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    EUA

    Tarifaço Trump 2.0 e o impasse da reindustrialização dos EUA

    Artigo analisa os impactos do novo pacote tarifário de Trump, inspirado no modelo protecionista do século XIX, e revela contradições dentro do próprio movimento sindical norte-americano

    POR: Eduardo Siqueira

    13 min de leitura

    Donald Trump durante visita à fábrica da Ford em Ypsilanti, Michigan, em 21 de maio de 2020. Foto: Tia Dufour/Casa Branca.
    Donald Trump durante visita à fábrica da Ford em Ypsilanti, Michigan, em 21 de maio de 2020. Foto: Tia Dufour/Casa Branca.

    O Tarifaço do Governo Trump 2.0: O Desespero do Acordo de Mar-A-Lago –  No dia 1º de outubro de 1890, entraram em vigor as chamadas “Tarifas McKinley”, apoiadas pelo futuro presidente republicano dos Estados Unidos, William McKinley — tarifas de, em média, quase 50% para muitos produtos manufaturados consumidos pelos estadunidenses, enquanto nenhuma tarifa foi cobrada para a importação de café e açúcar. Os efeitos do tarifaço foram dramáticos. Os preços das mercadorias importadas dispararam, particularmente na construção civil, que teve seus custos aumentados imediatamente. Os empresários do setor tiveram que absorver os custos, repassá-los aos consumidores ou buscar materiais alternativos. Por exemplo, a folha de Flandres — essencial para telhados e luminárias de metal — foi taxada de 30% para 70%, o que elevou significativamente o preço de residências, prédios comerciais e da infraestrutura pública. Muitos eleitores viram essas tarifas como dádivas aos magnatas da indústria e votaram contra os republicanos nas eleições daquele ano. Como consequência, os republicanos perderam 93 cadeiras e os democratas conquistaram maioria confortável na Câmara. Apesar da derrota do partido e dos efeitos negativos do tarifaço na economia da época, McKinley manteve a defesa das tarifas durante seu mandato (1897–1901), embora, ao final dos quatro anos, tenha começado a repensar sua posição e reconhecido que políticas tarifárias muito restritivas eram insustentáveis. Passou a defender, então, que em vez do protecionismo rígido, seria melhor buscar o comércio recíproco, reduzindo tarifas em troca de melhores acordos com parceiros comerciais.

    Segundo as boas e más línguas, o presidente Trump admira o tarifaço de McKinley, do fim do século XIX, e se inspirou nele para defender o atual, com a ilusão de que teria contribuído para a industrialização do país. Nas últimas semanas, o inconstitucional tarifaço Trump 2.0 — contra praticamente todos os países que exportam para os Estados Unidos — se tornou o assunto mais importante na pauta da mídia global. Trump anunciou o tarifaço na Casa Branca no dia 2 de abril, batizando-o de Dia da Libertação, e apresentou uma tabela de tarifas supostamente recíprocas para dezenas de países. Essas tarifas foram calculadas para tentar neutralizar o crônico e insustentável déficit comercial apoiado por sucessivos governos estadunidenses; logo, não espelham as reais tarifas de importação adotadas pelos parceiros comerciais dos EUA.

    Leia também: China reage à guerra tarifária e expõe declínio da hegemonia dos EUA

    Trump apresenta tariafaço

    Presidente dos EUA, Donald Trump, assina uma Ordem Executiva sobre os planos tarifários do governo durante um evento “Make America Wealthy Again” (Torne a América Rica Novamente), na quarta-feira, 2 de abril de 2025, no Jardim das Rosas da Casa Branca. Foto: Casa Branca/Daniel Torok via Wikimedia Commons

    Desde então, o que se vê é uma verdadeira gangorra de tarifas — com aumentos contínuos para a China, chegando a 245%, por ser considerada a principal ameaça à hegemonia dos EUA, e pausas ou reduções para outros países e setores, como os de automóveis, celulares, televisores e chips. Esse recuo do governo Trump se dá porque houve:

    a) reação negativa de importantes especuladores de fundos hedge que apoiam Trump; 

    b) queda substancial dos índices S&P 500, NASDAQ e Dow Jones da bolsa de valores de Wall Street; 

    c) debandada de investidores das Letras do Tesouro de curto prazo, seguida de aumento nas taxas para os papéis de longo prazo; e 

    d) retaliações de muitos países, além de enorme desgaste internacional para o governo dos EUA. 

    Como se tudo isso fosse pouco, as ameaças de inflação combinada com recessão forçaram a pisada no freio, revelando o completo desespero do império decadente que busca reindustrializar-se por vias tortas, sem nenhum planejamento ou investimento de longo prazo pelo Estado.

