Na última semana, o cineasta palestino Hamdan Ballal, vencedor do Oscar pelo documentário “Sem Chão”, foi sequestrado e agredido violentamente por soldados israelenses. Esse foi apenas mais um capítulo da crescente violência promovida pelo Estado de Israel contra o povo palestino.
Os dados da Federação Árabe Palestina do Brasil (FEPAL) indicam que mais de 90% da população de Gaza foi deslocada pela força, múltiplas vezes, desde 7 de outubro de 2023.
É nesse contexto que publicamos com exclusividade o artigo do Secretário Geral da COPLAC – Confederação Palestina Latino-americana e do Caribe, Emir Mourad, sobre os 77 anos da Nakba.
Confira abaixo:
77 Anos da Nakba: A Catástrofe Palestina em Curso
Por Emir Mourad
A Nakba, termo árabe que significa “catástrofe”, refere-se à expulsão forçada de mais de 750 mil palestinos de suas terras e à destruição de centenas de vilarejos durante e após a criação do Estado de Israel em 1948. Todos os anos, no dia 15 de maio, os palestinos e os milhões de apoiadores ao redor do mundo lembram e denunciam este evento, que marcou o início da diáspora palestina e a perpetuação da ocupação israelense. Mais do que um evento isolado, a Nakba representa um processo histórico contínuo. Para compreendê-la em profundidade, é necessário analisá-la no contexto do colonialismo, do sionismo político e da reorganização geopolítica do Oriente Médio após a Primeira Guerra Mundial.
As Raízes Históricas da Nakba
A Nakba tem suas raízes no final do século XIX, quando o movimento sionista, liderado por Theodor Herzl, propôs a criação de um Estado judeu na Palestina, então parte do Império Otomano. O ponto de partida oficial do sionismo político ocorreu no Primeiro Congresso Sionista, realizado em Basileia, Suíça, em agosto de 1897. Esse congresso reuniu líderes e intelectuais judeus europeus para discutir o objetivo central do movimento: estabelecer um Estado judeu.
No evento, surgiram debates sobre qual território deveria ser escolhido para esse propósito. Enquanto alguns consideravam opções como Uganda e a Argentina, a corrente majoritária, liderada por Herzl, insistia na Palestina como o destino ideal, com base em argumentos religiosos e históricos. Como resultado, foi aprovada o que ficou conhecida como a “Plataforma de Basileia”, que estabelecia como meta a criação de um lar nacional judeu na Palestina, utilizando meios diplomáticos, colonização sistemática e apoio financeiro internacional.
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A partir desse congresso, foi fundada a Organização Sionista Mundial, que passou a articular esforços políticos e financeiros para viabilizar a imigração judaica para a Palestina. Em 1897, ano do Congresso de Basileia, a população da Palestina era composta por cerca de 95% de árabes (muçulmanos e cristãos) e apenas 5% de judeus. Mesmo em 1914, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, os árabes ainda representavam cerca de 90% da população, enquanto os judeus eram cerca de 8%.[1]
Apesar dessa realidade demográfica, o movimento sionista iniciou um processo de colonização ativa da Palestina, adquirindo terras e estabelecendo assentamentos judaicos. Esse processo foi facilitado por sociedades coloniais europeias, como o Fundo Nacional Judaico e a Palestine Jewish Colonization Association, financiadas por doadores sionistas e investidores estrangeiros. Essas organizações compravam terras, muitas vezes de latifundiários ausentes que viviam fora da Palestina, e desalojavam os camponeses árabes que viviam e trabalhavam nessas propriedades há gerações. Esse modelo de colonização gerou crescente resistência da população árabe, que via seu território e meios de subsistência sendo ameaçados.
Com o colapso do Império Otomano após a Primeira Guerra Mundial, a Palestina ficou sob mandato britânico (1920-1948). Durante esse período, o governo britânico emitiu a Declaração Balfour, uma carta datada de 2 de novembro de 1917, assinada pelo então secretário de Relações Exteriores do Reino Unido, Arthur James Balfour, e endereçada a Lord Rothschild, um influente líder da comunidade judaica britânica. O documento comprometia-se a apoiar a criação de um “lar nacional judeu” na Palestina, apesar de a região já ser habitada majoritariamente por palestinos. Essa declaração desconsiderou completamente os direitos políticos e civis da população palestina nativa e foi posteriormente incorporada ao mandato britânico da Liga das Nações, servindo como base para a imigração sionista e a futura colonização da Palestina.
