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    Cultura

    Debate sobre Guerrilha do Araguaia cobra justiça, memória e reparação

    Evento em Belém (PA) reúne juristas, militantes e familiares de vítimas da ditadura em torno do filme Camponeses do Araguaia e reforça o papel da sociedade na preservação da história e dos direitos humanos

    POR: Redação

    10 min de leitura

    A Fundação Maurício Grabois Seção Pará (FMG/PA) promoveu, no último dia 12 de abril, a exibição do documentário Camponeses do Araguaia – A Guerrilha Vista por Dentro, dirigido por Vandré Fernandes, no Cine Líbero Luxardo (Fundação Cultural do Pará – CENTUR), em Belém (PA). A sessão foi seguida por um emocionante e contundente debate sobre as marcas deixadas pela repressão militar no sul do Pará e a urgência de manter viva a memória das vítimas da Guerrilha do Araguaia.

    Saiba mais: Documentário “Doutor Araguaia” resgata história de João Carlos Haas

    Entre os presentes estavam representantes de movimentos sociais como o Movimento dos Sem Terra (MST) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), militantes históricos, advogados e familiares de lideranças camponesas assassinadas após a Guerrilha, como Gringo, João Canuto, Expedito Ribeiro, Paulo Fonteles e João Batista. A atividade também contou com juristas, dirigentes do PCdoB, representantes da UNEGRO e UBM, professores, artistas e apoiadores da causa democrática. O debate foi coordenado por Eneida Guimarães dos Santos — presidenta do Conselho Municipal de Defesa de Direitos Humanos de Belém e representante da FMG no Pará.

    Justiça de transição e direito à memória

    Integrante da Unidade de Monitoramento e Fiscalização das Decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a juíza Reijane de Oliveira, do Tribunal de Justiça do Pará, abordou a busca de justiça por mortos e desaparecidos na ditadura militar.

    A magistrada acompanha cinco casos ocorridos no estado em tramitação na Comissão Interamericana, incluindo o caso do sindicalista João Canuto, assassinado por sua atuação em defesa dos camponeses. Também acompanha 13 casos do Pará na Corte Interamericana, que é uma instância superior e internacional de julgamento de violações graves de direitos humanos.

    Reijane de Oliveira destacou o Caso Gomes Lund X Brasil, que trata dos desaparecimentos forçados durante a Guerrilha do Araguaia. O caso está vinculado a uma discussão no Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do Recurso Extraordinário com Agravo n.º 1.501.674, que trata de uma questão central:

    A Lei da Anistia brasileira pode ou não ser usada para proteger os responsáveis por desaparecimentos forçados durante a ditadura militar?

    O ministro Flávio Dino, relator do caso, defende que o desaparecimento forçado configura crime permanente, como crime de ocultação de cadáver — ou seja, enquanto os corpos não forem localizados e a verdade não for revelada, o crime continua acontecendo. Portanto, esses crimes não poderiam ser anistiados.

    Na peça, Dino cita o filme Ainda estou aqui e faz referência ao clássico Antígona, de Sófocles, ao afirmar que:

    “Todos os cidadãos têm um direito natural e inalienável de velar e enterrar dignamente seus mortos. O crime de ocultação de cadáver tem, portanto, uma altíssima lesividade, justamente por privar as famílias desse ato tão essencial.”

    Leia a decisão completa do STF: Recurso Extraordinário com Agravo n.º 1.501.674

    Presidenta do Conselho Municipal de Defesa de Direitos Humanos de Belém, Eneida Guimarães dos Santos ressaltou que urge o acompanhamento de uma peça jurídica tão relevante, alusiva à Guerrilha do Araguaia, especialmente por aqueles a quem mais interessa: o Partido Comunista do Brasil, os familiares dos(as) guerrilheiros(as) mortos(as) e desaparecidos(as), bem como os familiares dos moradores da região que se incorporaram ao movimento e também foram mortos e desaparecidos. Eneida representa a Fundação Maurício Grabois no Pará e coordenou o debate.