    Belluzzo: do campo à inteligência artificial, a era da hiperindustrialização

    As justificativas para o tarifaço 2.0 apresentadas por Steve Miran, economista-chefe do Conselho de Assuntos Econômicos dos EUA, foram discutidas em um ensaio Guia do Usuário para Reestruturar o Sistema de Comércio Mundial, publicado no ano passado. Em 7 de abril, Miran deu uma palestra sobre o guia no Instituto Hudson, famoso think tank dos velhos e novos conservadores americanos. Ele argumenta que os EUA oferecem ao mundo estabilidade e segurança global por meio das forças armadas, do dólar e das Letras do Tesouro, usados como reservas no sistema financeiro internacional. Segundo Miran, ambas são custosas para os EUA e, a partir de agora, o país cobrará pedágio daqueles que abusaram da proteção gratuita do hegemon nas últimas décadas. Este argumento tenta transformar o algoz em vítima ao inverter a realidade, quando, na verdade, a maioria dos países supostamente favorecidos pela “benevolência” dos EUA foram vítimas da hegemonia do capital financeiro norte-americano após a Segunda Guerra Mundial, consolidado através da estrutura institucional criada em Bretton Woods, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), que incluiu o domínio do dólar como moeda de referência e reserva para transações comerciais.

    O documento defende sobretudo a continuidade da hegemonia do dólar e sua desvalorização para forçar países de todos os continentes a comprar produtos manufaturados de empresas que, na maioria dos casos, já não existem mais nos EUA. Afinal de contas, essas empresas transnacionais, controladas pelo capital financeiro estadunidense, transferiram suas fábricas para a China e outros países do Sul Global há quase cinco décadas, em busca de lucros maiores — conforme manda a regra do jogo capitalista neoliberal. Nas palavras de Miran: 

    “Se outros países querem se beneficiar do guarda-chuva financeiro e geopolítico dos EUA, então tem que dar a sua contribuição e pagar a quota que lhes cabe.

    Segundo Ben Norton, na palestra de 7 de abril, Miran alinhavou cinco modos pelos quais o governo Trump espera que os países estrangeiros paguem a conta:

    1. Aceitar tarifas nas suas exportações sem retaliação.  Com este recurso, o Tesouro dos EUA financia bens públicos. Qualquer retaliação agravaria em vez de melhorar a situação, também dificultaria o financiamento de bens públicos globais.  
    2. Abandonar práticas comerciais injustas e danosas, abrindo seus mercados e comprando dos Estados Unidos.
    3. Aumentar gastos com defesa e comprar armas dos EUA gerando empregos no território americano e diminuindo a pressão sobre os membros das forças armadas.
    4. Investir e abrir fábricas nos EUA — isentando-se, assim, das tarifas.
    5. Enviar “cheques” ao Tesouro para ajudar os EUA a financiar bens públicos globais. Estes cheques significam na verdade comprar Letras do Tesouro com prazo de 100 anos e ganhos muito baixos

    Norton resumiu bem a situação:

    “O governo Trump argumenta que países estrangeiros tem que ajudar a pagar os custos de manter o império dos EUA. Washington ameaça nações com tarifas altas, a menos que elas concordem em fazer concessões importantes para beneficiar a economia dos EUA às custas das suas próprias, como parte de um hipotético ‘Acordo de Mar-a-Lago’.” 

    A postura soberana da China, que impôs tarifas de 125% a produtos dos EUA, demonstra ao Sul Global que outro mundo é possível e que o BRICS não fará nenhum acordo semelhante ao de Plaza!!! Chamar o desespero de Mar-a-Lago de acordo é como sugerir que a corda e o pescoço negociam antes do enforcamento.

    Elias Jabbour e Ana Prestes falam dos bastidores da nova escalada do imperialismo: o tarifaço de Trump, que joga o mundo em uma guerra comercial de alto risco. Veja aqui:

    Por outro lado, o tarifaço 2.0 também gera contradições nas hostes dos que geralmente se opõem ao partido republicano e ao segundo governo Trump, como o movimento sindical estadunidense.

    Contradições e ilusões no movimento sindical

    O presidente do sindicato dos metalúrgicos (United Auto Workers – UAW), Shawn Fain, afirmou:

    “Aplaudimos o governo Trump por se esforçar para acabar com o desastre do livre comércio que devastou as comunidades da classe trabalhadora por décadas. Acabar com a corrida para o fundo do poço na indústria automobilística começa com a correção de nossos acordos comerciais prejudiciais, e o governo Trump fez história com as ações de hoje, mas acabar com a corrida para o fundo do poço também significa garantir os direitos sindicais dos trabalhadores metalúrgicos  em todos os lugares com um forte Conselho Nacional de Relações Trabalhistas, uma aposentadoria decente com benefícios da previdência social protegidos, assistência médica para todos os trabalhadores, inclusive por meio do Medicare e Medicaid [programas na área de serviços de saúde], e dignidade dentro e fora do trabalho. O UAW e a classe trabalhadora em geral não tem compromissos umbilicais com a política partidária; os trabalhadores esperam que os líderes trabalhem juntos para entregar resultados. O UAW foi claro: trabalharemos com qualquer político, independentemente do partido, que esteja disposto a reverter décadas de trabalhadores perdendo nos tempos mais lucrativos da história de nossa nação. Essas tarifas são um passo importante na direção certa para os trabalhadores metalúrgicos e as comunidades de colarinho azul em todo o país, e agora cabe às montadoras, das Três Grandes (Ford, GM e Stellantis) à Volkswagen e outras, trazer de volta bons empregos sindicalizados para os EUA.”