A imigração judaica para a Palestina aumentou significativamente nas décadas de 1920 e 1930, impulsionada pelo apoio britânico ao projeto sionista. Esse fluxo migratório, acompanhado da aquisição de terras por organizações sionistas, resultou na expulsão de camponeses palestinos e no aumento das tensões entre as comunidades árabe-palestina e judaico-sionista. Como resposta, os palestinos organizaram a Grande Revolta Árabe (1936-1939), um levantamento nacional contra o domínio britânico e a colonização sionista.
A revolta começou com greves gerais e protestos, mas evoluiu para uma insurreição armada, liderada por grupos de resistência palestina que buscavam o fim da imigração judaica e a independência da Palestina. O governo britânico reprimiu brutalmente o levante, utilizando táticas como execuções sumárias, demolições de casas e prisões em massa. Além disso, as forças britânicas armaram e treinaram milícias sionistas, incluindo a Haganah, que mais tarde se tornaria a base do exército israelense. Como resultado, a liderança palestina foi severamente enfraquecida, com muitos líderes sendo exilados, presos ou executados. Esse enfraquecimento teve consequências devastadoras, deixando a população palestina desarticulada e vulnerável para os eventos que se seguiriam, especialmente a Nakba de 1948.
O Plano de Partilha da Palestina
Em 1947, a ONU propôs o Plano de Partilha da Palestina (Resolução 181), que previa a criação de um Estado judeu e um Estado palestino, além da internacionalização de Jerusalém. Apesar de os judeus constituírem cerca de 33% da população e possuírem apenas 7% das terras, o plano lhes atribuía 55% do território. Os palestinos rejeitaram a partilha, considerando-a injusta e uma violação de seus direitos nacionais.
É importante destacar que a Carta das Nações Unidas, vigente na época, não incluía nenhuma cláusula que permitisse à organização deliberar sobre a divisão de territórios ou países sem o consentimento da população nativa afetada. Dessa forma, a aprovação da Resolução 181 não tinha caráter juridicamente vinculativo, tornando sua implementação dependente da aceitação das partes envolvidas. Ainda assim, a liderança sionista aceitou o plano, enquanto os palestinos e os países árabes o rejeitaram, pois consideravam que a ONU não tinha autoridade para dispor do território palestino contra a vontade de sua população nativa.
A decisão da ONU precipitou confrontos entre milícias sionistas (como Haganah, Irgun e Lehi) e forças da resistência palestina. Com a retirada britânica em maio de 1948 e a declaração unilateral de independência de Israel, vários exércitos árabes intervieram, mas estavam militarmente despreparados e politicamente descoordenados. Enquanto isso, as forças sionistas implementaram um plano de limpeza étnica sistemática, baseado no Plano Dalet, que previa a remoção forçada da população palestina.
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Expulsão em massa e a destruição da Palestina
Entre 1947 e 1949, mais de 750 mil palestinos foram forçados a deixar suas casas, fugindo de massacres e os atos de terrorismo das milícias sionistas. Um dos episódios mais brutais foi o massacre de Deir Yassin, onde mais de 100 civis foram assassinados por terroristas sionistas. No total, mais de 500 vilarejos palestinos foram destruídos ou despovoados, e Israel impediu sistematicamente o retorno dos refugiados, violando resoluções da ONU, como a Resolução 194, que garante o direito de retorno dos palestinos.
A Nakba não foi um evento isolado, mas um processo contínuo. A ocupação e a colonização da Palestina avançaram ainda mais após a Guerra de 1967, quando Israel ocupou a Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental, consolidando o domínio militar sobre essas áreas. A questão dos refugiados palestinos continua sendo um dos pontos centrais do conflito, com milhões de descendentes vivendo em campos de refugiados no Líbano, Jordânia, Síria e territórios palestinos ocupados, privados do direito de retorno garantido pela Resolução 194 da ONU.
Atualmente, a Palestina continua a enfrentar um regime de ocupação, apartheid e limpeza étnica progressiva. Na Cisjordânia, a expansão dos assentamentos ilegais israelenses, protegidos pelo exército de Israel, tem levado ao deslocamento forçado de comunidades palestinas, com demolições sistemáticas de casas e infraestrutura. Em Jerusalém Oriental, a política de judaização tem resultado na expulsão de famílias palestinas, especialmente nos bairros de Sheikh Jarrah e Silwan O objetivo dessa política é consolidar o domínio israelense e marginalizar a presença palestina, tanto fisicamente quanto culturalmente. Ela tem sido denunciada por organizações internacionais como uma forma de limpeza étnica gradual.
