Trocando em Miúdos: Panorama da Resistência contra Trump 2.0. A Luta contra a Oligarquia Começou Cedo – Muito se tem escrito sobre as barbaridades e medidas inconstitucionais tomadas pela administração Trump 2.0. Em cada um dos últimos 50 dias, decretos presidenciais e medidas arbitrárias contra o Estado de Direito foram implementados a toque de caixa pelo presidente e seu ministro informal, Elon Musk. A campanha ofensiva contra o setor público federal tem sido chamada de Choque e Pavor (Shock and Awe em inglês), parafraseando a campanha militar de 2003 do exército dos Estados Unidos contra o Iraque.
A grande velocidade do desmonte do governo federal em 2025 deixa claro que o presidente Trump 2.0 aprendeu com a resistência aos seus planos imposta pelo mal denominado “Estado Administrativo”, que ele pretendia destruir.
No primeiro mandato, Trump ficou famoso pelo slogan que ele próprio cunhou: “drenar o pântano” existente na capital Washington, referindo-se ao combate à corrupção e à influência dos lobbies que, segundo ele, dominavam o governo Obama.
O fracasso de Trump 1.0 em limpar o terreno para reestruturar o Estado conforme o slogan Make America Great Again (MAGA) deu origem ao atual Projeto 2025, da Heritage Foundation, que mapeou os inimigos e definiu onde concentrar as baterias no governo Trump 2.0. O austericídio à la Musk é o carro-chefe dessa empreitada.
Por outro lado, pouco tem sido divulgado sobre a outra face da moeda, isto é, sobre como o povo estadunidense e seus líderes estão reagindo contra o Projeto 2025. Os golpes desferidos contra a democracia, os direitos civis, a ciência e, por que não dizer, o Estado de bem-estar construído ao longo de décadas nos EUA — apesar de insuficiente para atender às necessidades básicas da população — geraram, em um primeiro momento, sentimentos de medo, ansiedade e raiva em grande parte da sociedade.
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A liderança do Partido Democrata demonstrou muita vacilação no enfrentamento e teve pouca capacidade de resposta ao longo do mês de fevereiro. Usando uma metáfora do boxe, Trump saiu amplamente vitorioso no primeiro round do seu governo. Entretanto, este round durou pouco: já a partir do final de fevereiro, diversos grupos organizaram manifestações e protestos em todo o país. Procuradores-gerais de vários estados contestaram os decretos ilegais de Trump, e juízes federais de primeira e segunda instância, muitos nomeados por Obama ou Biden, ordenaram reversão de vários decretos por sua inconstitucionalidade ou ilegalidade.
No final de fevereiro, a bancada do estado de Vermont, formada pelos senadores Bernie Sanders e Peter Welch e pela deputada federal Becca Balint, organizou uma teleconferência sobre o governo Trump, que contou com a participação de mais de 34 mil pessoas. Em seguida, houve assembleias populares (town halls) lideradas por Sanders, que reuniram milhares de pessoas em Iowa, Michigan e Nebraska, estados localizados no Meio-Oeste. Sanders, senador independente e principal líder da oposição progressista a Trump, denuncia o governo Trump 2.0 como um neofascista e a serviço de uma minoria de oligarcas. Ele critica duramente Elon Musk por suas declarações contra os funcionários públicos e contra a grande maioria do povo americano (os 99%), além de defender a necessidade de organização popular para derrotar a privatização do seguro social, o autoritarismo e as políticas neoliberais executadas pelo gabinete de Trump.Outro ponto importante nesses encontros é o impacto negativo da imposição de tarifas sobre produtos importados do México e do Canadá, que afetarão com mais intensidade a economia dos vários estados fronteiriços com esses países.
Recentemente, Alexandria Ocasio-Cortez, deputada federal pelo estado de Nova York, conhecida como AOC, juntou-se ao senador para participar das assembleias populares em diversos estados. AOC faz parte do grupo de quatro deputadas eleitas em 2018 que constituem o bloco feminino do Partido Democrata, conhecido como “Esquadrão” (Squad, em inglês), que representa o setor mais combativo do partido. Além disso, um pequeno grupo de deputados e senadores democratas tem organizado assembleias em distritos com maioria republicana para denunciar como os profundos cortes em programas sociais, como o Medicaid, vão reduzir significativamente o acesso a serviços de saúde para milhões de pessoas em todo o país, independentemente do partido político ao qual pertençam. Esta movimentação de alguns políticos democratas em reação ao austericídio a la Musk é sinal de que Trump não vai sair ileso do segundo round e deverá perder apoio assim que os impactos dos cortes forem sentidos pelos eleitores.

