o populismo punitivista a deixe de lado. Enquanto isso, com ou sem acordo com os EUA, o Estado no Rio de Janeiro continua sendo o principal agente de violência num cenário de total desolação. 

    Thiago Rodrigues é cientista político, professor associado no Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador no Niep-Marx/UFF, GENI/UFF, no PsicoCult/UFF e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG

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