    Leia também: PCdoB cobra revisão da Lei de Anistia em nota pelos 53 anos da Guerrilha do Araguaia

    Relatos que tocam a alma

    O padre Paulinho (Paulo Joanil da Silva), da Comissão Pastoral da Terra (CPT), emocionou o público ao relatar um episódio ocorrido em sua última visita à terra natal, o município de Arreado, em Minas Gerais — um lugar que, como disse, carrega na memória e no coração.

    No domingo, ao final da missa, foi abordado por um casal que lhe perguntou se ele havia passado por Marabá, São Domingos, Palestina e se conheceu Aurea Pereira. Angustiados, apresentaram-se como irmãos da guerrilheira e perguntaram sobre a possibilidade de ela ainda estar viva. Acrescentaram que era o desejo da mãe reencontrar a filha. Padre Paulinho ouviu e aconselhou que fizessem de tudo para que aquela mãe não sofresse tanto.

    Em seguida, falou sobre o padre Roberto, oblato missionário que viveu na região durante o período da Guerrilha e que ainda está vivo — e lúcido, acrescentou, sendo considerado uma “memória viva” e relatou:

    “O padre Roberto foi muito torturado, não só pelo fato de os militares enfiarem os dedos nos olhos dele, conforme uma senhora lembra no filme, mas também durante o percurso em que o transladaram num jipe do Exército para Araguatins. Ele, juntamente com uma irmã dominicana, irmã Maria das Graças, que também vivia em São Domingos, foi amarrado — se não me engano, de costas um para o outro — e ambos foram extremamente torturados”.

    Padre Paulinho completou dizendo que o padre Roberto ficou com lesões permanentes na coluna e, por isso, sempre andou com dificuldades. Atualmente, está cego e debilitado, em consequência dos maus-tratos. “Na atualidade, ele mora no bairro Ipiranga, em São Paulo, mas continua firme na convicção dos ideais daqueles jovens do sul do Pará nos idos de 1970”, afirmou.

    Para finalizar, disse guardar documentos daquela época, que denunciam as atrocidades cometidas pelo Exército contra a Guerrilha e relatam as intervenções do bispo dominicano Dom Estevão, que, assim como Dom Alano Pena e Frei Betto, também foi torturado no DOI-CODI de São Paulo. Contou ainda que, após esses acontecimentos, Dom Estevão tentou visitar o padre Roberto e a irmã Maria das Graças no meio da Transamazônica, sendo humilhado pelas forças repressoras. Os relatos minuciosos do encontro entre Dom Estevão e os militares foram publicados por uma revista dos franciscanos, e revelam que o bispo enfrentou esses momentos com altivez extraordinária.

    Conhecedor profundo da região do sul do Pará, padre Paulinho comentou, ao encerrar sua fala, que por muito tempo foi imposto à população um constrangedor silêncio, imposto pelo medo da repressão, como se os fatos jamais tivessem ocorrido. Ressaltou que relembrar aqueles acontecimentos é essencial para conhecer a verdadeira história do Brasil e fortalecer a união dos povos no caminho das mudanças tão necessárias.

    O silêncio e a pedagogia da memória

    A professora Altair Silva, da Universidade Federal do Pará (UFPA), compartilhou um relato da época em que lecionava a disciplina Organização Social e Política Brasileira (OSPB) no município de São Félix do Xingu, em 1983.

    “Em uma aula sobre o papel do Estado como promotor do bem comum, perguntei aos alunos se sabiam o que era ‘bem comum’. Um desconhecido observava minha exposição da janela da sala. No intervalo, esse observador anônimo mandou um recado por uma aluna: se eu não parasse de falar, sairia dali com a boca cheia de formiga.”

    Altair comentou que aquele ainda era um tempo marcado por um tenebroso silêncio sobre a Guerrilha do Araguaia, no qual até conteúdos da disciplina eram alvo de censura. Citou que muitos professores universitários evitavam falar sobre os fatos reais que compõem a história do país.

    Ao encerrar sua fala, destacou a importância da democracia como bem fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade. Defendeu que é necessário esclarecer aos alunos os significados de Comunismo, Capitalismo e Socialismo, compreendendo-os não apenas como ideologias, mas como modos de produção. E concluiu: “O governo não era comunista, até porque, que eu saiba, o Brasil é capitalista há mais de cinco séculos.”

    Resistência, legado e futuro

    A ex-deputada Sandra Batista compartilhou relatos de sua participação, ao lado de Paulinho Fonteles, na trilha da Guerrilha realizada em 1999. A jornada começou em São Domingos do Araguaia, onde conversaram com Zé da Onça e outros companheiros que contaram como perderam tudo — terra, roças — e as dificuldades que enfrentaram para reconstruir a vida.

    Sandra lembrou que seguiram de caminhão até Brejo Grande e Palestina, onde se encontraram com Sezostrys e foram até a casa do senhor Amaro, já idoso. Jantaram um “peba” e quase chegaram a São Geraldo do Araguaia, na fronteira com o Tocantins. Depois, retornaram a Marabá.

    Ela recordou que, naquela época, os moradores estavam mobilizados para formar a Associação dos Camponeses Vítimas do Exército, com o objetivo de lutar coletivamente por reparação — direito que só começou a ser atendido no governo da presidenta Dilma Rousseff.

    A fala de Sandra Batista chamou atenção da advogada Daniella Lauria, que comentou os prejuízos sofridos pelos camponeses, cujas roças foram queimadas. Segundo ela, havia base para reparação civil em duas frentes: dano material — perda direta das plantações; e  lucro cessante — prejuízo acumulado pela impossibilidade de colher e comercializar os produtos cultivados.

    Daniella lamentou que, caso não tenha havido ação judicial à época, essas reparações provavelmente estejam prescritas hoje.

    Sebastião Santos reforçou que, mesmo após os acontecimentos na região do Bico do Papagaio, a repressão militar continuou a exercer forte pressão sobre a sociedade paraense por longos anos. Apesar do silêncio forçado, a circulação de relatos sobre os guerrilheiros evidenciava a justeza do compromisso que eles tinham com o Brasil. “Foi exatamente o exemplo de vida daqueles guerrilheiros que me inspirou a ingressar no PCdoB nos anos 1980, onde milito até hoje”, afirmou.

    Para Érico Albuquerque, a exibição do documentário teve um papel importante ao reunir pessoas interessadas em fortalecer a democracia. Ele destacou a atenção com que o público acompanhou os depoimentos de moradores das margens do rio Araguaia, que conviveram com guerrilheiros mortos e desaparecidos em uma guerra injusta.

    “Cabe a nós dar continuidade às lutas pela transformação da sociedade. O Brasil tem um futuro brilhante, e as mudanças acontecem através da organização e luta”, concluiu.

    Passados 53 anos do início dos ataques das Forças Armadas à Guerrilha do Araguaia, o Brasil ainda carrega as marcas do aniquilamento da resistência à ditadura. Entre 1972 e 1975, as forças da repressão mataram e fizeram desaparecer militantes e moradores que aderiram ao movimento. Foram mais de uma centena de mortos e desaparecidos. Até hoje, apenas os corpos de Maria Lucia Petit da Silva (1950–1972) e Bergson Gurjão Farias (1947–1972) foram localizados.

    Os responsáveis pelas atrocidades ainda não foram julgados — e seguem a ameaçar a democracia. A tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, em Brasília, com a destruição das sedes dos Três Poderes, é um alerta.

    Leia também: Denúncia da PGR contra Bolsonaro mostra força e fraqueza da democracia liberal brasileira

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