Stand Up for Science – Os protestos “Defenda a Ciência” reuniram dezenas de milhares de estadunidenses em todo o país contra o corte de verbas e a eliminação de programas científicos pelo governo Trump, em 7 de março de 2025. Foto: Geoff Livingston/Flickr/CC
No dia 7 de março, houve protestos em várias cidades contra os cortes de verbas para pesquisas no Instituto Nacional de Saúde (NIH) e na Fundação Nacional de Ciências (NSF). Milhares de pós-graduandos, professores, e pesquisadores (inclusive alguns que receberam prêmios Nobel) participaram de demonstrações em defesa da ciência e contra o obscurantismo do ministro da saúde, Robert Kennedy Jr. Participei do protesto em Boston e vi ao vivo e a cores a disposição de luta da intelectualidade progressista contra a barbárie negacionista e obscurantista deste Kennedy, que defende ideias e visões completamente contrárias à tradição da família Kennedy no estado e no país.
A rede virtual e descentralizada chamada Indivisível (Indivisible), representante informal de parte da base eleitoral do Partido Democrata, mas não limitada a ela, tem organizado grande número de protestos e mobilizações, que vão desde piquetes, manifestações na sede dos escritórios locais de políticos republicanos e em praças públicas adjacentes às assembleias legislativas estaduais ao cerco de revendas de carros Tesla. Funcionários públicos demitidos estão se filiando a sindicatos de servidores federais e organizando demonstrações contra Musk. Milhares de pessoas têm participado dessas mobilizações. Esta rede também está convocando dezenas de grupos locais para organizar um dia nacional de lutas em todo o país, em 5 de abril, com o lema Hands Off (Tirem as Mãos) dos nossos programas sociais como Medicare, Medicaid, seguridade social, educação pública, benefícios dos veteranos, e da democracia. “Tirar as mãos”, aqui, significa protestar contra a tentativa de Elon Musk e Trump de meter as mãos nos direitos constitucionais e nos setores perseguidos pelo governo.
Como consequência do desgaste criado pelas cobranças de eleitores republicanos, particularmente veteranos de guerras, em reuniões com deputados federais em seus distritos, o Partido Republicano orientou seus deputados a não realizarem mais encontros com eleitores, para evitar conflitos entre as bases e o partido. A mudança de procedimento significa que na própria base trumpista começa a surgir oposição ao estelionato eleitoral de Trump, que não havia prometido demitir milhares de pessoas nem cortar verbas de programas essenciais à sobrevivência e ao bem-estar de milhões de estadunidenses.
Em muitas cidades e alguns estados dos Estados Unidos, conhecidos como cidades-santuário, onde foram aprovadas há alguns anos leis locais para proteger imigrantes indocumentados contra a deportação, organizações não governamentais (ONGs) têm feito manifestações de rua denunciando os decretos de Trump. As leis proíbem a colaboração de policiais municipais ou estaduais com a agência federal Immigration and Customs Enforcement (ICE), encarregada de fazer cumprir o decreto de Trump para deportar esses imigrantes. Tal proteção dificulta o trabalho da ICE porque a prisão quase sempre ocorre de forma arbitrária, sem qualquer ordem judicial e respeito pelos direitos dos cidadãos. Por exemplo, a polícia não pode legalmente pedir documentos de imigração para qualquer um sem que haja flagrante ou suspeita de crime. Ao impedir que policiais cumpram com os decretos anti-imigrantes de Trump, cria-se uma barreira à deportação em massa. Essas ONGs têm treinado imigrantes latinos sobre as leis civis dos Estados Unidos, para que eles conheçam seus direitos e se neguem a fornecer informações à polícia sem ordem judicial.
Outras iniciativas na mesma direção são as resoluções de “Zonas Seguras” adotadas por universidades e escolas para proteger estudantes e trabalhadores indocumentados. O objetivo dessas resoluções é criar espaços onde a ICE não receba a colaboração dos administradores para cumprir os decretos anti-imigrantes. Os campi são declarados espaços privados e proíbem a divulgação de informação privada sobre os estudantes ou empregados. Além disso, essas resoluções exigem que qualquer oficial da ICE tenha que notificar os dirigentes dos campi antes de qualquer batida ou busca de imigrantes indocumentados. Embora não garantam total proteção aos imigrantes, elas criam empecilhos burocráticos e legais que dificultam a prisão e posterior deportação.

Michelle Wu, prefeita de Boston, discursa durante evento público com a comunidade islâmica da cidade. Foto: Michelle Wu / Facebook / Divulgação.
