“E uma das coisas que mais causa perplexidade na mulher, nesses momentos, é a maneira como foi facilitado o divórcio.
… O divórcio deixou de ser um privilégio acessível somente aos ricos; de agora em diante, a mulher trabalhadora não terá que esperar meses e, inclusive, até anos para que seja julgado seu pedido de separação matrimonial…
Porém, é precisamente esta facilidade para obter o divórcio… é o que assusta outras mulheres, particularmente aquelas que consideram o marido como o ‘provedor’ da família, como o único sustento da vida, a essas mulheres que não compreendem que devem acostumar-se a buscar e a encontrar esse sustento em outro lugar, não na pessoa do homem, mas sim na pessoa da sociedade, do Estado.”Alexandra Kollontai, O Comunismo e a Família (1920)
“Saúde é a capacidade de amar e trabalhar.”
Sigmund Freud
Marie Curie, Eleanor Marx, Clara Zetkin, Nadezhda Krupskaya, Inessa Armand, Dolores Ibárruri (La Pasionaria), Rosa Parks, Rosa Luxemburgo, Simone de Beauvoir, Angela Davis, Bell Hooks, Maya Angelou, Malala, Silvia Federici…
Se me perguntam sobre mulheres corajosas, independentes, progressistas, marxistas e feministas, algumas me vêm à mente.
Algumas — e tão poucas.
Num dia mais inclinado à poesia, eu gostaria de falar de Anna Akhmátova, a voz da Rússia, que está diante de mim na biblioteca, sempre a me oferecer seus versos. Ao lado, comprados em seu museu em São Petersburgo que eu trouxe, alguns desenhos de nus em que Modigliani a retratou. Outro dia, outro artigo.
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Neste texto, quero falar de Alexandra Kollontai, uma das grandes mulheres da Revolução Russa.
Forte em suas ideias, corajosa, intelectual, marxista, feminista — quase esquecida.
Seria proibido dizer que seu famoso retrato, aqui reproduzido, aos 25 anos de idade, também exibe beleza e elegância? Não creio. A sensualidade e o amor nunca foram temas evitados por ela.
Quando comecei a escrever sobre Alexandra, me deparei com o bom artigo de junho de 2017, Alexandra Kollontai: os instintos e o amor em tempos revolucionários, de Fernando Horta, à época professor, historiador e doutorando na UnB.
E por que não escrever? — pensei.
Leia-se o dele, o meu e uma literatura razoável (não extensa) já disponível.
Tenho a ideia de falar de Kollontai desde que visitei seu túmulo no cemitério de Novodevichy, em Moscou, perto do famoso mosteiro de mesmo nome, há mais de 15 anos.
Alexandra foi a primeira mulher, na história contemporânea, a ser nomeada chefe de um ministério e a se tornar membro pleno do conselho de governo (que havia sido renomeado como Conselho dos Comissários do Povo na Rússia revolucionária), bem como uma das primeiras diplomatas do século XX.
Alexandra escreveu quase tudo sobre as mulheres: dos fundamentos sociais das questões femininas; sobre a necessidade da independência econômica da mulher; sobre divórcio; maternidade; pré-natal; creches; aborto; feminismo; dupla jornada; amor e sexualidade; a libertação de uma sociedade patriarcal, entre tantos outros temas.
Ao contrário de outros clássicos marxistas escritos por homens (com a exceção notável de Rosa Luxemburgo), as obras de Kollontai são muito pouco estudadas até o momento. Esquecida, eu disse acima, ou não conhecida?
O fato de sua produção não incluir livros “pesados”, mas ser composta fundamentalmente por panfletos, artigos de jornal e cartas, parece dificultar a divulgação e a tradução de seus textos.
Essa dificuldade de acesso não parece ser uma particularidade do Brasil ou da língua portuguesa.
Um artigo de dezembro de 2022, publicado pelo jornal francês Libération, afirma:
“Se você já cruzou o caminho de Alexandra Kollontai, há uma boa chance de que ela tenha deixado uma marca indelével em você. No entanto, até recentemente, qualquer um que quisesse obter seus escritos em francês tinha apenas uma escolha: encomendar Marxismo e a Revolução Sexual em uma livraria, que então o imprimia sob demanda, exclusivamente para o leitor aspirante… Agora, com a publicação de uma biografia da acadêmica Hélène Carrère d’Encausse, Kollontai está sendo publicada em rápida sucessão por duas pequenas editoras militantes…”
Há, talvez, mais uma razão para certo abandono — uma razão que, de alguma forma, nos remete mais profundamente à discussão de Kollontai sobre os costumes.
Alexandra Kollontai, com seus “inúmeros casos amorosos” (Camille Paix), passou rapidamente a ser vista de forma desfavorável por Lênin, que não apreciava sua teoria segundo a qual “para um comunista, o ato sexual deveria ser tão simples quanto beber um copo de água”.
Os jornais soviéticos da época a atacavam violentamente, enfatizando sua vida amorosa, não hesitando em apelidá-la de “a escandalosa” ou “a imoral”. Enquanto viajava para os Estados Unidos como representante do Partido, os jornais soviéticos publicaram manchetes como:
“Kollontainet parte para o exterior; se ao menos pudesse ser para sempre!”
