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    Cultura

    Entre letras e ideias: “Parece que Vargas Llosa não leu seus próprios romances”

    Artigo percorre a vida e a obra do escritor peruano, Nobel de Literatura, revelando as contradições entre sua produção libertária e suas escolhas políticas — do marxismo juvenil ao apoio a Bolsonaro contra Lula.

    POR: Carlos Azevedo

    6 min de leitura

    Parece que Vargas Llosa não leu seus próprios romances.”  

    O comentário, feito pelo escritor argentino Ricardo Piglia, dá uma indicação da aguda contradição entre a obra libertária e as posições políticas direitistas do autor peruano, falecido no último domingo (13).

    Nem sempre foi assim. Até os 35 anos, Llosa foi um marxista vigoroso, entusiasta da revolução cubana e de Fidel Castro. Começou a se decepcionar quando se deu a intervenção da União Soviética na Tchecoslováquia, em 1968, e com a prisão de um escritor pelo governo cubano, em 1971. Passou a valorizar a democracia, a defender ideias liberais, a iniciativa privada, o livre mercado e foi tendendo cada vez mais para a direita.

    Defendendo essas ideias, tornou-se um publicista, publicando artigos em jornais, dando conferências e envolvendo-se na política peruana. Candidatou-se à presidência da República em 1990 e foi derrotado pelo autoritário Alberto Fujimori. Anos depois, em 2021, apoiaria a candidatura presidencial de Keiko Fujimori, filha do ex-presidente. Em 2022, lamentou as palhaçadas de Jair Bolsonaro, mas disse que, apesar disso, era favorável a ele contra Lula.

    Leitor entusiasta do livro Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, em um vídeo fez praticamente um autorretrato ao dizer que o Quixote e seu escudeiro Sancho Pança são, de um lado, a loucura ou a luta pela liberdade, do cavaleiro, e, de outro, o realismo chão do escudeiro. São a contradição, mas Quixote e Pança formam uma mesma entidade, conclui. Assim como ele.

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    Durante todos esses anos, publicou mais de 50 romances e ensaios; vários de seus livros viraram filmes. E sua literatura alcançou prestígio inigualável não só na América, mas em todo o mundo. Uma literatura realista que denuncia as ditaduras, a falta de liberdade, os golpes e os crimes contra os povos. Viveu na França, lecionou na Sorbonne e lá escreveu Orgia Perpétua, um ensaio sobre o escritor Flaubert e sua personagem Madame Bovary.

    Em seus romances brilhantes, combinava ficção com realidade com um estilo arrebatador desde a primeira frase. Por exemplo, começa seu magistral livro Conversa na Catedral, que trata da ditadura de Odría, que infelicitou o Peru nos anos 1950, com esta pergunta: “Em que momento o Peru se fodeu?”

    Em Tia Julia e o Escrevinhador, livro um pouco autobiográfico — porque, quando mais jovem, trabalhou como jornalista e de fato se casou com uma tia —, o resultado é um livro muito engraçado que entrelaça as aventuras do jornalista e sua mulher com as desventuras de um escritor de novelas de rádio que escreve várias ao mesmo tempo e acaba misturando os personagens de uma novela com os de outra.

    Para fazer o extraordinário livro Guerra do Fim do Mundo, Vargas Llosa demorou dois anos em pesquisas e viagens ao Nordeste brasileiro para recontar a história da Guerra de Canudos. A um jornalista que perguntou por que tanta pesquisa, respondeu que, para mentir bem, é preciso se informar o melhor possível. Sua versão de Canudos é contada por um repórter míope que perdeu os óculos.

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    Possivelmente, só um peruano poderia ter uma personalidade tão complexa. Porque o Peru tem a mais completa herança da civilização pré-colombiana que existiu por milênios na América. A maior parte de sua população é indígena, descendente dos povos que desenvolveram uma sociedade mais avançada do que a dos povos europeus no século XVI.

    Essa população convive submetida a uma oligarquia branca de origem europeia que está entre as mais retrógradas do continente, que mantém a população indígena sob opressão, não lhe oferece educação nem oportunidade de trabalho, não desenvolve as forças produtivas — de forma que a maioria dos peruanos é submetida ao trabalho braçal e, em grande parte, se mantém como camponesa.

    A ação política dos indígenas em busca de poder é duramente reprimida, o que mantém o Peru continuamente sob uma crise institucional que se prolonga por décadas, como podemos testemunhar na atualidade. O presidente eleito pela maioria indígena foi deposto e está preso. E um governo totalmente impopular se mantém à custa de repressão.

    Vargas Llosa nasceu no seio dessa oligarquia e desenvolveu um espírito crítico agudo dessa sociedade. Mas, contraditoriamente, viveu sendo um membro dela.

    Homem bonito e inteligente, era requestado pelas mulheres. E estava sempre pronto para elas. Em uma viagem entre Barcelona e Callao, conheceu uma linda mulher, se apaixonaram e ele deixou sua mulher para trás.

    Retomando com a esposa algum tempo depois, ela, magoada, lhe disse: “Mas eu também sou atraente, tanto assim que vários de seus amigos, como Gabo (Gabriel García Márquez), me querem.”

    Vargas Llosa também era ciumento.

    Ele e Gabo tinham sido grandes amigos e também coincidentes em suas posições políticas. Mas, na década de 1970, Llosa estava mudando de posição, enquanto Gabo mantinha suas opiniões pelo socialismo. Os amigos já estavam mais distantes e há algum tempo sem se ver.

    Em 1976, Vargas Llosa estava na Cidade do México em atividades públicas. Gabriel foi ao seu encontro de braços abertos e, ao se aproximar, levou um potente soco no olho e caiu no chão. Há depoimentos de testemunhas desse episódio que se manifestaram na Paris Review, em 06/03/2019, sob o título “Quando Llosa socou Gabo”. Conta-se ali que uma das mulheres que acompanhava Gabriel saiu correndo em busca de um bife para impedir que seu olho ficasse roxo…

    Mas o olho ficou roxo. Gabriel foi até o estúdio de um fotógrafo conhecido para que ele fotografasse seu olho ferido. “O que aconteceu?”, perguntou o fotógrafo.

    Ele respondeu: “Fui lutar boxe e perdi.”

    Os dois escritores nunca mais se falaram. Mas Llosa sempre fez questão de prestar homenagem à obra literária de Gabriel García Márquez.

    Fim da história. Quem quiser que conte outra.

    Carlos Azevedo é pesquisador do Grupo de Pesquisa da Fundação Maurício Grabois sobre a Sociedade Brasileira.

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.

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