Além disso, a Esplanada das Mesquitas, um dos locais mais sagrados do Islã, tem sido constantemente invadida por colonos sionistas extremistas, sob proteção das forças israelenses, em uma política deliberada de provocação e profanação dos locais sagrados muçulmanos.
Ao mesmo tempo, milhares de palestinos são presos arbitrariamente, incluindo crianças, mulheres e idosos, muitas vezes sem acusações formais, sob a política de detenção administrativa israelense. Nas prisões, os detidos são submetidos a torturas físicas e psicológicas, isolamento prolongado e privação de necessidades básicas, em flagrante violação do direito internacional e dos direitos humanos.
Em Gaza, um dos territórios mais densamente povoados do mundo, a população vive sob um bloqueio terrestre, marítimo e aéreo imposto por Israel desde 2007, causando uma crise humanitária severa. O cerco tem privado os habitantes de recursos básicos, como água potável, eletricidade, alimentos e medicamentos, tornando a Faixa de Gaza praticamente inabitável segundo relatórios da ONU.
A partir de outubro de 2023 Israel intensificou sua ofensiva militar sobre Gaza, promovendo bombardeios indiscriminados sobre áreas civis, hospitais, escolas e campos de refugiados, resultando na morte de mais de 60 mil palestinos, incluindo milhares de crianças. O ataque sistemático à infraestrutura vital e o deslocamento forçado da população configuram um genocídio em curso, denunciado por organizações internacionais e levado à Corte Internacional de Justiça (CIJ) sob acusações de crimes contra a humanidade e violação da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio.
Além disso, as políticas de segregação e discriminação dentro de Israel reforçam a marginalização da população palestina que permaneceu dentro das fronteiras do Estado israelense após 1948. Organizações de direitos humanos, como a Human Rights Watch, a Amnesty International e a B’Tselem, classificam essas práticas como um sistema de apartheid.
A Nakba, portanto, não é apenas um evento do passado, mas um processo ainda em curso, manifestando-se no deslocamento contínuo de palestinos, na destruição de suas comunidades e na negação de seus direitos fundamentais. O genocídio em Gaza representa a face mais extrema desse processo, enquanto a impunidade internacional perpetua a violência contra o povo palestino.
Conclusão
A Nakba é um evento crucial para entender a questão palestina e a dinâmica da colonização sionista da Palestina. Suas consequências reverberam até hoje, manifestando-se na ocupação militar, no deslocamento forçado e na negação de direitos humanos e nacionais do povo palestino.
A preservação da memória da Nakba é essencial para a luta de libertação nacional do povo palestino que está fundamentada em dois pilares básicos contidos no Direito Internacional e nas resoluções da ONU: a autodeterminação, traduzida no estabelecimento do Estado da Palestina livre, independente e soberano, tendo como capital a cidade de Jerusalém e o retorno dos refugiados.
A historiografia ocidental muitas vezes tenta minimizar ou apagar os eventos da Nakba, tornando crucial a ampliação do debate acadêmico e político sobre esse período. A documentação histórica e os testemunhos de sobreviventes são peças fundamentais para resistir às narrativas de negação e reafirmar a importância da justiça histórica para o povo palestino.
Emir Mourad é secretário-geral da Confederação Palestina Latino-americana e do Caribe (COPLAC)
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.
[1] Justin McCarthy – “The Population of Palestine: Population History and Statistics of the Late Ottoman Period and the Mandate” (1990)
McCarthy, um demógrafo especializado na Palestina otomana e no mandato britânico, estima que em 1897 a população da Palestina era composta por 95% de árabes (muçulmanos e cristãos) e cerca de 5% de judeus.
British Government Census (1922)
O primeiro censo britânico realizado na Palestina em 1922 confirmou que a população era de cerca 90% árabes (muçulmanos e cristãos) e cerca de 10% judeus, o que mostra um crescimento da população judaica devido à imigração promovida pelo movimento sionista.
Benny Morris – “Righteous Victims: A History of the Zionist-Arab Conflict, 1881-2001” (1999)
Morris detalha a demografia da Palestina durante o final do século XIX e início do XX, demonstrando que a imigração judaica aumentou progressivamente após o Primeiro Congresso Sionista, especialmente a partir das primeiras ondas migratórias sionistas (Aliyahs).
Essas fontes acadêmicas e censos históricos são amplamente utilizados por estudiosos para descrever a composição populacional da Palestina antes da Nakba.