Brevíssima biografia
Nascida em março de 1872 e falecida em março de 1952, Alexandra Mikhaylovna Kollontai, née Domontovich, antes do casamento forçado com Vladimir Kollontai, seu primo distante.
Em 1898, Kollontai — uma mulher aristocrata, poliglota e que sabia ler (raridade à época) — adere ao marxismo, abandona a vida aristocrática, deixa o marido e o filho, torna-se militante e publica seu primeiro estudo sobre psicologia da educação, antes mesmo de iniciar seus estudos universitários de economia política em Zurique.
Em 1899, viaja à Inglaterra para estudar o movimento operário daquele país, deparando-se com todas as contradições e crueldades de uma sociedade em que o capitalismo já se encontrava em fase avançada.
Voltando à Rússia, ainda mais afirmada em seu marxismo, envolve-se em atividades clandestinas dos círculos marxistas russos e adere ao Partido Operário Social-Democrata Russo. Alexandra é testemunha ocular do “Domingo Sangrento” de 1905 e nunca deixará de lembrá-lo — particularmente, das crianças mortas a tiros.
Kollontai vai para o exílio entre 1908 e 1917, primeiro na Suíça e, posteriormente, na Alemanha. Viajando pela Europa, conhece as figuras mais importantes do socialismo internacional: Lênin, na Suíça; Rosa Luxemburgo, na Alemanha; Paul Lafargue, na França; além de Karl Liebknecht, Karl Kautsky, Clara Zetkin e Plekhanov.
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Em 1915, já havia rompido com os mencheviques e se juntado aos bolcheviques por sua oposição à Primeira Guerra Mundial. Anos antes, publica um artigo declarando:
“O proletariado russo, juntamente com o do mundo inteiro, protesta contra todas as guerras. É um fato bem conhecido que o proletariado não conhece fronteiras nacionais. Ele reconhece apenas duas ‘nações’ no mundo civilizado: os exploradores e os explorados.”
Escreve em 1915:
“Entre os meus próprios camaradas russos do partido [mencheviques], que também viviam na Alemanha, não encontrei compreensão alguma sobre a minha postura ‘antipatriótica’. Apenas Karl Liebknecht e sua esposa, Sofia Liebknecht, e outros poucos camaradas alemães mantinham o meu ponto de vista e consideravam, como eu, que o dever de um socialista era combater a guerra.”

VIII Congresso da II Internacional Socialista, realizado em Copenhague, em 1910. Ao centro, Alexandra Kollontai e Clara Zetkin. Atrás delas, Rosa Luxemburgo. Foto de domínio público por autor desconhecido. Fonte: Den Store Danske – via Wikimedia Commons.
A Segunda Internacional (1889–1916), que antecedeu a Internacional Comunista em quase três décadas, foi fundada com base nos princípios da igualdade política e social entre homens e mulheres. Os partidos de diferentes países incluíam a participação das mulheres, apesar de o direito ao voto ainda lhes ser negado em muitos lugares. O sufrágio feminino tornou-se um importante objetivo programático do movimento.
Uma conferência especial de mulheres socialistas foi convocada em Berna, Suíça, em 1915, reunindo importantes líderes socialistas internacionais, como a própria Alexandra Kollontai, Inessa Armand e Clara Zetkin, para compartilhar experiências e definir agendas comuns.
Menos de 18 meses após a Revolução Russa de novembro de 1917, uma nova Internacional Comunista (Comintern) foi estabelecida em Moscou, para substituir a Segunda Internacional, já destruída pela guerra.
Fatos históricos: Tratado de Versalhes semeou surgimento do nazifascismo e a Segunda Guerra Mundial
Em abril de 1920, foi fundada em Moscou a Internacional das Mulheres Comunistas, liderada pelo Secretariado Internacional das Mulheres Comunistas. Seu círculo diretivo, comandado pela alemã Clara Zetkin, incluía seis russas — Kollontai, Nadezhda Krupskaya (esposa de Lênin), Zlata Lilina, Konkordia Samoilova, Lyudmila Stal e uma mulher conhecida apenas como Similova — além das holandesas Henriëtte Roland-Holst e Rosa Bloch. Uma Conferência Internacional de Mulheres Comunistas foi convocada de 30 de julho a 2 de agosto de 1920.
Alexandra Kollontai tornou-se adida comercial (1922) e, posteriormente, ministra plenipotenciária da União Soviética na Noruega (1924), o que fez dela uma das primeiras diplomatas mulheres da história. Mantendo-se geograficamente distante, Kollontai se afastou dos expurgos stalinistas, que atingiram notavelmente seus antigos camaradas da Oposição Operária e seu ex-marido, Pavel Dybenko, na década de 1930.
Mais do que se afastar, vivendo na Noruega, no México e na Suécia, se posicionou publicamente, em 1930, a favor de Stálin durante os “Processos de Moscou”. Muitos a acusam de ter permanecido calada diante da degeneração burocrática do Estado operário e de ter consentido com os expurgos stalinistas.