    Se, por um lado, é compreensível que a liderança deste sindicato reflita os interesses de suas bases e defenda o retorno de empregos bem remunerados para Detroit e outras localidades onde representa trabalhadores metalúrgicos, por outro, a esperança de que as tarifas sobre automóveis fabricados no México levem essas empresas transnacionais a voltar a produzir carros nos Estados Unidos não se sustenta na realidade do setor automobilístico do país. Considerando-se que, em nível nacional, trabalhadores metalúrgicos têm salários médios elevados para os padrões dos EUA — cerca de 55.747 dólares/ano (28 dólares/hora) — e que um trabalhador da mesma empresa no México ganha cerca de 8 a 10 vezes menos, é muito pouco provável que a tarifa de 25% sobre a importação de carros produzidos no México incentive as “Três Grandes” a trazer de volta empregos sindicalizados para os EUA. Do ponto de vista do retorno sobre o investimento, não faz sentido que capitalistas monopolistas tomem essa decisão baseando-se apenas nessa tarifa, já que é muito mais caro fabricar um carro nos Estados Unidos do que no México — sem falar no alto preço que tais veículos teriam no mercado interno, o que certamente diminuiria sua demanda.

    A AFL-CIO, central sindical dos EUA, tem posição similar à do sindicato UAW, mas contrapõe que “o uso de tarifas para garantir comércio justo é instrumento legítimo. Entretanto, o uso de tarifas como armas para extrair concessões não relacionadas ao cumprimento do comércio justo e a práticas comerciais predatórias que resultem em desindustrialização cria caos, sem a promessa de um amanhã melhor e da criação de empregos domésticos.” A AFL-CIO defende a necessidade de um plano estratégico e significativo para reindustrializar os Estados Unidos, porém, “sem esse plano, corporações traidoras continuarão a transferir empregos para países estrangeiros que enganam o sistema e repassam os custos das tarifas para os consumidores, enquanto obtêm lucros recordes e reduzem a segurança nacional.

    Em resumo, a defesa dos interesses dos trabalhadores contra acordos de livre comércio que facilitaram a desindustrialização dos EUA impõe que os sindicatos sejam favoráveis a tarifas que possam gerar empregos industriais no país. A AFL-CIO não declara abertamente ser contra o tarifaço 2.0, mas suas ressalvas sugerem que avalia não existir um plano nacional de desenvolvimento, e que as corporações não mudarão as regras do jogo neoliberal. Como se diz no Brasil, o movimento sindical dos EUA está em uma saia justa porque não rompe totalmente com o imperialismo e o neoliberalismo dos governos das últimas quatro décadas. Além disso, parece que os líderes sindicais não compreenderam a lição do início do século XX, quando os EUA se industrializaram rapidamente.

    Segundo Michael Hudson:

    “As tarifas, por si só, não foram suficientes para criar a decolagem industrial dos Estados Unidos, nem a da Alemanha e de outras nações que buscavam substituir e ultrapassar o monopólio industrial e financeiro da Grã-Bretanha. A chave era usar as receitas tarifárias para subsidiar o investimento público, combinadas com o poder regulatório e, acima de tudo, a política tributária, para reestruturar a economia em muitas frentes e moldar a forma como o trabalho e o capital eram organizados. O principal objetivo era aumentar a produtividade do trabalho. Isso exigia uma força de trabalho cada vez mais qualificada, o que exigia padrões de vida crescentes, educação, condições de trabalho saudáveis, proteção ao consumidor e regulamentação de alimentos seguros… Portanto, nos encontramos lidando com duas filosofias econômicas opostas. De um lado está o programa industrial original que os Estados Unidos e a maioria das outras nações bem-sucedidas seguiram. É o programa clássico baseado no investimento em infraestrutura pública e forte regulamentação governamental, com salários crescentes protegidos por tarifas que aumentaram a receita pública e oportunidades de lucro para criar fábricas e empregar mão de obra. Trump não tem planos de recriar essa economia. Em vez disso, ele defende a filosofia econômica oposta: reduzir o tamanho do governo, enfraquecer a regulamentação pública, privatizar a infraestrutura pública e abolir os impostos de renda progressivos. Este é o programa neoliberal que aumentou a estrutura de custos para a indústria e polarizou a riqueza e a renda entre credores e devedores. Donald Trump deturpa esse programa como sendo de apoio à indústria, não sua antítese.”

    A história dos EUA ensina as diferentes opções de políticas econômicas e suas consequências. Cabe ao governo brasileiro aprender com elas e impulsionar, sem vacilação, a reindustrialização do Brasil!

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    Eduardo Siqueira é professor na Universidade de Massachusetts, Boston, EUA e pesquisador do Observatório Internacional da FMG.

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG.