Não é só ignorância, é preconceito – Certa feita, fui acusada por um vereador da extrema direita, na Câmara Municipal do Recife, de utilizar no meu discurso expressões que “não constavam no dicionário”. O contexto era o seguinte: votei contra um requerimento que solicitava o desligamento de lombadas eletrônicas de fiscalização para aumentar a velocidade dos carros nas vias públicas. Ao justificar meu voto contrário, disse que não concordava com a “carrocracia”, me referindo ao fato de que o automóvel enquanto transporte individual não pode ser pensado como prioridade entre os pedestres e modais coletivos.
Facilmente achada quando se dá um mero google, a expressão desagradou ao parlamentar que me acusou de “inventar” palavras. Segundo ele, ao falar na tribuna, deveríamos nos ater apenas ao que está no dicionário da língua portuguesa, ipsi litteris. Longe de me sentir ofendida – uma vez que meu ofício de ser poeta está intimamente ligado ao desafio de fazer palavra rodopiar, entendi que precisaria explicar o óbvio: linguagem é construção de ideias, de sentimentos que se baseiam em signos que podem ser convencionais, sonoros, gráficos, gestuais etc. O que se fala aqui não necessariamente se fala acolá porque neste meio do caminho existem diversos contextos sociopolíticos e econômicos que definem em qual prateleira cabem essas ou aquelas palavras, se entram ou não no tal “dicionário”. Palavra é do universo da Cultura e Cultura é movimento. Cultura é um rito de circularidade, dinâmico, gregário. O surgimento de novas expressões linguísticas é da sua natureza.
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Ao tentar me constranger publicamente no plenário da Casa, o vereador além de escancarar o desprezo pela segurança física das pessoas, também deixou claro seu enorme preconceito linguístico. Estreitar nossa forma de falar é negar a pluralidade e o conhecimento da nossa gente. Aliás, é uma falácia afirmar que no Brasil falamos apenas o português brasileiro. A própria – e genial – Lélia González já tratou de renomear essa tal língua para o “pretuguês”, devido à influência dos povos africanos na nossa cultura. Ao escavar as palavras, é possível identificar a mistura e resistência das tantas etnias que habitavam essas terras e das que vieram escravizadas. “Dengo” talvez seja uma das nossas melhores heranças. Tenho certeza que este rapaz nunca ouviu falar no pernambucano linguista Marcos Bagno, empenhado e dedicado trabalhador na luta contra os preconceitos, que terminam descambando para o racismo e para a segregação das classes sociais menos privilegiadas.

Professora indígena registra expressões linguísticas do povo Karipuna. Foto: Iphan/Divulgação
O Inventário Nacional da Diversidade Linguística, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), estima que mais de 250 línguas sejam faladas no Brasil, entre indígenas, de imigração, de sinais, crioulas e afro-brasileiras. Isso se não considerarmos as muitas e várias linguagens praticadas pelas artes e pelas especialidades das inúmeras profissões existentes. Todo dia, a toda hora, expressões novas são criadas no panorama da diversidade brasileira. A qual dicionário o vereador se referia? Tudo o que dizemos e como dizemos está repleto de camadas de colonização, resistência, conflitos e lutas. Linguagem é poder.
Um exemplo claro é que a palavra “feminicídio” só entrou no dicionário brasileiro em 2015, mesmo sendo histórica a luta do movimento feminista ao alertar que nós mulheres morremos por questões de gênero. Assim como “gordofobia” só apareceu nos últimos anos nos Aurélios, mesmo já sendo política pública do Recife, a primeira capital do Brasil a contar com tais leis, fruto do trabalho do meu mandato. Expressões populares ou advindas de grupos minoritários só conseguem alçar as finas páginas do dicionário quando furam as muitas bolhas do capitalismo, do patriarcado, das universidades, das elites brasileiras. Que dicionário queremos celebrar?
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Ao subir na tribuna da Câmara, não levo apenas meu conhecimento técnico sobre determinado tema, mas também tudo que aprendi em Bodocó, com minha mãe que nunca foi à escola mas me ensinou a ler. As memórias que criei com Zé Pedro, um carpinteiro que fazia porteiras e cochos para os animais e que, à noite, ao redor da fogueira, contava histórias para as crianças. Trago na minha voz e no meu coração o som terral de Seu Bindô, um gênio da cantoria e do aboio da Serra do Araripe, nas cercanias da Pedra do Claranã. Ao falar no microfone do Plenário, carrego comigo os e as trabalhadoras do campo que ajudaram a me formar como gente, carrego a potência dos meus ancestrais. Eles são maiores que qualquer dicionário.
Que a extrema direita não gosta de cultura, já sabemos. O que precisamos lembrar, sempre, é que eles passarão e nós, inventores de palavras e burladores de dicionários, seguiremos construindo mundos e memórias mais plurais e coletivas. Afinal, palavra é bicho solto, vereador. Para ter intimidade com elas, tem que ser afeita aos encantamentos e, talvez, eles não tenham espaço no teu dicionário.
Cida Pedrosa é advogada, poeta, escritora premiada e vereadora reeleita do Recife. É membro do Grupo de Pesquisa Cultura & Sociedade da Fundação Maurício Grabois.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.