Alexandra Kollontai em seu escritório na embaixada soviética em Estocolmo, onde atuou como diplomata durante os anos 1940. Crédito: Foto de domínio público por autor desconhecido (Scanpix) – via Wikimedia Commons.
Em 1935, Kollontai fez parte da delegação soviética em Estocolmo que exigiu a negativa do visto a León Trotsky, fazendo-o permanecer na Noruega, até ser novamente expulso — desta vez para o México.
Em 1940, quando Trotsky foi assassinado por Ramón Mercader no México, restavam apenas dois sobreviventes do Comitê Central que liderou a Revolução de Outubro de 1917: Stálin e ela.
Algumas ideias e participação as políticas de Estado
1 — Em 1921, Kollontai profere uma série de 14 conferências em Leningrado, na Universidade de Sverdlov, dirigidas a mulheres. Enfatiza que o nível de participação feminina na produção e a relevância dada a essa participação determinam a posição que as mulheres ocupam em uma sociedade. A emancipação feminina está na sua independência econômica, garantida pelo direito ao trabalho.
2 — A afirmação da proteção dos papéis de mulher e mãe. Kollontai denuncia a falsa ideia política de igualdade que nega aspectos particulares da mulher, escotomizando as diferenças biológicas hormonais, do desenvolvimento físico, do ciclo menstrual e do ciclo gravídico-puerperal, incluindo a amamentação. Esse reconhecimento das diferenças orgânicas não deve ser usado como instrumento de dominação, mas sim para garantir direitos e possibilidades particulares às mulheres:
“Na verdade, a mulher não tem por que realizar o mesmo trabalho que o homem; para garantir a igualdade de direitos, basta que realize um trabalho de mesmo valor para a coletividade.”
3 — O oferecimento de licença do trabalho com conservação do salário para a mãe nas oito semanas anteriores ao parto e nas oito posteriores. A atribuição de uma cesta gratuita de produtos básicos de alimentação e higiene (leite, manteiga, fraldas etc.) a todas as mulheres durante a segunda metade da gestação e até o final do período de amamentação.
4 — A luta de Kollontai junto ao Comissariado do Povo para a Saúde e Justiça levou à publicação do decreto sobre a interrupção artificial da gravidez, tornando a URSS o primeiro país do mundo a legalizar o aborto, em 1920. O segundo país, porém com restrições a motivos médicos, foi a Islândia, em 1935.
5 — A defesa de um “amor camarada” baseado em três princípios: “igualdade mútua (e não a vaidade masculina ou a escravidão dissolvendo a personalidade da mulher no amor)”, “reconhecimento dos direitos do outro” e “a preocupação camarada, a capacidade de ouvir e entender os movimentos da alma do ser amado (a cultura burguesa exigia essa preocupação no amor único da mulher).”
6 — Kollontai antecipa, quase cem anos antes, a discussão sobre questões identitárias. Não defendia organizações separadas, acreditando que a emancipação da mulher trabalhadora só seria possível como parte integrante da luta pelo socialismo, junto ao restante da classe trabalhadora. Isso, no entanto, não implicava ignorar que eram necessárias medidas concretas e específicas destinadas às mulheres da classe trabalhadora.
Seus textos abarcam grandes questões femininas, como: a independência econômica da mulher; a proteção à maternidade com cuidados pré e pós-natais; a liberdade de escolha de ser mãe — de forma livre — com a possibilidade do aborto; a dupla jornada da mulher; a emancipação em relação ao trabalho doméstico; e a transformação das relações patriarcais.
Termino com uma frase de Camille Paix, em seu artigo:
“Se você já cruzou o caminho de Alexandra Kollontai, há uma boa chance de que ela tenha deixado uma impressão duradoura em você.”
Sugestões de Leitura
- Alexandra Kollontaï – L’Amour libre. Les Prouesses, 2022.
- Alexandra Kollontaï – Conférences sur la libération des femmes. La Brèche, 2022.
- Kollontai 150 – Textos escolhidos de Alexandra Kollontai, com textos introdutórios de Atiliana Brunetto, Andrea Francine Batista e Julia Cámara. Associação Internacional de Editoras de Esquerda (IULP, na sigla em inglês), incluindo a Editora Expressão Popular no Brasil.
- Kollontai e a Revolução, organizado por Annabelle Bonnet, Renata Moreira e Maísa Amaral. Expressão Popular, 2023.
- Camille Paix – Alexandra Kollontaï, l’impolie amoureuse. Le Figaro, 2 de dezembro de 2022.
- Fernando Horta – Alexandra Kollontai: os instintos e o amor em tempos revolucionários. Publicado em pcdob.org.br.
Táki Athanássios Cordás é Coordenador da Equipe Multiprofissional de Assistência do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Coordenador do Programa de Transtornos Alimentares (AMBULIM) do IPQ-HCFMUSP. Prof. dos Programas de Pós-Graduação do Departamento de Psiquiatria da USP, do Programa de Neurociências e Comportamento do Instituto de Psicologia da USP e do Programa de Fisiopatologia Experimental da FMUSP. Pós-Graduação (latu-sensu) em Filosofia (PUC-RS).
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.