Como se apresenta a realidade atual
À medida que o tempo passa e vai se realizando o terceiro governo do presidente Lula — já se vão 26 meses, de um total de 48 —, a espera de que o governo deslanche em realizações e popularidade é crescente no campo democrático e progressista do país. Mas o que fatos vêm demonstrando é que, embora o governo tenha obtido êxitos em reconstruir parte do arcabouço burocrático, que ordena segmentos do Estado brasileiro – como a reativação da criação de programas sociais estruturantes, por exemplo, bolsa família, minha casa minha vida, mais médicos –, e criado novos como “pé-de-meia”, bem como procurado retomar programas de reanimação industrial, com o novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e o Programa Nova Indústria Brasil (NIB), e encaminhado para discussão e aprovação do Legislativo temas de largo alcance econômico, político e social – como Reforma Tributária, Flexibilização do teto de gastos, com o título de novo arcabouço fiscal etc. – o seu governo patina e, segundo as últimas pesquisas, perde aprovação da sociedade.
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Uma análise isenta e desapaixonada dessa realidade é um desafio que se coloca para o campo progressista e democrático, do nosso espectro político, mormente para os setores de esquerda.
Na economia, convivemos com uma situação paradoxal: de um lado, o PIB cresce, o desemprego cai a níveis muito baixos, a indústria passa a contribuir de forma mais significativa para a formação do PIB, etc. E, de outro lado, a inflação é crescente, há aumentos de preços, principalmente de itens básicos de consumo popular, que são sentidos no bolso da população, principalmente a de baixa renda quando vai fazer suas compras.
Na política, a disfuncionalidade das instituições do Estado, particularmente com o papel hoje jogado pelo Legislativo, é um fator inibidor da realização de políticas públicas que promovam o desenvolvimento da Nação e simultaneamente diminuam o fosso social entre as classes e camadas sociais. O atual poder Legislativo transformou-se em uma arena de disputas, pouco republicanas, pela apropriação do dinheiro público, por meio das tão faladas emendas parlamentares.
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Na esfera social, aumentam as desigualdades, trazendo no seu bojo mais miséria para os já desvalidos e o aumento da criminalidade para toda a sociedade, gerando um clima de insegurança social que atinge indiscriminadamente cada cidadão e cidadã.
E esse cenário acima descrito, trabalhado pela oposição de direita e extrema-direita de forma eficiente, particularmente no que diz respeito aos modernos instrumentos de comunicação social, leva a maioria da sociedade a uma sensação de abandono pelo poder público (leia-se governo Lula). Essa sensação de abandono pelo governo e descrença na política, (como o locus público onde se deve mediar os conflitos existentes na sociedade), pela maioria da população, está na base do espaço que se abre para o surgimento e atuação de políticos de extrema-direita, de perfil messiânico e de visão neofacista de governo.
Este cenário, levemente esboçado nos parágrafos anteriores, é uma apertada síntese da situação conjuntural que atravessamos.
Aspectos da situação estrutural
É numa abordagem mais aprofundada da realidade, que procura examinar os fundamentos da situação descrita – à qual chamamos de estrutural –, é que se encontram os caminhos para que sejam elaboradas e executadas propostas que nos levem à superação de tão desafiador cenário.
No terreno da política, stricto sensu, a meu ver devemos abrir com a sociedade um debate, onde possamos mostrar que, com a atual forma de como o Estado Nacional Brasileiro está organizado e administrado, será impossível levar à frente um projeto de desenvolvimento nacional soberano e com inclusão social. Na atualidade o Estado brasileiro passa por um período de controle do alto capital bancário e financeiro, do alto capital do agronegócio e de setores da alta burocracia estatal (civil e militar), todos eles associados, em diferentes escalas, com os interesses do capital imperialista internacional, que são empecilhos estruturais para que possamos levar adiante um programa nacional de desenvolvimento soberano e socialmente inclusivo, como o país necessita.
Urge discutirmos com a sociedade um projeto de REFORMA POLÍTICA, que reorganize o Estado Nacional. Para tanto, faz-se urgente a elaboração de um Plano Nacional de Desenvolvimento, que defina as prioridades nacionais estratégicas em todos os campos de nossa vida social. Seja no terreno das tecnologias de ponta hoje em desenvolvimento, seja no terreno da modernização de infraestrutura logística, urbana e rural, seja no terreno da segurança pública, com destaque para o combate ao crime organizado de qualquer natureza, seja no terreno educacional em todos os níveis, seja no terreno da ciência e tecnologia, etc. Para isso, torna-se imperativo restabelecer e mesmo estabelecer um reequilíbrio entre os poderes fundamentais da República, devolvendo ao Executivo a capacidade de executar o orçamento da Nação, em função desse Plano Nacional, e de ser o indutor da implementação das políticas públicas desse Plano derivadas.
Na área econômica, é necessária uma mudança profunda nos rumos conceituais e teóricos que regem a economia do país. Hoje predominam, de forma quase absoluta, os princípios orientadores da economia neoliberal, na qual o Estado é reduzido a um mero apêndice do grande capital nacional e internacional, financeiro ou não. É preciso abrir na sociedade um debate sobre que tipo de Economia Política é necessário para que possamos levar à frente uma Política Econômica a serviço da implementação do Plano Nacional de Desenvolvimento acima referido.
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Para isso é imprescindível implementar um debate crítico acerca do fio orientador de nossa Economia Política, que está sintetizado no chamado Consenso de Washington, baseado nos dez pontos elaborados pelo economista John Williamson, em 1989, impostos mundo afora pelo FMI, Banco Mundial e o governo americano: disciplina fiscal, redução dos gastos públicos, reforma tributária, juros de mercado, câmbio livre, abertura comercial, eliminação de restrições ao investimento estrangeiro direto, privatização de estatais, desregulamentação, direito à propriedade intelectual.
Necessitamos elaborar um Plano de desenvolvimento baseado numa visão basicamente antagônica à estabelecida pelo Consenso de Washington, ou seja: Ter o Estado como indutor do desenvolvimento por meio de incentivo ao surgimento e desenvolvimento de empresas públicas e privadas. Onde o governo não paute sua política econômica pela austeridade, derivada da disciplina fiscal e da limitação dos gastos públicos, necessários para promover o crescimento econômico. Onde a política cambial esteja a serviço do desenvolvimento nacional, e não ao do livre-cambismo exigido pelo sistema financeiro internacional. Onde, sem discriminação, haja espaço para atuação de capitais estrangeiros, desde que devidamente regulados, e destinados ao setor produtivo da economia e não a especulação financeira. Onde sejam revertidas as privatizações de áreas estratégicas, como as do setor de energia elétrica, de telecomunicações, de informática; de empresas importantes da cadeia de Óleo & Gás. E que a lisura e moralidade no uso do dinheiro público sejam um princípio orientador da administração, em todos os níveis e instâncias, e não um mero instrumento de justificativa para “cortar gastos”, ditos supérfluos, para pagar os juros escorchantes de uma dívida pública, no fundamental imposta ao Estado por meio de seus agentes no governo.
No ambiente político-social, é urgente construir mecanismos de mobilização da base da sociedade que, devidamente organizada e engajada em torno das propostas do Plano Nacional de desenvolvimento, seja o esteio do governo, principalmente do Executivo, no processo de implementação das propostas de mudanças. Para isso torna-se imperativo rever as reformas trabalhistas e sindicais implementadas, pelos governos Temer e Bolsonaro, que levaram à desorganização das massas trabalhadoras – dessa maneira, fragmentando-as e, em certo sentido, anulando o seu poder de pressão política sobre os governos e patrões – a fim de verem seus interesses preservados e ampliados. Além disso, está diante de nós o desafio de criar novos instrumentos de mobilização que contemplem as novas formas de trabalho, derivadas de inovações tecnológicas, que permitem uma superexploração do trabalho por meio do fenômeno chamado de uberização.
Também é da maior importância termos, no governo, um setor de comunicações que, ao lado de dominar eficazmente os novos meios de comunicação de massas, tenha como fator central a disseminação de conteúdos que exaltem a importância de construirmos um Brasil soberano, desenvolvido e socialmente mais justo, despertando na sociedade como um todo, mas principalmente nas suas camadas de base, um sadio sentimento de que defender a Nação e sua soberania e defender a implementação de políticas econômicas que tenham como foco aumentar o poder e a soberania nacionais são atitudes ideológicas fundamentais para que possamos ter êxito na superação dos impasses estruturais, e dos empecilhos conjunturais que nos conduzem a um beco sem saída. E, além disso, conscientizando o conjunto da sociedade, e em particular as massas trabalhadoras que, sem essa superação, não serão extintas as profundas chagas sociais que existem entre nós.
Mas… e a correlação de forças? Como torná-la favorável a atingir esses objetivos?
Essa é uma questão central da política. Só se faz avançar projetos políticos, seja progressista, seja regressista, se os defensores de cada um deles tiver força política capaz de levá-los adiante (isso é aparentemente acaciano, mas…). E, nas condições atuais da política nacional, os ventos da correlação de forças não são favoráveis à implementação das ideias e propostas expostas acima. Porém, essa mera constatação não pode ser um escudo para circunscrevermos nossa ação política aos limites impostos pela correlação de forças hoje existente no Brasil e mesmo no mundo.
Vivemos um período de grande instabilidade geopolítica, em escala mundial, que repercute — e continuará repercutindo — em nossa política interna, na qual inúmeros indicadores nos mostram uma tendência de aguçamento das contradições entre o imperialismo e povos e nações soberanos, e mesmo contradições interimperialistas que criam uma situação de instabilidade em escala mundial, onde o uso da força para resolver, ou tentar resolvê-las, expressa-se no ambiente de guerras localizadas — seja na Ucrânia, seja no Oriente Médio, seja na África —, que podem se generalizar em um novo conflito de escala mundial.
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Diante de um cenário desse tipo na cena externa e de nossas condições de crise interna, convém nos prepararmos desde logo para ter que viver num mundo mais instável e inseguro – o que torna necessária a implementação de um Projeto Nacional de Desenvolvimento soberano, democrático e socialmente mais justo, que nos capacite a enfrentar eventuais conflitos militares mais intensos que, no limite, podem atingir nossas fronteiras.
Nesse sentido, iniciar um debate em torno de como viabilizar um Projeto de Construção de um Brasil desenvolvido, soberano e socialmente mais justo, cujo conteúdo extrapole os limites impostos pelo capital financeiro nacional e internacional, bem como os limites da visão de uma social-democracia mitigada, é um desafio inadiável que as forças progressistas, democráticas e de esquerda devem se impor.
Ronald Freitas é membro do Comitê Central do PCdoB e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Estado e Instituições da FMG.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.