Um exemplo da combativa resistência contra a repressão aos imigrantes indocumentados ocorreu recentemente quando a prefeita democrata de Boston, Michelle Wu, descendente de imigrantes chineses, reagiu com firmeza às provocações da bancada republicana em audiência com prefeitos democratas no Comitê de Supervisão da Câmara dos Deputados. A prefeita defendeu a política municipal de solidariedade com imigrantes ao afirmar:
“Esta administração federal está fazendo com que gente que trabalha duro, paga impostos, e acredita no poder de Deus tenha medo de viver a sua vida normal. Uma cidade com medo não é uma cidade segura. Uma terra governada pelo medo não é uma terra livre.”
Ao fim e ao cabo, o confronto entre governos locais e estaduais democratas e o governo Trump tende a se acirrar nos próximos meses, pois as medidas repressivas e austericidas do governo federal impactarão a população de muitos estados. Provavelmente, veremos reações de indignação e pressão das bases sobre os prefeitos, governadores e demais representantes eleitos. Está ficando claro a cada semana que um movimento popular contra Trump e Musk se desenvolve e é responsável pelas faixas e cartazes contra ambos que surgem nos quatro cantos do país. Trata-se ainda de um começo, mas que aponta para movimentos de massa muito maiores nos próximos meses.
Entretanto, ainda se notam debilidades importantes nesse movimento. Falta coordenação e unidade entre as variadas manifestações de setores populares, que ainda sofrem de espontaneísmo, divisionismo e ausência de bandeiras claras capazes de aglutinar amplos setores sociais. A paralisia da liderança do partido democrata, controlada por neoliberais e neoconservadores dirigidos pelos Clinton e os Obama, joga contra uma resposta unificada. Além disso, os setores mais combativos contra Trump na política interna tem quase unanimidade em apoiar a Ucrânia e declarar Putin como ditador. A China é vista como ameaça comunista e, portanto, inimiga. Combatem o neofascismo de Trump internamente, mas seguem muito pouco claros sobre o papel do imperialismo dos EUA em nível mundial ao promover guerras, invadir países soberanos e sustentar uma nova Guerra Fria.
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Essas debilidades não são novas e refletem certa surpresa diante da profundidade do ataque de Trump e da insuficiente resposta dos líderes democratas e da sociedade civil como um todo. Afinal, não é à toa que o Partido Democrata perdeu as últimas eleições com uma campanha e plataforma neoliberais, descoladas do sentimento e dos interesses de grande parte dos setores populares, favoráveis ao sionismo e marcadas pela sino e russofobia. Apesar de tudo, a vitória de Trump não foi esmagadora. Cerca de 30% dos eleitores nem sequer votaram, e boa parte deles muito provavelmente se mobilizará nas eleições de 2026.
A falta de um partido comprometido com outro projeto de sociedade, anti-imperialista e socialista, torna a construção de uma frente anti-fascista muito mais difícil. Por enquanto, Trump segue com popularidade relativamente alta, mas pouco a pouco exagera na dose, ataca as bases de ambos os partidos com medidas impopulares, incluindo setores da pequena, média e grande burguesia direta ou indiretamente afetados pelas tarifas. Como aconteceu no governo Trump 1.0, perderá apoio à medida em que os impactos negativos sejam sentidos e entendidos.
Felizmente, a sociedade dos EUA tem demonstrado, ao longo de sua história, que sabe resistir quando crises políticas amadurecem na consciência do povo, conforme demonstrou Howard Zinn em seu famoso livro A História Popular dos Estados Unidos (People’s History of the United States). No momento atual, será necessário o fortalecimento de movimentos sociais baseados na desobediência civil, seguindo a experiência vitoriosa dos anos 60, quando Martin Luther King, Malcolm X, os Panteras Negras, os Estudantes por uma Sociedade Democrática e setores do movimento sindical dirigiram uma grande rebelião popular de leste a oeste do país. Ainda falta muito para chegar lá, mas, para aqueles que acham que Trump é hegemônico e vai impor seu projeto com facilidade, é melhor ir devagar com o andor. A decadência do império estadunidense e o fortalecimento do polo anti-imperialista aceleram os tempos e movimentos da classe dominante dos Estados Unidos, mas, dialeticamente, também aceleram a resposta dos de baixo.
O mais importante para uma análise concreta e dialética do governo Trump é entender que o povo americano já começou a reagir porque, como dizia Garrincha, Trump não combinou com os russos, e sua demagogia tem manga curta. Se, por um lado, os trumpistas MAGA seguem fortes, apesar das incipientes divergências entre eles e os barões das Big Techs, os próximos rounds prometem ser cada vez mais disputados. Os futuros confrontos refletirão a dinâmica da luta de classes em desenvolvimento, já que contradições importantes entre o Projeto 2025 e os interesses do povo americano começam a ficar evidentes para milhões. Na verdade, a resistência até que começou cedo!
Eduardo Siqueira é professor na Universidade de Massachusetts, Boston, EUA e pesquisador do Observatório Internacional da FMG.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.